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2.1. Contornos históricos da homofobia

2.1.1. Produtividade e sexualidade: do econômico ao simbólico

O início dos discursos sobre as sexualidades, a partir do século XVII (SPENCER, 1996; FOUCAULT, 2006), coincide com os processos de transformações políticas,

28 econômicas, sociais e culturais que levaram a burguesia ao poder e, por meio dela, o capitalismo Ao contrário da aristocracia, que tinha no mito do “sangue azul” uma metáfora para dizer da sua “pureza” ancestral, a burguesia teve que lançar mão de outros elementos discursivos para legitimar-se como para e do poder, dentre eles o cultivo da ideia de uma “sexualidade sadia”. Desse modo, diz-nos Foucault, não são verdadeiras as proposições segundo as quais a burguesia impôs, como uma extensão da luta de classes, um tipo de comportamento sexual ao proletariado. Na busca de um posicionamento social de respeitabilidade, antes a burguesia se impôs e testou em si mesma os métodos, técnicas e comportamentos do que seria uma “sexualidade sadia”, fundada em práticas normatizadas, garantidoras da diferenciação frente aos demais componentes da sociedade. É somente quando se colocam problemas econômicos tais como o controle das populações, que a sexualidade do trabalhador passará a constituir problema para a burguesia, a essa altura, em função também da necessidade de deter as doenças sexualmente transmissíveis. Controle que não se dá sob a forma de uma censura direta, mas sutilmente disfarçada em discursos de entidades que se apresentam autônomas em relação à nova classe no poder. São essas as entidades que melhor revelam as modalidades discursivas sobre a sexualidade normatizada e suas formas de disseminação pelo conjunto social, inclusive porque muitas delas já vinham construindo seus discursos contra as “sexualidades desviantes” em épocas anteriores à ascensão burguesa.

Das revoluções Francesa e Industrial em diante, as bases de sustentação política e econômica da burguesia se assentam no capitalismo e sua noção fundamental de produtividade. Desse modo, para uma compreensão dessas dinâmicas, é importante nos determos, brevemente, no conceito de produtividade. Dentre as suas muitas acepções dicionarizadas, encontramos no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa que “produtividade (s.f.) (é) característica ou condição do que é produtivo; capacidade de produzir” (HOUAISS & VILLAR, 2001, p. 2304). Na singeleza aparente das definições, encontramos pistas para explicações mais complexas. Em sua dimensão econômica, a produtividade pressupõe formas racionais de organização do trabalho, coletivizado e em larga escala, além de cada vez mais executado a partir de inovações tecnológicas, em favor da apropriação privada que gerará lucros (GIDDENS, 2005), realizado, ao longo da história, em condições muitas vezes degradantes, especialmente para mulheres e crianças (HUBERMAN, 1986). Tais condições somente são

29 parcialmente superadas à medida que a combinação de lutas políticas com a necessidade de criação e/ou ampliação dos mercados de consumo acontecem, levando, progressivamente, à constituição de um mercado de consumo global, no qual, inclusive, cria-se a ilusão de uma integração cultural pela posse de bens materiais, culturais e simbólicos (FEATHERSTONE, 1995; CANCLINI, 1996). Está na estratégia de universalização do consumo, que se concretiza, contraditoriamente, a partir da promoção, simultaneamente, da indiferenciação e das particularidades, uma das bases de explicação para a lógica do consumo dirigido às pessoas LGBTT, que abordamos adiante.

À media que avançam as condições de produção e os alcances da lógica comercial sobre todas as esferas da produção humana, as especializações no mundo do trabalho vão se tornando também elas mais complexas e ramificadas, a ponto de alguns autores sugerirem que certos labores seriam mais adequados a performances produtivas específicas de gênero. Desse modo, assim como um tipo de senso comum atribui às mulheres habilidades, por exemplo, para trabalhos manuais e artesanais, estudos já apontaram que homossexuais masculinos teriam aptidões especiais para trabalhos artísticos e intelectuais (ERIBON, 2008).

Ser produtivo, no entanto, não se reduz a estar envolvido nas engrenagens de produção, circulação e consumo de bens materiais. Tal como apontam perspectivas analíticas de inspiração marxista, a produtividade humana, em todas as suas dimensões, está ligada ao trabalho, este entendido em suas realidades físicas e espirituais, realizando-se como a própria dimensão ontológica, como o processo de humanização permanente requerido pela espécie humana em seu curso de desenvolvimento histórico (KOSIK, 1986). Desse modo, somente pelo trabalho o ser humano é capaz de produzir e acumular riquezas materiais, mas também capital cultural e simbólico. Estes últimos se espalham por todas as esferas da vida e neles não é forçoso incluir os muitos modos como as sexualidades convocam os corpos a se produzirem, assim como também produzem corpos (FOUCAULT, 2005, 2006, 2007; BUTLER, 2007; LOURO, 2007). No sentido da produtividade simbólica que aqui estamos apontando, e dentro das especificidades que nos interessam relativamente à homofobia, fundamental também é lembrar a modelagem dos corpos das travestis, inclusive como estratégia econômica, na lógica do comércio sexual (BENEDETTI, 2005), bem como a adequação das anatomias genitais

30 de transexuais, permitindo o ajustamento da performance física aos sentimentos de pertencimento de gênero (BENTO, 2006). Como formas específicas de produtividades simbólicas, as modelagens corporais se inscrevem tanto na lógica normativa que busca impor padrões de suposta normalidade, quanto na lógica de subversão das atribuições normativas de gênero, apontando para potencialidades de embaralhamento das identidades sexuais em sua histórica limitação biologizante.

Essas noções de produtividade colocam em dúvida, assim, sugestões como a de Colin Spencer, para quem, em sua fase inicial o capitalismo considerou que as manifestações de desejo homossexual seriam contraproducentes, desviando o foco das necessidades de acumulação de riquezas (SPENCER, 1996). A análise de Colin Spencer, ao traçar uma história da homossexualidade, toma o capitalismo isoladamente como forma econômica, não considerando suas evoluções posteriores, como o fato de ser este regime também impregnado por noções como democracia, liberdade, opinião pública, lucratividade ilimitada e outras. É preciso, pois, destacar que o capitalismo tem papel ambíguo na sua relação com as homossexualidades (PRADO e MACHADO, 2008).

Além disso, para o capitalismo é imperiosa a necessidade de inclusão sempre crescente de novas estratégias de obtenção de lucro, que fazem com que ele incorpore, e/ou coopte, o máximo de consumidores, incluindo os homossexuais. Ademais, a incorporação dos homossexuais como mercado de consumo segmentado (SULLIVAN, 1996; NUNAM, 2003, GONZÁLEZ, 2007), se por um lado reflete a flexibilidade do sistema capitalista em termos de realização econômica, por outro diz das próprias conquistas políticas dos movimentos de lutas por direitos humanos e cidadania das pessoas LGBTT (TREVISAN, 2000; NUNAM, 2003; FACCHINI, 2005) 9. Temos, assim, uma outra visão, contrária à noção contraproducente apontada por Spencer: o consumo por parte dos homossexuais constituindo uma das formas de efetivação da acumulação de riquezas, a partir da expansão das bases que se assentam nas noções de produtividade, não apenas econômica, como também simbólica, como veremos adiante.

9 Vale lembrar, por isso mesmo, que o marco da moderna luta por direitos humanos homossexuais se

encontra na histórica luta ocorrida entre policiais e homossexuais, lésbicas e travestis no bar Stonewall- Inn, em Nova York, em junho de 1969, estabelecendo, assim, laços simbólicos entre ativismo político LGBTT e consumo. Após várias batidas policiais no bar, sob alegação de falta de licença, os frequentadores iniciaram batalhas com os militares que resultaram em prisões e novos protestos, que se espalharam por outros locais, modificando o enfrentamento do preconceito contra as homossexualidades nos Estados Unidos e outras partes do mundo ocidental (conferir, dentre outros, GIDDENS, 2005).

31 Ainda importante é destacar que, conforme atestam os próprios estudos sobre as homossexualidades, os agrupamentos sociais, na atualidade, são compostos por pessoas originárias dos mais diversos segmentos socioeconomicoculturais. Consequentemente, qualquer análise que contemporaneamente insista em divisões dos estratos sociais em termos exclusivos de burguesia e sua classe oponente, o proletariado, está fadada a não captar a dinâmica que move as sociedades. Se as classes sociais podem ser estratificadas a partir de critérios quantitativos que indicam classificações em função de poder econômico e/ou capital cultural, qualitativamente os pertencimentos identitários são mais difusos do que sugerem as supostas unidades socioeconomicoculturais (BAUMAN, 2005; CASTELLS, 2006; PRADO e MACHADO, 2008). As múltiplas formas de manifestações culturais, identitárias e comportamentais, no entanto, não escapam às tentativas de normatização, que se realizam, também, a partir da adoção de princípios de produtividade, tanto no nível econômico (particularmente no que diz respeito a padrões de produção e consumo), quanto no simbólico. Contra as tentativas de normatização, porém, novas formas de manifestação podem se insurgir, levando a rearranjos produtivos e novas modalidades de consumo (CANCLINI, 1996), que apesar de não necessariamente se contraporem aos princípios da economia de mercado, obrigam-na a adaptar-se a novos estilos de aquisição material, cultural e simbólica, a partir de uma dinâmica de reflexividade, em que as pessoas também se veem às voltas com a necessidade de adequação a novos padrões.

Vale, por isso mesmo, retomar a ideia de ambiguidade na relação do capitalismo com o consumo homossexual, pelo que ela ilumina em termos da realidade econômica do capitalismo e suas formas de obtenção de lucro, mas também pelo que pode ajudar no clareamento das próprias noções de construções identitárias a partir das homossexualidades. Em texto que discute as fusões entre passado e presente na constituição da homofobia, Alessandro Soares da Silva assim coloca o problema:

Claro está que a compreensão da organização social do espaço sexual e a organização sexual do espaço social são decisivos para a compreensão da construção psicopolítica da identidade. Nesse sentido, podemos dizer que se, por um lado, a emergência do chamado

mercado rosa constituiu um marco importante para a construção da

homossexualidade não apenas como um comportamento sexual, mas como um estilo de vida e de expressão social e, portanto, para a construção de identidades, por outro, ele acabou por determinar a aceitabilidade apenas de certas identidades coletivas, de certos estilos de vida e de expressão social. Dessa maneira, o mercado acaba por

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não deixar revelar realmente cenas tão múltiplas da experiência homoerótica, acaba por assumir o papel de determinante hegemônico, não mais moral, mas comercial. Ainda que “[...] uma indústria do

entretenimento enraizada na subcultura gay, mas que se estende além dela e adquire um certo apelo cult junto a heteros progressistas (ou ousados)” (...) contribua para a consolidação desta subcultura e dessas

identidades e para a interação entre homossexuais e heterossexuais, ela também determina quais performances identitárias terão ou não espaço nesse processo. Assim, se por um lado é verdade que ele amplia a participação social de homossexuais na vida cotidiana, também é verdade que o faz apenas para um certo número de homossexuais que se encontram enquadrados nos padrões identitários mercadológicos. (SILVA, 2007, p. 173, com destaques do autor)

Para além dos processos identitários que podem ser forjados unicamente em função de uma lógica de consumo supostamente indicativa de um “modo de ser homossexual”, estão colocados problemas como as inevitáveis diferenciações a partir de desníveis de poder aquisitivo, que hierarquizam, inclusive no interior dos agrupamentos das pessoas LGBTT, segundo lógicas que podem reforçar preconceitos internos e externos aos grupos. Isso, além das possibilidades de criar e/ou reforçar noções como as de estilos de vida extravagantes, escandalosos, perdulários e adjetivos afins, indicativos de uma suposta vida desregrada e degradante por parte das pessoas LGBTT, no limite máximo do hedonismo. As ambiguidades, portanto, não se encontram restritas às formas como o capitalismo lida com as homossexualidades, mas também, e talvez principalmente, com as armadilhas que uma entrada privilegiada em análises identitárias de pessoas LGBTT a partir de hábitos de consumo traz em termos de essencialização, reforçando preconceitos. Dito de outro modo, é preciso reafirmar a noção de que as identidades de gênero nunca são estáveis e, especialmente, que não podem ser compreendidas a partir de um único aspecto das vivências e performances vinculadas, em um determinado momento, a uma ou outra dimensão da sexualidade. Por essa razão, padrões de consumo supostamente típicos de pessoas LGBTT devem ser percebidos, como indicado anteriormente, no entrecruzamento entre os interesses capitalistas e as reivindicações de acesso a todas as formas de estar no mundo, potencializando análises nas quais as normas são permanentemente colocadas em xeque a partir, precisamente, da força que exercem, muitas vezes de forma esmagadora, sobre determinadas coletividades. Vistas assim, as relações entre capitalismo e pessoas LGBTT podem esclarecer a noção de produtividade que aqui buscamos desenvolver: a das potencialidades da produção da norma e, simultânea e contraditoriamente, da sua superação.

33 Do que acima se expôs, pode-se concluir, acerca da noção de produtividade, que ela está envolta em contradições, mas também em potencialidades explicativas. Em suas contradições, embora a produtividade econômica capitalista não tenha conduzido àquilo que o marxismo apontava como mudanças que levariam o proletariado a superar politicamente a burguesia, por meio do comunismo, a partir da agudização da exploração do trabalho, ela tem levado à necessidade de permanente reinvenção das estratégias de consumo e de produção. Se elas não superam as diferenças econômicas, pelo contrário, tem as aumentado, são capazes, por outro lado, de elevar variados estratos sociais ao mundo do consumo, inclusive pela lógica da segmentação, sem conseguir, apesar disso, evitar desigualdades que excluem outros tantos do acesso a bens materiais, culturais e simbólicos. As estratégias de agregação de consumidores pelas vias da segmentação, no entanto, levam a que o capitalismo incorpore, ainda que mantendo traços homofóbicos, produtores e consumidores homossexuais. Quanto às potencialidades da noção de produtividade, verifica-se que das contradições inerentes às tentativas de produções culturais e simbólicas normatizadoras, outras virtualidades produtivas se apresentam. Em alguns tópicos seguintes retomaremos a noção de produtividade, buscando explorar seus potenciais e contradições no que diz respeito a outros aspectos da história das sexualidades e da homofobia.