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2.1. Contornos históricos da homofobia

2.1.5. A sujeição da sexualidade

Um breve inventário sobre as contribuições medicocientíficas para a história das homossexualidades e da homofobia não pode excluir as chamadas ciências psi (psiquiatria, psicologia e psicanálise). Os modos como elas teriam contribuído para a constituição de práticas e sentimentos homofóbicos estão envoltos em controvérsias, à medida que tais ciências têm sido também apontadas como importantes nas estratégias de combate à homofobia, ainda que às vezes produzindo discursos contraditórios neste terreno (COSTA, 1992; CARRARA, GREGORI e PISCITELLI, 2004; CHILAND, 2005; BUTLER, 2008; ERIBON, 2008). Quanto à psiquiatria, além das indicações anteriores sobre tratamentos para a “cura” de homossexuais à base de choques elétricos e por indução química, é preciso acrescentar os diversos estudos que buscaram nas práticas homoafetivas explicações a partir de noções como desvio, implicando, portanto, em considerar as sexualidades a partir de um suposto padrão de normalidade (heterossexual) e transtornos, como sinônimos de anomalias, resultando em amplos catálogos, por exemplo, de tipos específicos de neuroses que, uma vez combatidas, poderiam reconduzir a uma “sexualidade normal” (FOUQÉ, 1953; DOURADO, 1967). Desde que a homossexualidade foi retirada do catálogo das doenças, no entanto, as abordagens psiquiátricas tiveram que rever seus conceitos sobre a homossexualidade, acrescentando que desconsiderar como doença o desejo por pessoas de mesmo gênero contou com a contribuição de novas abordagens psiquiátricas. O que não se desfaz, no

45 entanto, segundo Foucault (2006), é o fato de a psiquiatria e a psicanálise manterem, relativamente às (homo)sexualidades, uma posição de poder, a partir da relação que elas instauram com as múltiplas possibilidades da confissão/ocultamento do desejo e as formas de administração daí advindas.

Às vezes aproveitando-se dos métodos da psiquiatria, mas com ela promovendo rupturas teóricas e metodológicas radicais, a psicanálise é, de todas as ciências que se ocupam das sexualidades, aquela que melhor entendeu a centralidade da questão na vida de qualquer ser humano (CHILAND, 2005). Com a psicanálise, definitivamente a ordem discursiva sobre a sexualidade atinge seu status mais elevado. Primeiro, em termos de refinamento e de afirmação de que todas as questões humanas articulam-se, de uma ou outra forma, em torno da sexualidade, seja como desejo, prática ou interdições. Em segundo lugar, porque pela primeira vez instaura-se a profissionalização de alguém que se especializa em ouvir discursos sobre as sexualidades individuais, com vistas a permitir um convívio aceitável com eventuais conflitos derivados dessa ordem. As confusões acerca da condenação ou não das homossexualidades pela psicanálise, ou de considerá-las como desvios doentios, começaram desde os primeiros estudos de Sigmund Freud, segundo Colette Chiland. Para a autora, as principais confusões giram em torno do que seria uma atribuição excessivamente biologizante da sexualidade em Freud, que ela refuta, assim como interpretações equívocas sobre sexualidades desviantes como sinônimo de anormais, sujeitas, assim, a processos de “correção”.

Freud proclama a importância da sexualidade e amplia sua definição. Ele a vê presente em qualquer idade, desde o chupar do lactente. Não é preciso mais que isso para que o acusem de pansexualismo. No entanto, Freud nunca sustentou que só existiria o instinto sexual. Ele apenas afirmou que a sexualidade é um dos pólos do conflito que se resolve em saúde psíquica ou perdura na doença mental; ela é, portanto, um dos componentes da vida psíquica, da personalidade e patologia mental. Ele variou quanto ao outro pólo do conflito. Esse conflito, do qual todo sujeito humano sofre, Freud primeiro o situou em grande parte entre o mundo interior do sujeito e o mundo exterior. Ele via a existência de um conflito interno entre o instinto sexual e os instintos do eu [moi] ou de autoconservação. Mas esse conflito interno acabava num conflito externo, pois o instinto sexual, a libido, punha o indivíduo em conflito com a moral do grupo, a moral civilizada; os instintos do [moi] conduziriam o indivíduo a se submeter às regras sociais. (CHILAND, 2005, p. 18, com destaques da autora)

O conflito da libido com a moral social, portanto, é uma das principais questões a se considerar no tocante à instauração de noções de “sexualidades normais” e

46 “sexualidades anormais”, lembrando, naturalmente, que se a psicanálise nasce com Freud, ela tem muitos desenvolvimentos posteriores, que não serão aqui aludidos em função da nossa abordagem panorâmica16. De todo modo, as muitas possibilidades de interpretações e abordagens psicanalíticas, salvo por infringimento de regras éticas, na atualidade não se prestam a terapias de “cura” de afetividades entre gêneros iguais. As abordagens psicológicas têm sua importância em campos próximos da psicanálise no tocante à explicação da sexualidade como fator importante na constituição das subjetividades. Na história das homossexualidades, uma das contribuições da psicologia foi na construção/compreensão do que seria o homossexual. Para Jurandir Freire Costa, esse empreendimento se dá no século XIX e décadas iniciais do século XX e pode ser percebido nitidamente em importantes obras literárias então produzidas.

Sugiro que antes desse período não se tinha nem se podia ter a noção de que existe uma “personalidade” ou um “perfil psicológico” comum a “todos os homossexuais”, como acreditamos hoje em dia. (...) nossas idéias aparentemente espontâneas e intuitivas sobre o “que é um homossexual” nada mais são do que decantações imaginárias de um estereótipo humano, inventado para funcionar como antinorma do ideal da conduta sexual masculina adequada à formação da família burguesa. (COSTA, 1992, p. 12)

Do equívoco de se pensar uma unidade psicológica que explicaria a homossexualidade (homoerotismo, na preferência de Jurandir Freira Costa, que opõe o termo a homossexualismo) por características absolutas e universais, conduzindo a uma percepção única do homossexual, nasceram práticas de tratamento psicológico que visavam restituir a heterossexualidade perdida. Se tais práticas são hoje condenadas pelas normas éticas da psicologia, ainda não se desfez um tipo de imaginário que atribui aos psicólogos a capacidade, primeiro, de identificar a homossexualidade em crianças levadas por pais aflitos aos consultórios e, segundo, de evitar que a criança se transforme no adulto homossexual. Na esteira de demandas originadas de sentimentos homofóbicos, ainda hoje encontramos profissionais da psicologia que se propõem a “curar” homossexuais, como a brasileira Rozângela Alves Justino, que mistura religião

16

Para uma leitura crítica das posições da psicanálise sobre as sexualidades, remetemos a BUTLER, 2008.

47 e supostos princípios psicológicos na oferta de tratamento para quem deseja “livrar-se” da homossexualidade17.