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A heteronormatividade misógina e os desafios teóricos da homofobia

2.2. Contornos teóricos da homofobia

2.2.4. A heteronormatividade misógina e os desafios teóricos da homofobia

Das discussões históricas e teóricas sobre a homofobia empreendidas até aqui algumas questões emergem como mais recorrentes: 1) sexo, gênero e sexualidade são conceitos normativos e construídos discursivamente a partir de uma série de instituições e relações sociais, implicando, portanto, em relações de poder; 2) relações de poder somente sobrevivem quando atribuem normas, que buscam instituir modos aceitáveis e inaceitáveis relativamente a sexo, gênero e sexualidade, e estas fundam-se na pressuposição da heterossexualidade como compulsória, posto que seria a manifestação natural que todo desejo e prática sexual devem seguir; 3) as normas, ao mesmo tempo em que instituem regras, modos de ser e de viver, instigam as pessoas a quebrá-las, a combatê-las, criando formas alternativas; e 4) homofobia é um conceito portador de ambiguidades, no mínimo, ou como a ele se referem alguns (mas) autores (as), polifônico. Torna-se necessário, assim, verificar um pouco mais de perto cada uma dessas recorrências, em direção a uma compreensão que nos permita trabalhar de maneira mais profícua a noção de homofobia para a análise dos modos como o jornalismo lida com os preconceitos contra as homossexualidades.

Na esteira das contribuições teóricas de Michel Foucault, diversas estudiosas feministas, pioneiramente, e estudiosos (as) das homossexualidades, muitas vezes também inspirados pelas contribuições das teorias feministas, têm chamado atenção para a força normativa que pesa sobre as relações de sexo, gênero e sexualidade. Em perspectivas mais “radicais”, como propõe Judith Butler (2007, 2008), por exemplo, sexo e gênero devem ser vistos como “ficções”, sejam sociais, culturais ou sob quaisquer outras perspectivas. É assim que, para a autora, se gênero foi o expediente teórico e discursivo (por que não, político?) para se contrapor à noção de sexo, tomando-se esta como biológica, e aquele como construído culturalmente, restam ainda alguns problemas a superar, especialmente aqueles que dizem respeito ao binarismo que, seja sob uma ótica biologizante, seja sob uma perspectiva culturalista, insiste nas posições supostamente

70 fixas ocupadas por sexo e por gênero, a partir da antinomia masculino/feminino, retornando às essencializações e naturalizações que deveriam ter ficado para trás. A pergunta que deve ser feita, para BUTLER (2007, 2008), é sobre quais são as determinações culturais que tornaram o gênero tão regulado por normas quanto o sexo, pois somente assim virão à tona as fragilidades das atribuições culturalistas que “salvariam” o gênero das essencializações e das naturalizações. Trata-se, também, de indagar sobre as origens discursivas que estão por trás de muitas das concepções reinantes sobre gênero.Vamos ao modo como a autora coloca o problema:

Portanto, como estratégia de sobrevivência em sistemas compulsórios, o gênero é uma performance com conseqüências claramente punitivas. Os gêneros distintos são parte do que “humaniza” os indivíduos na cultura contemporânea; de fato, habitualmente punimos os que não desempenham corretamente o seu gênero. Os vários atos de gênero criam a idéia de gênero, e sem esses atos, não haveria gênero algum, pois não há nenhuma “essência” que o gênero expresse ou exteriorize, nem tampouco um ideal objetivo ao qual aspire e porque o gênero não é um dado de realidade. Assim, o gênero é uma construção que oculta normalmente sua gênese; o acordo coletivo tácito de exercer, produzir e sustentar gêneros distintos e polarizados como ficções culturais é obscurecido pela credibilidade dessas produções – e pelas punições que penalizam a recusa a acreditar neles; a construção “obriga” nossa crença em sua necessidade e naturalidade. As possibilidades históricas materializadas por meio dos vários estilos corporais nada mais são do que ficções culturais punitivamente reguladas, alternadamente incorporadas e desviadas sob coação. (BUTLER, 2008, p. 199, com destaques da autora.)

Para Butler, não se trata de questionar sobre a veracidade ou falsidade dos gêneros, se eles são reais ou aparentes, originais ou derivados, mas reconhecer que “como portadores críveis desses atributos, contudo, eles também podem se tornar completa e radicalmente incríveis” (BUTLER, 2008, p. 201, com destaque da autora). É assim que as normas de gênero, nascidas da condição “fictícia” destes, posto que construções discursivas e não dados de realidade materialmente palpável, devem ser vistas não somente como aquilo que institui regras, que molda corpos, que obriga e limita, mas também como a potência originária das suas múltiplas formas de contestação. Nesse sentido, elas são permanentemente colocadas à prova, inclusive por ações parodísticas, de que seriam paradigmáticas as transformações das travestis (BENEDETTI, 2005), ao mesmo tempo em que são também reforçadas, talvez em proporção maior, de que são paradigmáticas a realidade de alguns (umas) transexuais (BENTO,2006), ao reivindicarem corpos em acordo com as normas tradicionais de sexo e gênero, com

71 posições extremamente homofóbicas. As normas não são, contudo, paralisantes, ainda que suas forças assim possam parecer à primeira vista e especialmente para algumas pessoas com maiores dificuldades de se contraporem às ordens vigentes das sexualidades e das performances de gênero.

A contestação das normas passa, segundo Judith Butler, pelo questionamento das identidades fixas e, portanto, pela desconstrução delas:

Se as identidades deixassem de ser fixas como premissas de um silogismo político, e se a política não fosse mais compreendida como um conjunto de práticas derivadas dos supostos interesses de um conjunto de sujeitos prontos, uma nova configuração política surgiria certamente das ruínas da antiga. As configurações culturais do sexo e do gênero poderiam então proliferar ou, melhor dizendo, sua proliferação atual poderia então tornar-se articulável nos discursos que criam a vida cultural inteligível, confundindo o próprio binarismo do sexo e denunciando sua não inaturalidade fundamental. (BUTLER, 2008, pp. 213-214)

A luta política para remodelar as relações e concepções de sexo e de gênero, no entanto, não pode negligenciar outro aspecto crucial: por trás das normas de gênero está também a pressuposição de uma outra, tão forte quanto, qual seja, a da heterossexualidade compulsória. Conforme nossas discussões anteriores evidenciaram, a heterossexualidade está assentada também em princípios daquelas diversas instâncias produtoras de discursos sobre as normas de sexo e de gênero e tem como corolário a noção de que toda relação de gênero deve se dar entre um homem e uma mulher, preferencialmente no interior de um casamento, em que a atividade sexual será dirigida à procriação. Segundo as premissas da heterossexualidade compulsória, sexo, gênero e sexualidade estão em um mesmo nível: o de garantir a perpetuação da suposta ordem natural que estaria por trás do desejo e da sua efetivação em ato sexual unicamente entre pessoas de gênero diferente. Nas palavras de Guacira Lopes Louro:

Esse alinhamento (entre sexo-gênero-sexualidade) dá sustentação ao processo de heteronormatividade, ou seja, à produção e à reiteração compulsória da norma heterossexual. Supõe-se, segundo essa lógica, que todas as pessoas sejam (ou devam ser) heterossexuais – daí que os sistemas de saúde ou de educação, o jurídico ou o midiático sejam construídos à imagem e à semelhança desses sujeitos. São eles que estão plenamente qualificados para usufruir desses sistemas ou de seus serviços e para receber os benefícios do Estado. Os outros, que fogem à norma, poderão na melhor das hipóteses ser reeducados, reformados (se for adotada uma ótica de tolerância e complacência); ou serão relegados a um segundo plano (tendo de se contentar com recursos

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alternativos, restritivos, inferiores); quando não forem simplesmente excluídos, ignorados ou mesmo punidos. Ainda que se reconheça tudo isso, a atitude mais freqüente é a desatenção ou a conformação. A heteronormatividade só vem a ser reconhecida como um processo social, ou seja, como algo que é fabricado, produzido, reiterado, e somente passa a ser problematizada a partir da ação de intelectuais ligados aos estudos de sexualidade, especialmente aos estudos gays e lésbicos e à teoria queer. (Louro, 2009, p. 90, com destaques da autora.)

Para compreender melhor as noções de homossexualidade e heterossexualidade é indispensável lembrar que elas foram forjadas a partir do século XIX, como parte dos esforços de elucidação do desejo por pessoas de mesmo gênero, inserindo-se ainda nas lutas contra os preconceitos que então se tornavam crescentemente visíveis (LOURO, 2007; ERIBON, 2008, dentre outros). Tratou-se, portanto, naquele momento, de um esforço para construir as bases teóricas e demais formas de explicações racionalizadas sobre os modos particulares de ser de pessoas atraídas pelas de mesmo gênero. No entanto, o empreendimento acabou levando a duplo equívoco: ao buscar estabelecer a noção de homossexualidade, acabou-se por reforçar o seu oposto, a de heterossexualidade, além de lançar os fundamentos para a compreensão, a partir de então sempre reforçada, das identidades sexuais imutáveis. Por essa razão, Roger Raupp Rios, ao propor estratégias de combate às formas de preconceito, propõe que:

(...) para atacar a homofobia em suas raízes é preciso suplantar a heterossexualidade e a homossexualidade como identidades sexuais. Tal resposta pode soar, aos ouvidos de muitos, como “suicídio identitário”: acabar definitivamente a homofobia pela abolição da própria homossexualidade. Uma crítica deste jaez seria improcedente: ela pecaria por não perceber que o vencimento do heterossexismo, levado às últimas conseqüências, é que está em causa. A resposta moderada, por sua vez, pode redundar em um paradoxo: como sustentar a igualdade entre as orientações sexuais (e, por conseguinte, suprimir a homofobia) se, como sustenta Jonathan Katz (1995), a heterossexualidade se define precisamente pela negação e a desvalorização da homossexualidade? Dito de outro modo: cuida-se de tentar conciliar o inconciliável. (RIOS, 2009, pp. 68-69)

O problema das essencializações/naturalizações identitárias torna-se, assim, um dos principais entraves na busca de soluções para o combate à homofobia, ao lado das normas de gênero e da heterossexualidade compulsória. Há de se lembrar, ademais, que a heterossexualidade compulsória tem sido acompanhada, historicamente, da hierarquização entre os gêneros, a partir da qual busca-se legitimar a suposta superioridade masculina. Superioridade também ela pressuposta a partir de uma

73 multiplicidade de discursos, originários de tradições religiosas, assim como de instâncias produtoras de discursos racionalizantes. As raízes da diferenciação e hierarquização entre homes e mulheres são encontradas já nas culturas clássicas, assumindo novas formas a partir de então.

Recorrer à Grécia Antiga como forma de compreensão das relações entre pessoas de mesmo gênero, como vimos, tem sido expediente comum em diversos estudos. Parece- nos, no entanto, que a mesma remissão é também esclarecedora se quisermos entender o quão antiga é a depreciação e/ou subordinação das mulheres ao masculinismo e a associação entre passividade nas relações sexuais como componente feminino, em contraposição ao ser ativo como requisito de masculinidade. Dessa equação, na Grécia Antiga foram estabelecidos princípios de conduta – éticos e morais – que deveriam reger as relações entre pessoas de mesmo gênero (FOUCAULT, 2005; 2006; 2007; DOVER, 2007). Se no passado grego, no entanto, a questão dos “papéis sexuais” nas relações entre dois homens se inscrevia na lógica pedagógica e de iniciação para a vida adulta e em sociedade tratada em tópico anterior, na atualidade ela indica modalidades específicas de manifestação da homofobia, como também já aludido. Importante destacar, por isso, a íntima relação entre a heteronormatividade de nossa época e a misoginia, buscando suas raízes nas formas como mulheres e homens passivos eram vistos na cultura grega clássica, na citação de K. J. Dover.

Uma vez que a segregação das mulheres era uma característica da maior parte das comunidades gregas, de maneira que as mulheres e meninas de famílias cidadãs raramente eram vistas em público por homens, e hetairai22 que conheciam bem o seu ofício tendiam a imitar esta discrição para não se desvalorizarem (...), a publicidade associada às pin-ups modernas pertencia a homens mais do que a mulheres. [...]

Partindo-se, também, do pressuposto de que o papel passivo na homossexualidade masculina não gera prazer (...), pode-se concluir que, enquanto as mulheres têm uma inclinação natural ao adultério (efetivamente, esta dedução foi uma importante racionalização da segregação sexual que impedia às mulheres entrar em contato com amantes em potencial), os homens não têm uma semelhante inclinação à submissão homossexual. Da mesma forma, a prostituição de mulheres podia ser vista como de acordo com um papel “naturalmente” subordinado e dependente das mulheres diante dos homens, enquanto que o homem que escolhe o papel de prostituto se subordina de maneira “não-natural” a outros homens. Todas as informações de que dispomos, no sentido de apoiar a hipótese de que os gregos consideravam o desejo homossexual como natural, referem-

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se ao parceiro ativo, e precisamos levar em conta que, para eles, a diferenciação entre os papéis ativo e passivo, na homossexualidade, era de profunda importância. (DOVER, 2007, pp. 97-98 e 99-100, com destaques do autor.)

Ao buscarmos as formas antigas de depreciação das mulheres, atribuindo-lhes características de “sexualidade degenerada”, com as consequências políticas de sua exclusão da vida pública e do exercício de poder, na Grécia Antiga e até tempos recentes em algumas culturas ocidentais, fica claro que estamos diante não somente da pressuposição da heterossexualidade compulsória dos nossos tempos como algo naturalizado, mas também que se trata de uma heteronormatividade com fortes traços de misoginia. Misoginia que se acentua na cultura ocidental a partir da Idade Média, com a contribuição de importantes estudos filosóficos, anatômicos e fisiológicos, em que nos últimos nem sempre estavam muito claros os limites com pressupostos teológicos (BLOCH, 1995; FONSECA, 2009). Embora importante para a perpetuação da espécie humana, as mulheres eram vistas como disseminadoras de discórdia, como excessivamente devotadas ao falatório, colocando em risco a estabilidade do mundo.

A visão da mulher como aquela, que por meio da fala, semeou discórdia entre o homem e Deus está no cerne da narrativa da Queda, a associação que o Velho Testamento faz do feminino com a sedução verbal. Contudo, em lugar nenhum a misoginia cósmica do mundo clássico – um mundo que inclui as terríveis figuras das Fúrias, das Hárpias, das Parcas, mas que ao menos concede à mulher um lugar poderoso na ordem da natureza – ou o anti-feminino fundador da história do cristianismo estão mais fortemente domesticados (literalmente, levados para dentro de casa) do que no mundo latino tardio e cristão onde as mulheres equivalem a um aborrecimento da fala inerente à vida cotidiana. (BLOCH, 1995, p. 24)

Vistas de forma depreciativa, às mulheres caberia somente a função reprodutiva, mas mesmo aí os estudos anatômicos e fisiológicos disponíveis na Idade Média eram tachativos: a superioridade masculina estava também no reino da reprodução, posto que, por características anatômicas desfavoráveis, as mulheres não possuíam o calor do macho, que por essa razão, garantiam, pelo sêmen, o princípio de posse da alma para a espécie humana, restando à mulher a impureza, manifesta na regularidade das menstruações. Tolerar as mulheres com suas imperfeições, ameaças de desestabilização da ordem social, propensão à fofoca e outras características reprováveis era tarefa árdua, sendo as mesmas, em algumas concepções durante, e após a Idade Média, vistas, no

75 máximo, como objetos decorativos, adornos que referendariam a superioridade do masculino (BLOCH, 1995).

Modernamente, a misoginia se refere tanto às formas de depreciação das mulheres, quanto, mais amplamente, ao que se refere ao feminino, como propõem Victoria A. Ferrer Pérez e Esperanza Bosch Fiol, ao estudarem os reflexos da misoginia na constituição da violência de gênero.

A palavra misoginia é formada pela raiz grega “miseo”, que significa odiar, e “gyne”, cuja tradução seria mulher, e se refere ao ódio, rejeição, aversão e desprezo dos homens em relação às mulheres e, em geral, em relação a tudo relacionado com o feminino. Esse ódio (sentimento) tem tido freqüentemente uma continuidade em opiniões ou crenças negativas sobre a mulher e o feminino e em condutas negativas em relação a elas. (BOSCH & FIOL, 2000, p. 14, com destaque no original.)

Se entendemos a misoginia, além do “ódio ou aversão às mulheres” também como “aversão ao contato sexual com as mulheres” (HOUAISS & SALLES, 2001, p. 1933), o aspecto misógino da heteronormatividade fica mais evidente. Odiar ou ter aversão às mulheres, no primeiro sentido, não exclui o desejo sexual por elas, pelo contrário, pode conduzir às práticas de estupros e outras formas de submissão sexual com base na violência não consentida, muitas vezes com requintes de violência sádica, sem contar as muitas formas de violência física e simbólica de que são vítimas mulheres dentro e fora dos lares, perpetradas por pais, mães, irmãos, irmãs e toda sorte de pessoas, que agem na maioria das vezes tomando como natural a condição inferior das mulheres. Ódios e aversões que, no caso brasileiro, incluem receber salários menores do que os homens na execução de serviços idênticos e de cargos formalmente situados no mesmo nível, além de uma série de outras estratégias de desvalorização do feminino.

Ainda como parte da desvalorização das mulheres, se na Grécia Antiga considerava-se que elas tendiam ao adultério, em nossos tempos não estão de todo desfeitos imaginários sobre a sexualidade feminina que geram padrões de comportamento normativos. É assim que, contraditoriamente, ainda hoje homens são estimulados, desde muito jovens, a terem relações sexuais como forma de provar a masculinidade, enquanto as mulheres devem manter a virgindade, como requisito para encontrar bons casamentos. Resta aos jovens, em prevalecendo tal lógica, procurarem prostitutas para a realização de suas atividades afirmadoras da masculinidade, o que acaba por novamente

76 colocar o homem em situação superior, a partir do pressuposto de que a prostituição é uma espécie de prova de que a própria mulher não se dá valor, ao vender seu corpo para a mera satisfação sexual do homem.

No segundo sentido dicionarizado da palavra misoginia, ainda que a aversão ao contato sexual com as mulheres não esteja necessariamente acompanhada de atitudes de violência física e/ou simbólica contra elas, temos o mote para as formas de depreciação homofóbica contra homossexuais masculinos, mas também contra lésbicas. Homossexuais masculinos são depreciados exatamente porque se comportariam, sexualmente, como mulheres, aceitando a passividade nas relações. Evidentemente que sustentar tal depreciação desconsidera uma gama variada de possibilidades de exercício da sexualidade entre homossexuais masculinos, que além de não pressuporem obrigatoriamente a penetração (forma de prazer sim, ao contrário do que acreditavam os gregos antigos23), não autoriza qualquer forma de depreciação homofóbica, exceto pela razão de se misturar a pressuposição da heteronormatividade compulsória como regra e da misoginia como pano de fundo simbólico, que conduz à falsa ideia de que ser penetrado transforma um homem em mulher24. Outro traço de subordinação das mulheres que aflora a partir da noção de passividade é a premissa de que elas são simples objetos de desejo, ou, em termos mais vulgares, meros receptáculos do órgão sexual masculino e das suas secreções prazerosas. Este engano, no entanto, parece autorizar a sustentação de que mulheres não devem ter iniciativas na busca de prazer sexual, além, claro, da confusão entre penetração e passividade nas práticas sexuais femininas, posto que ser passiva se reduz às condições físicas do ato sexual.

O maior traço da misoginia nas manifestações homofóbicas, porém, está nas formas mais comuns de injúria contra homossexuais masculinos, ouvidas desde muito cedo, em idade que ainda não permite compreender porque ser chamado de mulherzinha, menininha, mocinha, mariquinhas ou insulto no feminino é uma forte agressão simbólica e demonstração de rechaço (ERIBON, 2008). As biografias individuais de homossexuais masculinos raramente excluem as injúrias fundamentadas no ranço

23 O prazer masculino derivado de carícias no ânus, ou mesmo formas de penetração, digitais ou por

objetos, está presente também nas relações heterossexuais.

24 Não se deve esquecer que há uma série de pesquisas médicas que sugerem semelhanças entre o cérebro

de homossexuais masculinos e o de mulheres. A simples existência de tais pesquisas já é reveladora das associações entre homossexualidade masculina e comportamento feminino, pois não se aventaria tal hipótese de pesquisa em uma sociedade na qual a heteronormatividade misógina não estivesse presente.

77 misógino, tal é a magnitude de sua disseminação social. Ao depreciar homossexuais masculinos com injúrias no feminino, inevitavelmente estão explícitas duas realidades: xingamentos aos homossexuais, mas também depreciação das mulheres, pois não haveria razão, não fosse pela misoginia, para utilizá-las como aquilo que torna alguém