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A Mente Consciente e a Relação Corpo/Cérebro/Mente

2.4. O Contributo de António Damásio Para a Compreensão da Problemática

2.4.3. A Mente Consciente e a Relação Corpo/Cérebro/Mente

“Tu tens consciência do que fizeste?”; “Mete a mão na consciência!”; “A tua consciência é muito pequenina!”; “És mesmo inconsciente!”. Estas são algumas das frases que usualmente proferimos e que ilustram a importância que socialmente damos ao saber que estamos a fazer algo.

O código civil atribui mesmo enquadramentos penais substancialmente diferentes para pessoas que cometeram crimes em que não estavam conscientes das suas ações ou das consequências que daí podiam advir, das pessoas que cometeram crimes, através de ações deliberadas (conscientes), quer do próprio ato, quer das consequências daí resultantes. Quando se faz um testamento é, também, usual escrever “Na posse das minhas faculdades”. Na prática significa que a pessoa está consciente do ato que está a praticar. A consciência é, pois, socialmente uma característica muito valorizada no ser humano.

Damásio (2004, 2010) atribui grande significado à consciência, pois considera que este Saber (estar consciente) mais do que o Ser e o Fazer, representa um avanço significativo na regulação vital do organismo e, por conseguinte, nas possibilidades de sobrevivência da espécie humana. No entanto, para nós, é importante perceber em que medida a consciência, segundo Damásio, resulta, ou não, da interação corpo/cérebro/mente. Ou seja, se a consciência é mais um elemento a comprovar a indissociabilidade do corpo.

Damásio (2010) defende que a consciência é um estado mental em que o corpo humano tem conhecimento da sua própria existência e do contexto onde está inserido. Daqui, podemos deduzir que se a consciência é um estado mental, então sem a mente não há consciência. Aliás, para Damásio (2004), a influência da mente na “produção” da consciência é tão significativa, que considera equivalentes os processos consciência e mente consciente. Mas, a mente, como vimos anteriormente, é um processo que resulta da atividade cerebral. É através da integração de inúmeros circuitos neurais e correspondentes padrões neurais que o cérebro possibilita o aparecimento da mente. Contudo, os padrões neurais são imagens ou imitações das alterações corporais e do próprio cérebro. Compreende-se, assim, que o corpo é uma unidade corpo/cérebro/mente/mente consciente.

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No entanto, Damásio vai mais longe, pois ao esmiuçar a origem da mente consciente, evidencia que sem corpo, não há cérebro, não há mente e não há mente consciente.

Debrucemo-nos, então, sobre a forma como Damásio (2010) concebe a consciência e em que medida ela evidencia a unidade do corpo:

a) A consciência é um estado mental. Significa que, à semelhança da mente, a consciência é um processo muito complexo e não uma entidade fixa, alojada em alguma parte do cérebro. Quando a este processo é adicionado um Eu, o resultado é uma mente consciente.

b) Para alguém estar consciente é necessário observarem-se as seguintes condições: estar acordado (vigília); ter uma mente funcional e possuir nessa mente uma sensação de EU.

No processo de vigília, Damásio (2010) defende que a parte do tronco cerebral ativa está relacionada com o valor que se dá a cada situação. Isto significa que, se o ser humano estiver perante uma situação perigosa, um assaltante ou um cão com más intenções, esse objeto interage com o corpo, as alterações do corpo são mapeadas pelo cérebro, esses mapas vão ser processados pela mente, vão desencadear uma emoção, neste caso, no mínimo de medo, e desenvolver um sentimento. O estado de vigília aumenta, porque o corpo precisa de estar capacitado ao máximo para sobreviver à situação de perigo. Numa situação de tédio, o processo é semelhante, só que o estado de vigília baixa consideravelmente, ou até é suspenso, como quando estamos a dormir. Damásio (2010) realça que quando dormimos pode dar-se uma exceção na suspensão da consciência: é quando sonhamos. Só que é um caso excecional. A regra, para Damásio (2010) é: estar acordado para estar consciente. E, neste caso, o corpo participa ativamente no processo de vigília.

Outra situação que influencia, de acordo com Damásio (2010), o estado de vigília, é a luz (padrão de dia e de noite) pois afeta a função do hipotálamo alterando a secreção hormonal. Só que o sistema nervoso central só se apercebe das alterações de luz, através das alterações físicas dos órgãos dos sentidos. É através destas alterações que o cérebro e a mente constroem as ideias (imagens) sobre se é dia ou se é noite. Apercebemo-nos, deste modo, que, relativamente à vigília, o corpo propriamente dito assume um papel determinante.

A segunda componente que Damásio (2010) refere como indispensável à criação da consciência é a mente. Já abordamos, anteriormente, que, para Damásio (1994, 2000,

65 2004, 2010), o corpo é o chão onde caminha a mente. Sem corpo, não haveria cérebro, nem mente. Pelo menos, tal como Damásio (1994, 2000, 2014, 2010) a concebe no ser humano.

A terceira componente é o EU. É importante referir que, para Damásio (2010), o EU, à semelhança da mente, também não é uma estrutura fixa, mas um processo dinâmico, um processamento de imagens na mente e é constituído por três fases (proto-eu, eu nuclear e o eu autobiográfico):

a) O proto-eu consiste num aglomerado de circuitos neurais que mapeiam os aspetos mais estáveis do organismo. Desde o início do desenvolvimento do corpo humano que se estabelece uma comunicação corpo/ cérebro/mente. Este sentimento que o meu corpo existe, que está vivo, segundo Damásio (2010), resulta da integração de mapas do tronco cerebral e córtex cerebral e chama-se sentimento primordial. Este sentimento é produzido pelo proto-eu e, de acordo com Damásio (2010), vai estar não só na base de todos os sentimentos, seja resultantes de interações entre o corpo e os objetos, seja de sentimentos de emoção, como no surgimento da consciência. Veja-se como o corpo, na interação com o cérebro e a mente, está na base de todos os processos mentais complexos. Aliás, Damásio (2010), considera que não é possível exagerar na importância do sistema interoceptivo no aparecimento da mente consciente. Ora o sistema interoceptivo não é mais do que a constante troca de informação entre o corpo e o sistema nervoso central. Constitui-se como a informação que provém do meio interno e das vísceras: como, por exemplo, a temperatura, a fome e a sede. Transmitem, de acordo com Damásio (2010), uma informação independente da dimensão das estruturas onde ocorrem e, devido à sua constância, representam a origem ideal para a criação de uma estrutura estável do futuro EU.

b) A segunda fase do EU corresponde ao eu nuclear. Damásio (2010) considera que quando o corpo humano interage com um objeto altera-se. Relembramos que o cérebro e a mente só têm conhecimento dos objetos através das alterações do corpo. Estas alterações, assim como o respetivo mapeamento, vão, de acordo com Damásio (2010), interferir com o proto-eu e, por conseguinte, com os sentimentos primordiais. São estes sentimentos primordiais alterados, pelos inúmeros objetos que interagem com o corpo, que, para Damásio (2010), vão dar origem a um processo sólido do EU. O eu nuclear firmado no proto-eu e nos seus sentimentos primordiais é, segundo Damásio (2010), o processo mais importante na criação das mentes conscientes. Ao ser adicionado um processo sólido do EU (eu nuclear) à mente, segundo Damásio (2010), criou-se as condições para uma mente consciente, ou seja

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a subjetividade. Repare-se como o corpo é um elemento indispensável em todo o processo da consciência. Convém aqui fazer um parêntesis nas fases do eu para refletir o que significa para Damásio (2010) o termo subjetividade. Quando se liga um Eu a uma mente, passamos a ser conhecedores de muitas imagens que criamos e dos sentimentos que as acompanham. Ao interagirmos com uma bola ou com um livro, ocorrem alterações no nosso corpo que podem ser semelhantes a outros milhões de seres humanos, mas são específicas de cada um de nós. São como uma impressão digital. Essas alterações vão ser mapeadas pelo cérebro, processadas pela mente e, em muitos casos, originar uma resposta. Estes mapas, imagens, respostas, e restantes alterações, dizem respeito, segundo Damásio (2010), à privacidade do nosso ser. Tal e qual como quando experimentamos frio ou calor, tristeza ou alegria. O irmão gémeo de alguém que experimenta fome pode, na mesma altura, experimentar sede. À consciência de que algo se passa num corpo específico, Damásio (2010) chama subjetividade. Curiosamente, esta subjetividade tem simultaneamente caraterísticas objetivas. Há alterações a ocorrer no corpo (objetividade), mas que dizem respeito a um corpo específico (subjetividade).

c) A terceira fase do EU, para Damásio (2010), corresponde ao eu autobiográfico: este só pode existir se houver um eu nuclear; utiliza imagens memorizadas, seja de um passado recente ou longínquo; para a construção do eu autobiográfico são precisos dois mecanismos: o primeiro implica que as memórias evocadas sejam tratadas como objetos e tornadas conscientes ao nível do eu nuclear; no segundo mecanismo as imagens evocadas vão interagir com o proto-eu. Constata-se, assim, que para Damásio (2010), para além da própria definição de mente, como já vimos, incluir a participação do corpo, todas a condições indispensáveis para a criação da mente consciente (vigília, mente e o EU em todas as suas fases) requerem, igualmente, a presença e cooperação do corpo.

Nesta altura torna-se pertinente questionar o que representa para o corpo humano, que já tem cérebro e mente, possuir uma mente consciente. Damásio (2010) argumenta que à medida que o processamento de imagens se tornou mais complexo foi possível ao corpo humano adquirir, entre outras, capacidade de reflexão, de memória, maior criatividade e de linguagem. Na posse destas capacidades, Damásio (2010) refere que o corpo humano passou a gerir melhor as condições internas da sua existência, assim como as externas, pois passou a agir conscientemente sobre elas. Perante uma dor, uma sensação de sede, fome ou de perigo, o corpo humano, ao agir conscientemente sobre esse desequilíbrio, tem maiores probabilidades de sucesso.

67 Outro aspeto que, de acordo com Damásio (2010), decorre da aquisição da consciência foi a capacidade de antecipar cenários: o corpo humano passou a construir possíveis (futuros) cenários e, desse modo, prepara-se bem cedo para eles. Por último, para Damásio (2010), a consciência, ao possibilitar a criação de cultura, criou novas formas de homeostase ao nível da sociedade: o sistema judicial; a organização política, económica, a arte, a redução da violência, o aumento da tolerância e a passagem progressiva para poderes mais humanistas são disso exemplo. Tudo com o objetivo de preservar o maior valor que o ser humano tem – a própria vida ou o corpo que a criou.

À semelhança do aparecimento do cérebro e da mente, a mente consciente surgiu, em primeiro lugar, para cuidar do corpo humano. É esse o seu propósito. E é, também, por ter esse entendimento que Damásio (2010, p.39) diga que “ De entre as ideias apresentadas neste livro, nenhuma é mais importante do que a noção de que o corpo é o alicerce da mente consciente”.

2.4.4. O Contributo da Conceção de Corpo de Damásio para uma Prática da