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4.4. Identidades e hierarquias de visibilidade

Antes das análises, uma nota explicativa se faz necessária em relação a esta categoria, pois gay aparece como equivalente, na maioria das vezes, a homossexual masculino e assim foi definido pela grande recorrência, nos jornais, à utilização da palavra nesse

185 sentido, apesar de também se referir, ocasionalmente, a lésbicas ou travestis, quando estas não estão nomeadas explicitamente. As siglas LGBT e GLS reproduzem referências assim feitas nas matérias, enquanto HSH e MSM foram adotadas para resolver o problema das referências que sugeriam relacionamentos entre homens, ou entre mulheres, sem explicitar. Por sua vez, sem referência diz de situação que não explicita, mas sugere homossexualidade, como na nota de Ancelmo Góis sobre os sanduíches batizados com patentes militares que analisaremos posteriormente. A premissa é de que ao aparecerem, as identidades contribuem para tornar visível a homofobia em suas múltiplas formas de manifestação, tanto individuais, quanto sociais. Identidades

A supremacia da identidade gay, com 239 aparições na Folha e 226 n’O Globo, ainda que não se referindo em absoluto aos homossexuais masculinos, não deixa dúvidas ser esta a identidade que tem maior visibilidade dentre todas as LGBTT, inclusive positivamente, não raro percebida no cotidiano como abrangendo o universo das pessoas não identificadas como heterossexuais. Não por acaso, na 1ª Conferência Nacional GLBT, realizada em data que coincidiu com o período da nossa análise, um dos pontos que suscitou debates acalorados foi a mudança da sigla, fazendo preceder as lésbicas (73 aparições na Folha e 70 n’O Globo) aos gays, como foi aprovado em votação apertada, conforme destacamos anteriormente. Nesse sentido, é que pesquisadoras apontam para a dupla invisibilidade a que as lésbicas estão sujeitas: pela condição de subalternidade pretendida pelo machismo e pelo fato de amarem e

239 73 16 80 35 8 16 12 57 18 51 226 70 29 94 34 5 15 6 32 11 13 Folha de S. Paulo O Globo

186 desejarem suas semelhantes (BORILLO, 2001; GIMENO, 2007; SIMONIS, 2007). Essa invisibilidade pode, no entanto, ser substituída por formas de trazer à luz por meio de estereótipos, tal como no texto da Folha sobre a Parada, que praticamente reduziu as lésbicas à caricatura de alcoólatras histéricas, como será detalhado nas análises da próxima categoria. A visibilidade naquele caso é mais danosa do que o ocultamento, exceto se motivador para atitudes de protesto que visem a superação das estereotipações preconceituosas. Claro, a cobertura jornalística não é só maniqueísmo, ainda que muitas vezes portadora de ambiguidades, e na própria Folha elas aparecem positivamente em outras situações. Mas é n’O Globo que as lésbicas ganham outra forma de visibilidade, não somente no texto sobre homofobia em diversas universidades a que nos referimos, em que elas denunciam as violências de que são vítimas, como na matéria do caderno Ela sobre meninas de sexualidade em trânsito56.

Mas as travestis, com 80 citações na Folha, e 94 n’O Globo, superaram as lésbicas em nossa amostra, o que se explica pelo envolvimento de Andréia, Carla e Veida com o jogador Ronaldo. Mais do que as lésbicas ou qualquer outra identidade, as travestis tiveram sua imagem associada majoritariamente a situações negativas, confirmando o imaginário popular, captado em pesquisas acadêmicas (BENEDETTI, 2006), segundo o qual travestis são sinônimo de prostituição e violência57. Interessante é notar que antes do caso Ronaldo X travestis, o jornal O Globo havia chamado atenção, em série de matérias especiais sobre conquistas LBGTT, para a realidade de maiores dificuldades enfrentadas por travestis e transexuais em seu cotidiano, pelos preconceitos mais acentuados contra essas identidades. Pensamos que esse fato, somado a outros no próprio jornal carioca, assim como na Folha, apontam para uma não leitura de si mesmas pelas publicações, uma leitura descuidada ou uma memória de si algo um pouco precária.

56 DALBONI, Carolina. e VELASCO, Suzana. Estou lésbica. Rio de Janeiro: O Globo, 2008, páginas 1-

3, caderno Ela. 26/04/2008. Como a visibilidade é um problema, apesar de muitas das garotas terem se deixado fotografar (somente em duas fotografias aparecem duas juntas, em um total de seis fotos), houve caso de ocultamento pelo uso de nome fictício. E para evitar mal entendidos, o final da longa matéria vem com uma nota de esclarecimento: “P.S.: As repórteres Melina Dalboni e Suzana Velasco são apenas amigas.” Ah, bom!, diria Ancelmo Góis.

57 O que não impede serem elas procuradas por homens para programas, inclusive aqueles que, como o

jogador Ronaldo, se definem como heterossexuais convictos. No livro de Marcos Benedetti há detalhes sociológicos do desejo de homens por travestis, incluindo o fetiche de transarem com corpos que simulam os de mulheres, mas dotados de pênis. E, não raro, homens casados procuram sexo com as travestis em que são passivos, reforçando as ambiguidades entre os preconceitos expostos e as práticas que materializam desejos mantidas na sombra.

187 Transexual, com 35 citações na Folha, e 34 n’O Globo, foi a quarta identidade explicitamente referida de maior aparição. A maior incidência da identidade ocorreu por ocasião da 1ª Conferência Nacional GLBT, mas principalmente quando do anúncio de que o Ministério da Saúde autorizaria a realização de cirurgias de mudança de sexo pelo SUS. De modo geral, transexuais apareceram de forma positiva, exceto pelas cartas de leitores protestando contra as cirurgias. O que mais marca essa identidade nos textos e nas cartas é a confusão sobre o que é uma pessoa transexual, quase sempre confundida com travesti ou com homossexual.

As siglas LGBT, com 16 aparições na Folha, e 15 n’O Globo (à época da nossa amostra, GLBT), e GLS, com 12 aparições na Folha, e 6 n’O Globo, aparecem nos jornais muitas vezes fazendo referências a eventos das quais elas constam nos nomes, como nas diversas vezes referida Conferência. Podem também aparecer nas falas de entrevistados, sendo GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) referenciada mais comumente quando se trata de matérias abordando o consumo por pessoas LGBTT. Transformista refere-se a um universo mais artístico, a shows em boates ou performance durante a Parada, e teve 8 aparições na Folha e 6 n’O Globo.

HSH e MSM não são citadas nos jornais nessa forma, com poucas exceções, como no lançamento da campanha anti-Adis. A alta incidência das siglas (HSH com 57 aparições na Folha e 32 n’O Globo, e MSM com 18 citações na folha e 11 n’O Globo) aponta para textos nos quais há sugestões de relacionamentos homossexuais ou lésbicos, a partir de insinuações (a cantora que deu um selinho na colega, por exemplo). Forma muito comum em matérias policiais sobre assassinatos motivados por homofobia (conferir ARRUDA, 2001), costuma ocultar os reais motivos do crime, seja porque a família se recusa a oferecer dados, seja por desinteresse da polícia de investigar. Textos com essas formas de referência às homossexualidades são reforçadores, em certo sentido, da epistemologia do armário trabalhada por Eve Kosofsky Sedgwick (1990; 2007).

Um exemplo de texto no qual não aparece referência (variável que tem 51 aparições na Folha e 13 n’O Globo) é a carta do leitor que considera equivocada a lei que pune a homofobia, posto que ela seria uma fobia como outra qualquer (a carta será analisada adiante). Ali, apesar de a homofobia ser o tema principal, ela não está associada a lésbica, gay, bissexual, travesti ou transexual, bem como não há sugestão que a ligue a

188 HSH ou MSM. Nessa variável prevalece a citação explícita da homofobia sem que ela identifique uma vítima dentre as pessoas do universo LGBTT.

Questões outras devem ser lembradas no que diz respeito às identidades. Além do que apontamos relativamente a processos de visibilidade/invisibilidade, é preciso ressaltar que pessoas pertencentes a essas identidades são às vezes silenciadas em momentos cruciais. Eloquente foi o silenciamento das travestis, que na maioria das matérias tiveram seus pontos de vista, no auge da confusão com Ronaldo, divulgados pelo filtro do delegado, de modo diferente daquele que ocorreu com o jogador, que aparecia também por meio da sua assessoria, e não somente pela voz do delegado, e que teve a oportunidade de se explicar pelo Fantástico, com reprodução na Folha e n’O Globo. Silenciadas foram também as lésbicas na cobertura da Parada LGBTT, pois a caricatura que delas se fez no texto da Folha não foi construída para além da visão superficial das mesmas em cima do trio elétrico.

Do silenciamento de vozes dos atores identitários LGBTT detectado naquelas situações, assim como em outras, decorre o silenciamento de diversas dimensões da homofobia. Primeiro, porque pessoas LGBTT pertencentes aos estratos sociais que não se enquadram no público presumido da Folha e d’O Globo (classes média e alta urbanas, com elevado nível de educação formal e de consumo de bens materiais e de produtos culturais), praticamente não existem para os dois jornais. Salvo raríssimas exceções, estas marcadas pela aparição estereotipada e caricatural, como as personagens do primeiro “divórcio gay”, essas pessoas não são convocadas para as matérias como fontes ou têm acontecimentos nas quais estão implicadas divulgados. A homofobia costuma se manifestar às vezes de forma mais veemente nos locais onde residem essas pessoas, sem que elas disponham dos mesmos instrumentos para enfrentá-la ou mesmo para denunciá-la.

Um segundo silenciamento de dimensões importantes da homofobia está em que ela dificilmente vem associada a outras formas de preconceitos, misturando sexismo e racismo, por exemplo. Com isso, a homofobia reduz-se às formas mais evidentes das violências físicas e simbólicas, deixando passar até mesmo as sugestões de que há outros elementos complexificando a homofobia colocada sob os holofotes por acontecimento de grande repercussão. Foi o que ocorreu quando o advogado dos sargentos Laci e Fernando denunciou as perseguições e prisões patrocinadas contra seus

189 clientes como homofobia estatal, termo que foi citado sem qualquer tipo de problematização. Deixou-se, assim, escapar oportunidade de ampliar os sentidos da homofobia para os leitores, o que não significa prejuízos apenas do ponto de vista da qualificação das informações, mas também da perspectiva de ampliar as possibilidades de a sociedade, em seu conjunto, vir a tomar conhecimento dos prejuízos individuais e sociais que a homofobia, como qualquer outra forma de preconceito que desqualifica, que rebaixa as pessoas, retirando-lhes direitos fundamentais no campo da cidadania, é capaz de causar.