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A importância da conceção de corpo humano no valor educativo da Educação Física

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Academic year: 2021

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Universidade de Trás-Os-Montes e Alto e Douro

A Importância da Conceção de Corpo Humano no

Valor Educativo da Educação Física

Dissertação de Mestrado em Ensino de Educação Física nos Ensinos Básico e

Secundário

Humberto Pereira Ferreira da Costa

Orientador: Professor Doutor António Paulo Vieira de Sá Marques de Oliveira

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Universidade de Trás-Os-Montes e Alto e Douro

A Importância da Conceção de Corpo Humano no

Valor Educativo da Educação Física

Dissertação de Mestrado em Ensino de Educação Física nos Ensinos Básico e

Secundário

Humberto Pereira Ferreira da Costa

Orientador: Professor Doutor António Paulo Vieira de Sá Marques de Oliveira

Composição do Júri:

Sandra Celina Fernandes Fonseca

Maria Dolores Alves Ferreira Monteiro

António Paulo Vieira de Sá Marques de Oliveira

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III Dedicatória

Dedico este Trabalho ao meu pai Luís, à minha mãe Odete, ao meu irmão Luís, à minha irmã Júlia, ao meu irmão Zé, ao meu tio Benjamin, à minha tia Natércia, à minha esposa Ana e às minha filhas Carolina e Helena.

Quero dedicar também àquele aluno e àquele professor que no primeiro dia de aulas cruzam o olhar e acreditam que tudo é possível. Para eles dedico-lhes os seguintes versos:

Uma bola de pano, num charco Um sorriso traquina, um chuto

Na ladeira a correr, um arco O céu no olhar, dum puto

Uma fisga que atira, a esperança Um pardal de calções, astuto

E a força de ser, criança Contra a força dum chui, que é bruto

Ary dos Santos “Os putos”

Trago a fisga no bolso de trás E na pasta o caderno dos deveres Mestre-escola, eu sei lá se sou capaz De escolher o melhor dos dois saberes

O meu pai diz que o sol é que nos faz Minha mãe manda-me ler a lição Mestre-escola, eu sei lá se sou capaz

Faz-me falta ouvir outra opinião

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V

Agradecimentos

Ao meu orientador Professor Doutor António Paulo Sá.

Aos entrevistados, pela disponibilidade e amabilidade demonstrada: Manuel Sérgio, Rui Costa, Luís Coelho e Vítor Frade.

Gostaria de agradecer particularmente ao professor Vítor Frade por tudo o que aprendi, que está muito para lá de uma entrevista ou dos limites de uma ou mil citações.

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VII

Resumo

Porque é que no âmbito na educação física se valoriza tanto as capacidades condicionais e o desempenho muscular? Ao consultarmos os programas para o Ensino Básico e Secundário e vários manuais da disciplina, constatamos a abundância de propostas para o desenvolvimento da força, da resistência ou da velocidade e raramente é contemplada a criatividade.

Que conceção de corpo está subjacente a esta forma de pensar e de agir? Como é que ela foi originada? Quais são as suas caraterísticas? Estará ela adequada à natureza humana? Em caso de resposta negativa que alternativas poderemos propor? Estas foram as questões que estiveram na base deste trabalho.

O grupo de estudo foi constituído por quatro personalidades de áreas do conhecimento substancialmente diferentes (Manuel Sérgio – filósofo e professor universitário, Rui Costa – neurocientista -, Luís Coelho – fisioterapeuta - e Vítor Frade – ex-professor universitário e ex-treinador de futebol). A escolha baseou-se no seguinte critério: que a atividade profissional esteja ou tenha estado ligada ao estudo do corpo humano e possua obra que tenha, pela sua originalidade, impacto a nível social.

A melhor forma para estudar fenómenos eminentemente subjetivos, como é a conceção do corpo, é escolher uma metodologia que compreenda a natureza desses fenómenos. Que entenda que para a mesma ação o comportamento humano pode ter significados opostos. Entendemos, deste modo, não fazer uma abordagem quantitativa mas sim qualitativa. Foi também em função destes preceitos que a entrevista não obedeceu a um guião, mas assumiu uma caraterística semiestruturada. Justifica-se, assim, que a nossa opção tenha recaído na etnometodologia.

Em resultado da pesquisa e da discussão efetuadas concluímos que a conceção de corpo que esteve na origem da educação física e que a tem acompanhado até à atualidade é claramente cartesiana-positivista-capitalista-médico analista. Foi em função do entendimento de que a natureza da mente era distinta da natureza corporal que o corpo foi dividido em duas substâncias. Preocupações com a rentabilidade do movimento agudizaram essa distinção e mecanizaram a ação humana.

No sentido de potenciar as capacidades do corpo humano, a educação física deve renunciar à conceção dualista e mecânica e valorizar a conceção holista e criativa. O professor deve incrementar os exercícios onde abundem a ambiguidade, a aleatoriedade, a

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complexidade e onde o aluno sinta que é sujeito da ação. Só desta forma é possível desenvolver a capacidade que nos distingue das demais espécies de seres vivos, a CRIATIVIDADE.

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Abstract

Why are both conditional ability and muscle performance so much valued in physical education? If we have a look at the primary and secondary school syllabuses and at several physical education books, we will find plenty of proposals for the development of strength, endurance or speed but creativity is rarely considered.

What kind of body conception underlies this way of thinking and acting? How was it originated? What are its characteristics? Is it adequate to human nature? If not what kind of alternatives can we propose? These were the questions that were on the basis of this study.

The study group consists of four personalities from substantially different knowledge areas (Manuel Sérgio - philosopher and university professor, Rui Costa - neuroscientist - Luis Coelho - physiotherapist - and Vitor Frade - former university professor and former football coach) .The choice was based on the following criteria: being their professional activity connected or having been connected with the study of the human body and having their work, by its originality, some social impact.

The best way of studying eminently subjective phenomena, such as the conception of the body, is to choose the right methodology to understand the nature of these phenomena. It should also understand that for the same action human behavior can have opposite meanings. We’ve therefore decided on a qualitative approach rather than on a quantitative one. It was also based on these principles that the interview did not follow a script, but assumed a semi-structured feature. This is the reason why our choice was the ethnomethodology.

As a result of the research and discussion hereby conducted we conclude that the body conception underlying physical education and accompanying it to the present time is clearly Cartesian-positivist-capitalist-medical analytic. It was due to the understanding that the nature of mind and body was different that the body was divided into two substances. Concerns about the profitability of movement sharpened this distinction and mechanized human action.

In order to enhance the abilities of the human body, physical education should waive this dual and mechanical conception and value the holistic and creative one. The teacher should propose exercises in which ambiguity, randomness, and complexity abound and in which the student feels himself the subject of the action. Only this way it is possible to develop the ability that distinguishes us from the other living things, CREATIVITY.

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Índice Geral

Dedicatória ...III Agradecimentos ... V Resumo ... VII Abstract ... IX Índice Geral ... XI 1 - Introdução ... 1 2 - Revisão da Literatura ... 3

2.1. A Conceção de Mundo de Descartes ... 3

2.1.1. O Corpo Dualista em Descartes ... 7

2.1.2. O Corpo Mecanicista em Descartes ... 9

2.2. A Construção de um Contexto Cartesiano ...12

2.2.1 A Influência do Positivismo na Conceção de Corpo ...12

2.2.2. A Influência do Mercantilismo na Conceção de Corpo ...14

2.2.3. A Influência da Medicina na Conceção de Corpo ...16

2.3. O Nascimento da Educação Física ...18

2.3.1. Grandes Correntes da Educação Física...20

2.3.2. A Educação Física em Portugal ...25

2.3.2.1 A Educação Física em Portugal no período de 1834 a 1910 ...27

2.3.2.2 A Educação Física em Portugal no período de 1910 a 1940 ...29

2.3.2.3 A Educação Física em Portugal no período de 1940 a 1974 ...34

2.3.2.4 A Educação Física em Portugal no período de 1974 aos nossos dias ...36

2.4. O Contributo de António Damásio Para a Compreensão da Problemática Corpo/Mente ...53

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2.4.2. As Emoções e os Sentimentos e a Relação Corpo-Cérebro-Mente ...60

2.4.3. A Mente Consciente e a Relação Corpo/Cérebro/Mente ...63

2.4.4. O Contributo da Conceção de Corpo de Damásio para uma Prática da Educação Física ...67

3 - METODOLOGIA ...77

3.1. Justificação Metodológica ...77

3.2. Grupo de Estudo ...79

3.3. Procedimentos de Aplicação da Entrevista ...81

4 - Discussão dos Resultados ...83

5 - Conclusão ...93

Referências ...97 Anexos ... XIII

Anexo 1 – Entrevista a Manuel Sérgio ... XIII Anexo 2 – Entrevista a Rui Costa ... XXXV Anexo 3 – Entrevista a Luís Coelho ... LVII Anexo 4 – Entrevista a Vítor Frade ... LXVII Anexo 5 ... CI Anexo 6 ... CVII Anexo 7 ... CXV Anexo 8 ... CXVII Anexo 9 ... CXXV Anexo 10 ... CXXIX Anexo 11 ... CXXXIII

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1 - Introdução

Sei que sou sólido e são, para mim num permanente fluir convergem os objetos do universo; todos estão escritos para mim e eu tenho de saber o que significa o que está escrito. Walt Whitman

Todos os dias relacionamo-nos com pessoas e tomamos decisões. A maneira como agimos é, por vezes, decisiva no nosso futuro e no futuro das pessoas com quem lidamos. Subjacente ao nosso de modo de atuação está, entre outros aspetos, a ideia que nós temos do que é um ser um humano ou seja a conceção de corpo.

O facto de vivermos numa sociedade significa que, segundo Merleau-Ponty (2002, p.51) “O contacto de nós mesmos connosco faz-se sempre através de uma cultura”. Constrói-se uma mente coletiva que vai influenciar, em maior ou menor grau, a maneira como percecionagimos no mundo.

Com este trabalho propusemo-nos investigar como, no âmbito da educação física, essa mente coletiva concebe o corpo: como se originou; quais são as suas caraterísticas essenciais; estará ela adequada à natureza humana e que alternativas poderemos propor.

Santos (1987) diz que o modelo de racionalidade que preside à ciência moderna formulou-se a partir da revolução científica do século XVI. Descartes (1596-1650) assume-se como a personalidade mais influente, ao ponto do assume-seu pensamento marcar decisivamente o pensamento moderno. Relativamente ao corpo humano, Descartes concebeu-o como sendo composto de alma (mente) e corpo. O atributo pensar era exclusivo da alma. O corpo (sem alma) é comparado a uma máquina (mecanicismo). Damásio (1994) reconhece a influência, ainda hoje, do pensamento de Descartes, quando afirma que quer a formação nas escolas de medicina, quer a atuação de alguns médicos, negligencia a mente enquanto função do organismo.

Ao longo do século XX, a filosofia, nomeadamente Merleau-Ponty, e as neurociências começam a contestar o corpo dualista de Descartes em favor de uma conceção holística de

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corpo. Não é inocentemente que Damásio escolhe, para o seu 1º livro, o título “O Erro de descartes”. Contudo a educação física revela dificuldades em compreender e operacionalizar uma conceção de corpo mais complexa e imaginativa e mantém caraterísticas dualistas e mecânicas. No sentido de aproveitar as potencialidades que o corpo humano possui, particularmente a criatividade, pensamos que é fundamental uma mudança ao nível da conceção de corpo.

Este trabalho encontra-se estruturado em sete capítulos. No primeiro capítulo – Introdução - elaboramos uma contextualização que facilitasse uma primeira leitura do trabalho e sensibilizasse para a importância da conceção de corpo na forma como agimos. No segundo capítulo – Revisão da Literatura – fez-se um enquadramento teórico face ao estado da arte que permitisse compreender as diversas influências que a conceção de corpo foi tendo e as novas possibilidades que emergem; o contexto que origina o nascimento da educação física; a educação física em Portugal e suas caraterísticas principais. No terceiro capítulo – Metodologia – elaborou-se não só a justificação da opção metodológica ter recaído na Etnometodologia como a caraterização do grupo em estudo e os procedimentos que foram tidos em conta na aplicação da entrevista. No quarto capítulo – Discussão dos Resultados – fez-se uma fusão entre o contributo dado pelos quatro entrevistados e o conhecimento pesquisado, com o objetivo de perceber melhor, no âmbito da educação física, as vantagens e desvantagens da conceção de corpo cartesiana e da conceção Holística. No quinto capítulo – Conclusão – procuramos, em função dos capítulos anteriores, expor as conclusões relativamente à conceção de corpo e alguns dos seus procedimentos, que deve vigorar na educação física. No sexto capítulo – Bibliografia - encontra-se todo o suporte bibliográfico que alicerçou o nosso trabalho. No sétimo capítulo – Anexos – encontram-se todas as entrevistas realizadas assim como partes dos planos de aulas dos alunos estagiários contemplados neste estudo.

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2 - Revisão da Literatura

2.1. A Conceção de Mundo de Descartes

E, nada querendo dizer das ocupações dos outros, pensei que não podia fazer melhor do que prosseguir naquela em que me encontrava, ou seja: empregar toda a vida a cultivar a minha razão e avançar quanto me fosse possível no conhecimento da verdade, segundo o método que me propusera. (Descartes, 1977)

Descartes (1977) preocupou-se, ao longo da sua obra, em estabelecer um acordo fundamental entre as leis da natureza e as leis da matemática. Procurou, assim, realizar a esperança pitagórica de submeter o universo aos números e simultaneamente encontrar para a indústria do homem um domínio certo sobre as coisas. “ As Regulae ad directionem ingenii de 1627 esboçam o projeto de uma «matemática universal» que deve unificar as ciências através do método inspirado no processo hipotético-dedutivo da matemática” (Branco, 1998, p.128).

Nos livros que nos “deixou” encontramos, assiduamente, preocupações com a procura da clareza, verdade, certeza, objetividade, ordem, distinção, análise, evidência e redução. Pelo contrário, rejeitava a complexidade, sem uma ordem natural, a confusão, o enredamento, a diversidade ou a dúvida (Descartes, 1984).

Compreende-se, assim, que a partir do momento que a idade lhe permitiu sair da sujeição dos seus tutores abandonou o estudo das letras (Descartes, 1977). Considerava que, nesta área, o homem formula raciocínios que não são mais do que especulações que não produzem efeito algum senão o de colher vaidade (Descartes, 1977). Falta-lhe a tal clareza, certeza ou objetividade. Como exemplo apresentava a filosofia onde a propósito duma mesma matéria, podem existir várias opiniões, defendidas por doutas pessoas, mas, sem que possa haver mais de uma verdadeira (Descartes, 1984). Relativamente “às outras ciências, na medida em que vão buscar os seus princípios à filosofia, considerava que nada de sólido podia constituir-se em cima de fundamentos tão pouco firmes” (Descartes, 1977, p.25).

Descartes (1984) comprazia-se, sobretudo com a matemática, pela certeza e evidência das suas razões. Para Descartes (1977, p. 36) de “entre todos os que até agora procuraram

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a verdade nas ciências, só os matemáticos conseguiram encontrar algumas demonstrações, ou seja, algumas razões certas e evidentes”. Defendeu, inclusive, que o poder ou a faculdade que Deus nos deu para distinguir o verdadeiro do falso é infalível quando aplicado corretamente e esta certeza estende-se a tudo quanto foi demonstrado na matemática: é impossível que dois mais três tenham uma soma diferente de cinco ou que um quadrado só tenha três lados (Descartes, 2006). Advoga, também, que o conhecimento que temos se estende sobre os corpos no mundo e depois estende-se a todas as coisas que podem ser demonstradas acerca destes corpos, mediante os princípios da matemática ou outros tão evidentes e certos (Descartes, 2006).

Descartes (1984) ambicionava encontrar os princípios gerais ou as primeiras causas de tudo o que existe ou pode existir no mundo. Ao examinar as regras que orientam a lógica, a álgebra e a geometria constatou que elas são obscuras e confusas o que embaraça o espírito (Descartes, 1977). No sentido de encontrar um procedimento que lhe permitisse ver o mundo de uma forma distinta e clara criou um método. Este método foi-lhe inspirado pelas suas meditações de 1619 sobre as matemáticas e dele derivarão a metafísica cartesiana e as suas contribuições científicas (Descartes, 1977).

O método cartesiano era constituído por quatro preceitos. O primeiro estipulava que jamais receberia por verdadeira alguma coisa que não conhecesse evidentemente como tal (Descartes, 1977). Depreende-se, mais uma vez, a preocupação de Descartes em só aceitar as coisas que eram claras, distintas e objetivas. Tudo aquilo que lhe levantasse a mais pequena dúvida, a mais pequena confusão, era rejeitado. “Todo o meu propósito tendia a possuir a certeza, a rejeitar a terra movediça e a areia para encontrar a rocha ou a argila” (Descartes, 1977, p.46). Relativamente aos aspetos subjetivos, caraterísticos, do ser humano como a tristeza, a alegria, o medo ou outros semelhantes, não existiam em Deus e ele próprio afirmava que gostaria de estar isento (Descartes, 1984). As qualidades intrínsecas do ser humano, a sua subjetividade, são desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as quantidades. O que não é quantificável é cientificamente insignificante (Santos, 1993).

O segundo preceito do seu método aborda a importância de dividir em tantas parcelas quanto fosse possível e requerido para as melhor resolver (Descartes, 1977). Face à complexidade dos objetos, particularmente dos organismos biológicos, Descartes, propunha-nos a análise como forma de simplificar essa complexidade. É importante referir que o termo análise tinha um duplo significado: por um lado significava um capítulo da geometria e por outro um método de descoberta (Descartes, 1977). Em função do tema investigado nesta tese é este último que interessa mais. O termo análise, para Descartes

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5 (1984, p.186), representa, então, um “método de descoberta matemático por decomposição e redução, que consiste em considerar a questão posta, teorema ou problema, como já resolvida e em decompô-la progressivamente nos seus elementos, até a reduzir a qualquer outra proposição mais simples já demonstrada ou admitida como princípio”.

Descartes tinha consciência que esta simplificação visava tornar o seu conhecimento mais fácil. Os elementos que resultavam dessa redução eram analisados separadamente e sem os relacionar com nada, para, posteriormente os poder aplicar a todas as outras coisas a que pudessem convir (Descartes, 1977). Mas, mesmo, que considerasse vários elementos em conjunto, importava que fossem explicados por algumas cifras, o mais reduzidas que fosse possível (Descartes, 1977).

Descartes dizia relativamente ao corpo humano que se podia ter duas noções claras e distintas: uma de uma substância criada que pensa, que é alma e outra de uma substância extensa, que é o corpo propriamente dito, ou seja a matéria. Como considera que a extensão constitui a natureza do corpo e que aquilo que é extenso pode ser dividido em várias partes então pode aplicar ao corpo o segundo preceito do seu método: dividir o corpo em quantas partes fosse possível no sentido de o conhecer melhor (Descartes, 2006). É de salientar que a existência no corpo humano de uma alma, a parte imaterial, e de um corpo, parte material, constitui já em si uma divisão mas, posteriormente, ainda pode dividir a parte material em outras partes mais elementares.

Ao aplicar o segundo preceito do seu método ao corpo humano, e também aos restantes seres vivos, Descartes, de acordo com (Soromenho Marques, 1998, p.416) evidencia “…uma vontade talvez «sintomática», de silenciar por redução o problema da enorme complexidade suscitada pela vida, pelos organismos biológicos enquanto objetos do conhecimento”. O mundo é complicado e a mente humana não o pode compreender na sua totalidade. Conhecer significa dividir e classificar para posteriormente poder determinar relações sistemáticas entre o que se separou (Santos, 1993).

“É curioso verificar que outra das vias seguidas por Descartes para «desencantar» o universo biológico, para o remeter tranquilamente para uma simples modalidade do reino físico das coisas extensas, consistirá em concentrar a sua atenção sobre o crescimento quantitativo do organismo e não sobre a reprodução dos organismos ou a transmissão dos carateres hereditários que eram temas crónicos no século XVII (Soromenho-Marques, 1998). Estes dois últimos fenómenos colocam, a Descartes, problemas de complexidade que ele não consegue resolver. Face a algo que não se lhe apresente distinto e claro, Descartes aplica o primeiro preceito do seu método e rejeita-o.

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No que respeita ao crescimento quantitativo dos organismos, inclusive do corpo humano, Descartes (2006, p.272) diz que “todos os dias vemos plantas a crescer e se não concebermos que algum corpo for acrescentado ao seu será impossível conceber como se tornam maiores do que antes". Este género de abordagem permite-lhe um conhecimento mais claro, uma maior certeza e segurança sobre um problema tão complexo como é o do crescimento nos seres vivos. E esta era uma preocupação em Descartes, jamais receber por verdadeira coisa alguma que não conhecesse evidentemente como tal (Descartes, 1977). Contudo, ao considerar o crescimento orgânico como um alargamento por expansão e agregação compreende-o como uma intensificação material no quadro de uma mesma estrutura e não o compreende ao nível da génese das estruturas e das mutações internas e qualitativas no seu processo de transformação e crescimento (Soromenho-Marques, 1998). Isto é significativamente importante para Descartes: a sua preocupação em construir um conhecimento seguro leva-o a aproximar o desenvolvimento do corpo humano de um fenómeno determinístico, logo mais facilmente objetivável. Ao compreender o desenvolvimento do corpo humano no quadro de uma mesma estrutura desconsidera a importância do meio na construção desse mesmo crescimento. Por muito que se altere o meio, fomente e enriqueça as interações com o ser humano, o seu crescimento far-se-á sempre dentro de uma mesma estrutura.

O terceiro preceito do método cartesiano estipulava que o pensamento deveria ser conduzido por uma ordem “começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer para subir pouco a pouco, como que por degraus, até ao conhecimento dos mais complexos, e supondo a existência de ordem entre aqueles que não se sucedem naturalmente uns aos outros” (Descartes, 1977, p.35). Descartes, na ânsia de só considerar verdadeiro o que lhe era apresentado como claro e distinto, considera a progressão linear como metodologia indispensável à aquisição do conhecimento. É através de uma progressão lenta, passo a passo, degrau a degrau, que o nosso conhecimento passa do simples para o complexo. Perante objetos complexos como o corpo humano ou os costumes dos homens, Descartes (1984), não encontrava muito que lhe desse segurança e descobria quase tanta diversidade quanto ele notara, anteriormente, nas opiniões dos filósofos. É, pois, na tentativa de construir um conhecimento seguro que perante objetos complexos utiliza a redução e a progressão.

O quarto preceito do método de Descartes transmite-nos que o autor predispõe-se a fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais que fique seguro de nada omitir (Descartes, 1977). Descartes, ambiciona elaborar um modelo teórico que trace a constituição do universo (Branco, 1998). Isso é evidente quando diz no “Princípios da

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7 Filosofia” que “Assim, mediante uma fácil enumeração posso demonstrar que não há nenhum fenómeno na natureza cuja explicação tenha sido omitida deste tratado” (Descartes, 2006, p.127).

Mas, no sentido de ter segurança no seu conhecimento, reduz a complexidade da ordem cósmica a um conjunto de leis simples. É um conhecimento causal, segundo Santos (1993), que aspira à formulação de leis, à luz de regularidades observadas no sentido de prever o comportamento futuro dos fenómenos. Parte da ideia da ordem e da estabilidade do mundo, a ideia de que o passado se repete no futuro. O mundo da matéria é uma máquina cujo funcionamento se pode determinar exatamente por meio de leis físicas e matemáticas (Santos, 1993). O corpo humano insere-se nesse mundo da matéria e a sua ação passa a ser explicada pelas suas caraterísticas exteriores e objetiváveis (Santos, 1993). A subjetividade é completamente ignorada.

2.1.1. O Corpo Dualista em Descartes

A alma é colocada em mim por Deus (Descartes, 1977)

O corpo humano para Descartes era constituído por duas substâncias diferentes – dualismo cartesiano: a alma e o corpo. Cada substância tinha um atributo que constituía a sua natureza e a sua essência e do qual todos os outros atributos dependiam. O da alma é o pensamento e o do corpo é a extensão em comprimento, altura e largura. (Descartes, 2006). É importante notar a distinção que Descartes fazia relativamente aos atributos de cada substância. O atributo pensar é exclusivo da alma e em caso algum surge como uma caraterística do corpo ou resultante da união das duas substâncias. A natureza da alma enquanto substância é completamente distinta do corpo e a noção que temos de alma ou pensamento precede a de corpo (Descartes, 2006). Aliás Descartes (1984, p.66) é elucidativo quando afirma “Assim como não concebemos que o corpo pense de nenhuma maneira, temos razão em acreditar que todas as espécies de pensamentos que em nós existem pertencem à alma”.

Mas Descartes não só não estabelece um dualismo de substância como atribui significados muito diferentes a cada uma delas. Uma importante distinção é feita quando afirma: eu sou uma substância cuja essência ou natureza é apenas e inteiramente pensar e

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que para existir, não precisa de qualquer lugar nem depende de qualquer coisa material (Descartes, 1977). Aliás, para Descartes (1977), pode-se fingir que não se tem corpo nem existir lugar onde se esteja que, mesmo assim, não se podia fingir que não se existia. É com base nestas convicções que Descartes estabelece o primeiro princípio da filosofia que procurava: eu penso, logo existo (Descartes, 1997).

O corpo, matéria, é, assim, relegado para o domínio das coisas secundárias pois não participa nem no pensamento nem na constituição do eu. Descartes chega mesmo a afirmar que ao examinar as funções do corpo humano, sem o contributo da alma, encontra exatamente as mesmas que encontraria se analisasse um animal irracional. Mas, ao invés, não seria possível encontrar alguma que dependente do pensamento, nos pertence enquanto homens (Descartes, 1997).

A natureza distinta entre as duas substâncias não obsta que Descartes considere haver interações entre a alma e o corpo. A alma, segundo o filósofo, está conjuntamente unida a todas as partes do corpo mas há uma pequena glândula pineal, onde exerce mais particularmente do que nas outras partes. Esta glândula está situada na parte mais interior do cérebro e suspensa por cima do canal onde os espíritos comunicam (Descartes, 1984). A alma ao movimentar a glândula impele os espíritos para os poros do cérebro, por onde passam os músculos, desencadeando o movimento dos membros (Descartes, 1984). Considera, ainda, Descartes (1977) que a alma não pode estar alojada no corpo humano à maneira dum piloto no seu navio mas como é necessário estar junta e unida mais estreitamente com ele para assim compor um verdadeiro homem. O filósofo que considerava o corpo constituído por duas substâncias com atributos independentes considerava igualmente a necessidade de uma estreita relação entre essas duas mesmas substâncias.

É, então, importante perceber melhor esta relação entre as duas substâncias para melhor compreendermos a conceção de corpo de Descartes: a alma relaciona-se apenas com o conjunto dos órgãos do corpo e nunca com a extensão, com as dimensões ou com as propriedades da matéria (Descartes, 1984). Esta independência da alma relativamente ao corpo permite-lhe, no caso de ao corpo ser retirado alguma parte, manter a sua integridade pois como diz Descartes não podemos conceber metade ou um terço da alma. Um caso paradigmático desta independência observa-se quando o conjunto de órgãos se dissolve e o corpo morre, a alma apesar de estar relacionada com ele separa-se inteiramente (Descartes, 1984). Tal separação demonstra bem que a nossa alma é de uma natureza inteiramente diferente do nosso corpo e portanto não está sujeita a morrer com ele. Ela é imortal (Descartes, 1977). Compreende-se assim que, em momento algum, a tal estreita

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9 relação entre a alma e o corpo permite ultrapassar o dualismo de substância. As duas substâncias interagem para “compor” um homem mas sem perderem a sua identidade inicial. Descartes (2006) chegou mesmo a considerar que tal interação, em determinados momentos da nossa vida, prejudicava a alma, parte distinta do nosso corpo o que evidencia bem o dualismo de substância: nos primeiros anos a nossa alma ou pensamento fica tão fortemente ofuscado pelo corpo que não conhece nada distintamente. Esta ideia volta a ser evidente quando Descartes (1977, p.54) afirma no «Discurso do Método»: “a natureza inteligente, é distinta da corporal, tendo em conta que toda a composição revela dependência e que a dependência é manifestamente um defeito, julguei que não podia ser uma perfeição em Deus devido a ser composto por duas naturezas”.

2.1.2. O Corpo Mecanicista em Descartes

O corpo dum homem vivo difere tanto do dum morto como um relógio ou qualquer autómato difere do mesmo relógio ou de qualquer outra máquina quando está estragada (Descartes, 1984)

Descartes considera o mundo um modelo mecânico que imita e repete os comportamentos naturais. Aliás, não via nenhuma diferença entre as máquinas feitas pelos artesãos e os diversos corpos formados exclusivamente pela natureza (Descartes, 2006). “Por exemplo, quando um relógio marca as horas por meio das rodas que o compõem, isso não lhe é menos natural do que uma árvore produzir frutos” (Descartes, 2006, p.275). Neste sentido, segundo (Branco, 1998), elabora um modelo teórico que traça a génese da constituição do universo postulando as causas eficientes enquanto princípios evidentes da conceção mecanicista: um corpo quando choca com outro perde uma quantidade de movimento proporcional àquela que o outro, com quem chocou, ganhou. Deste modo explica as causas eficientes através das forças de contacto e não considera nenhuma força oculta como a ação à distância (Branco, 1998).

Descartes recorre, frequentemente, à analogia entre máquinas e fenómenos naturais. Um, bastante paradigmático, diz respeito à do relojoeiro industrioso e a infinidade de meios pelos quais Deus fez as coisas materiais. Foi Deus quem criou a matéria com movimento e é a causa desse movimento. Mas, para este filósofo, Deus só intervém inicialmente e desde

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que o movimento esteja impresso na matéria esta funciona segundo as leis da natureza. Como considera que esta não tem vazio o movimento propaga-se por contacto – definição de causa eficiente. Deste modo, as causas eficientes, de acordo com Branco (1998), asseguram autossuficiência à conceção mecanicista do universo, só precisam de um «empurrão» inicial, e funcionam paralelamente à ação de Deus.

No livro “ O Tratado do homem” Descartes mostra a aplicação do mecanismo ao corpo humano e descreve este como uma máquina (Branco, 1998). Isto só é possível porque quando promoveu, no corpo humano, a distinção entre pensamento e extensão, ou seja entre a alma e o corpo, remeteu-o para o domínio das coisas materiais (Branco, 1998).

Descartes considera mesmo que, se existisse alguma máquina com órgãos e a figura de um animal sem razão, não teríamos nenhum meio de reconhecer que elas não seriam da mesma natureza da desses animais – definição de animal-máquina (Descartes, 1977). Atente-se que é dito animal sem razão. Esta, convém lembrar, é sinónimo de pensamento que, como já vimos, é um atributo da alma. Também já se constatou que, para Descartes, o corpo em momento algum pensa. Pode-se então depreender que, o corpo, antes de Deus lhe juntar a alma, não se distinguia de uma máquina. Isto mesmo é considerado quando afirma “ embora se note desigualdade entre os animais duma mesma espécie como se nota entre os homens e uns sejam mais facilmente domesticáveis do que outros, não é crível que um símio ou um papagaio dos mais perfeitos da sua espécie não igualassem, por isso, uma criança das mais estúpidas ou, ao menos, uma criança de cérebro perturbado, se a alma deles não fosse duma natureza inteiramente diversa da nossa” (Descartes, 1977, p.76). No corpo humano, a substância que permite diferenciar o homem da máquina é a alma. O corpo do homem é semelhante ao de uma máquina caso esta possuísse órgãos e a figura de um homem.

Descartes (1984) considera, também, que as perceções no ser humano são de duas espécies, umas tendo por causa a alma e outras o corpo. Para além de aludir, mais uma vez, ao dualismo corpo-alma notamos que as perceções da nossa vontade têm como causa, exclusivamente, a alma e estão, portanto, arredadas do corpo. Neste, a maior parte das perceções depende dos nervos e algumas que se chamam fantasias têm unicamente por causa os espíritos (Descartes, 1984). É importante referir que espíritos – espíritos animais – para Descartes (1984), são matéria, são subtis partes do sangue, e não pensamento ou qualquer atributo da alma. Descartes (1984) distingue mesmo as fantasias do corpo da imaginação da alma: naquelas a vontade não participa na sua formação logo não podem ser incluídas nas ações da alma. Chama ações a todos os nossos atos voluntários, porque sentimos que vêm diretamente da alma e parecem depender apenas dela (Descartes,

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11 1984). A vontade é uma qualidade da alma nunca do corpo. A este está destinado uma função puramente mecânica. “Todos os movimentos que fazemos sem que a vontade intervenha, como acontece muitas vezes quando respiramos, andamos, comemos, em suma, quando praticamos as ações que os animais também praticam, não dependem senão da conformação dos nossos membros e do curso que os espíritos, excitados pelo calor do coração, seguem naturalmente no cérebro, nos nervos e nos músculos; exatamente como o movimento dum relógio é produzido apenas pela força da sua mola e forma das suas rodas” (Descartes, 1984, p. 75). Este automatismo integral fundamenta a hipótese dos animais (corpo) – máquinas (máquina).

Tudo o que se passa nos animais, como refere Descartes (1984) explica-se pela dinâmica dos espíritos animais, sem a intervenção de qualquer princípio não material. No homem, quanto às suas funções fisiológicas, sem intervenção da alma, tudo se passa como se fosse um animal, simples autómato. Temos, então, um corpo sem alma – pensamento – e sem vontade e é a própria excelência do instinto a manifestar a excelência da máquina e a sua pré-adaptação a condutas estereotipadas. O mesmo mecanismo explica pela repetição, a aquisição de reações novas (Rodis-Lewis, 1979). “Julgo que se chicoteássemos um cão cinco ou seis vezes ao som de um violino, tão depressa ele ouvisse uma outra vez esta música, começaria a ganir e a fugir” (Mesnard, 1630, citado por Rodis-Lewis, 1979).

Para Soromenho-Marques (1998) o essencial da conceção cartesiana sobre a essência do fenómeno biológico consiste na afirmação de que todo o corpo orgânico é redutível ao modelo de máquina e todas as funções orgânicas podem ser remetidas para o mesmo plano da causalidade física. A analogia do relógio (máquina), ainda de acordo com Soromenho-Marques (1998), consagra a integração das causas do movimento biológico no padrão dinâmico da causalidade inorgânica. A caraterística relevante, para Descartes, dos corpos orgânicos é a de serem portadores de movimentos autónomos. São autómatos feitos por Deus.

Descartes ao considerar no corpo humano um dualismo de substância tinha um propósito: “que a interpretação do fenómeno orgânico não pusesse em causa a sua conceção de relação causal estritamente mecânica, baseada no contacto direto entre entes físicos clara e distintamente discretos. A eventualidade de uma vis biológica, distinta das forças físicas subordinadas às três leis cartesianas do movimento, exigindo um outro quadro categorial, aparecia como uma expressa violação dessa exigência de respeito pela representação da causalidade natural no âmbito dessa estreita conceção de mecanismo” (Soromenho-Marques, 1998, p.420).

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2.2. A Construção de um Contexto Cartesiano

Descartes elaborou uma conceção mecanicista do universo material (Santos, 1993). A matéria não tinha intenção, vida ou espiritualidade. A natureza era uma máquina cujas operações se podiam determinar exatamente por meio de leis físicas e matemáticas. Tudo no mundo material podia tornar-se cognoscível por via da sua decomposição nos elementos que o constituem (Sérgio, 2003).

É esta conceção mecânica da realidade que se torna o paradigma dominante da ciência a partir do século XVIII (Santos, 1993). Este determinismo mecanicista valoriza o conhecimento utilitário e funcional, no sentido de dominar e transformar o real, em vez de o conhecer profundamente (Santos, 1993). Para Vicente (2005) a obra de Descartes, “Discurso do Método”, constituiu uma referência incontornável nesta matéria, já que apresentou as regras metodológicas, como a análise, clareza e evidência, em que vai assentar todo o edifício da ciência.

A conceção de corpo é, também, influenciada, decisivamente, pelo método cartesiano: o corpo, desprovido de alma, insere-se no mundo da matéria e fica sujeito a uma explicação exclusivamente mecânica (Branco, 1998). Aliás, para Capra (1986, citado por Sérgio, 2003) a conceção de Descartes sobre os organismos vivos teve uma influência muito importante no desenvolvimento das ciências humanas: a meticulosa explicação dos mecanismos que compõem o corpo humano tem sido a principal tarefa dos biólogos, médicos e psicólogos nos últimos séculos. A abordagem cartesiana, segundo Sérgio (2003), foi coroada de êxito, especialmente na Biologia, mas limitou, significativamente, as direções da investigação já que os cientistas, encorajados pelo seu êxito em tratar o ser humano como máquina, passaram a acreditar que este nada mais é do que uma máquina.

2.2.1 A Influência do Positivismo na Conceção de Corpo

O corpo, dualista e mecânico, concebido pelo racionalismo cartesiano foi, também, fortemente influenciado por uma corrente filosófica do século XVIII denominada por positivismo. Esta corrente penetrou, profundamente, entre outros, nos estabelecimentos de

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13 ensino, recebendo, a determinado nível, uma aberta consagração legal (Natário, Brito & Epifânio, 2008).

Este sistema de pensamento, segundo Brito (2008), foi criado por Augusto Comte, ainda que se suspeite que o termo positivista tenha sido usado pela primeira vez por Saint Simon, no Cathécisme des Industriels.

Por positivo, segundo Brito (2008), entende-se uma lei de desenvolvimento da humanidade. É a chamada lei dos 3 estados: no primeiro estado, o teológico, o espírito humano começa por fantasiar, graças à imaginação, entidades suprassensíveis; no segundo estado, o metafísico, a inconsistência das entidades do estado anterior levam o espírito a substituí-las por abstrações mais refinadas, tais como: a substância, as causas finais, as essências, entre outras; no terceiro estado, o positivo, as teorias não se impõem artificialmente à realidade fenoménica, antes são conduzidas pelos factos.

Atente-se que os dois primeiros estados encontram-se ligados a aspetos subjetivos. Estes, segundo Comte (1985), carecem de rigor e de exatidão. São próprios de fases imaturas do desenvolvimento do ser humano, como a infância e a juventude. Por conseguinte são transitórios. O estado positivo, estado final a que se pode aspirar, segundo Bastide (1984), a que Comte também chamava de científico, está ligado à fase adulta. Neste estado impera a exatidão e a objetividade.

O objetivo de Comte, de acordo com Melro (1985) é, na senda de Descartes, fazer uma aliança entre o racionalismo e o empirismo. A metafísica ou a subjetividade, por serem espaços demasiado confusos, são rejeitados.

A ciência que, para Comte, segundo Brito (2008), se constitui a partir das conexões entre factos e fenómenos é o lugar, onde, através do método objetivo, o Homem tem acesso ao saber autêntico. Para o positivismo, como expressa Melro (1985), o sábio é o cientista; há apenas um lugar de verdade a que o homem tem acesso, o espaço das ciências naturais; todo o conhecimento autêntico é ciência e esta baseia-se na experiência; a matemática, a física, a química, a biologia e a sociologia, esta metodologicamente subordinada às ciências naturais, adquirem uma significativa importância.

Esta doutrina visa, tal como o cartesianismo, combinar a realidade com a utilidade. Melro (1985) chama-lhe mesmo a religião da razão objetiva. Esta preocupação com a objetividade, único lugar onde existe a verdade, leva Comte a eleger a matemática, ciência exata, como a base de todo o edifício teórico: “… a matemática estuda diretamente a existência universal, reduzida aos seus fenómenos mais simples e, por conseguinte, mais vulgares, nos quais assentam necessariamente todos os outros atributos reais. As propriedades fundamentais

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de qualquer ser são o número, a extensão e o movimento” (Comte, 1985). Contudo a obsessão pela objetividade leva Comte (1985) a considerar que a extensão e o movimento só adquirem coerência e generalidade porque todos os seus problemas podem ser transformados em números. Esta visão quantofrénica e positivista do mundo passou o rotular como não científico tudo o que não pudesse ser expresso quantitativamente (Sérgio, 2003). Como refere Santos (1993), o rigor científico passa a ser aferido pelo rigor das medições e as qualidades intrínsecas dos objetos são desqualificadas em detrimento das quantidades.

Deste modo, o corpo humano, ainda de acordo com Santos (1993), só pode ser eficazmente compreendido se lhe forem aplicados os métodos do único saber: os das ciências naturais. Do humano só pode conhecer-se o que é, de facto, acessível à perceção sensorial, logo objetivável. É deste modo que o número passa a descrever um vasto leque de caraterísticas humanas.

Outra preocupação de Comte prendia-se com a necessidade de classificação das diversas ciências: dando por acertado que o conhecimento assenta em factos observáveis, então havia que determinar as relações constantes entre esses factos, que são as leis (Brito, 2008). Estas leis é que constituíam o corpo de conhecimentos das diferentes disciplinas. Resultava, então, a necessidade de classificá-las para não se cair em confusões contrárias a um conhecimento que se pretendia claro e objetivo. Esta classificação das ciências originou a fragmentação do conhecimento e aprofundou a especialização. Daqui resultaram, segundo Iskander e Leal (2002), várias consequências importantes: o corpo humano passa a ser analisado em função dos objetivos particulares de cada ciência; a nível escolar levou à elaboração de currículos multidisciplinares, restringindo qualquer género de relação entre as diferentes disciplinas. A escola passa a privilegiar o conhecimento objetivo e produtivo. Para Iskander e Leal (2002) a ascensão das ciências exatas originou que o método científico influenciasse a prática pedagógica. Esta caraterizou-se por promover a hierarquização, a observação, o controle e a eficácia.

2.2.2. A Influência do Mercantilismo na Conceção de Corpo

Um corpo, fortemente influenciado por um racionalismo cartesiano, que o divide e o mecaniza, e por um positivismo, que o objetiva e compartimenta em função de

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15 especializações disciplinares, também vai ser alvo de um mercantilismo e de um saber médico.

A saúde do corpo, de acordo com Foucault (1979), começou a ser motivo de preocupação entre o final do século XVI e início do século XVII, quando uma política mercantilista estabeleceu como prioridade o aumento da produção da população, a quantidade de população ativa e a produção de cada indivíduo mas, foi já no final do século XVIII início do século XIX que o capitalismo socializou o corpo enquanto força de produção, força de trabalho.

O corpo, entendido como força produtiva, representava uma estratégia através da qual cada país procurava criar riqueza e sobrepor-se aos outros.

É desta forma que, para Foucault (1979), o corpo passa a ser objeto de intervenções, análises e transformações não no sentido de o ver, como anteriormente, submisso ou renitente, rico ou pobre, mas sim de o analisar numa perspetiva de maior ou menor rentabilidade.

Foucault (1979) considera que as preocupações com os meios de produção e o elevado crescimento demográfico ocorrido durante o século XVIII “obrigou” as sociedades a disciplinarem o corpo dos indivíduos, de forma a o integrar no aparelho produtivo. É então no sentido de tornar o trabalho do corpo mais eficaz que o poder aposta na disciplina. Foucault (1999) entende a disciplina como um conjunto de limitações, obrigações ou proibições que vão manter, sobre o corpo, uma coação sem folga. Já não é só o aspeto macro do corpo que se pretende controlar, mas sim todo o movimento, toda a atitude por mais pequena que seja. Atente-se no pormenor da descrição para uma boa caligrafia: “ Deve-se manter o corpo direito, um pouco voltado e solto do lado esquerdo, e algo inclinado para a frente, o queixo possa ser apoiado na mão, a menos que o alcance da vista não o permita; a perna esquerda deve ficar um pouco mais avançada que a direita, sob a mesa. Deve-se deixar uma distância de dois dedos entre o corpo e a mesa; pois não só se escreve com mais rapidez, mas nada é mais nocivo à saúde que contrair o hábito de apoiar o estômago contra a mesa; a parte do braço esquerdo, do cotovelo até à mão, deve ser colocada sobre a mesa. O braço direito deve estar afastado do corpo cerca de três dedos, e sair aproximadamente cinco dedos da mesa, sobre a qual deve apoiar ligeiramente. O mestre ensinará aos escolares a postura que estes devem manter ao escrever, e a corrigirá seja por sinal seja de outra maneira, quando dela se afastarem” (Foucault, 1999, p.170).

O movimento humano é analisado e decomposto ao mais ínfimo pormenor com o objetivo de garantir a eficácia do gesto.

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A divisão do tempo é outra das marcas da disciplina. Progressivamente, o corpo sujeita-se a atividades em que o tempo passa da contagem de horas para uma contagem de minutos e segundos.

“No começo do século XIX, serão propostos para a escola mútua horários como o seguinte: 8,45 entrada do monitor, 8,52 chamada do monitor, 8,56 entrada das crianças e oração, 9 horas entrada nos bancos, 9,04 primeira lousa, 9,08 fim do ditado, 9,12 segunda lousa, etc.” (Foucault, 1999, p. 168).

É importante realçar que a contagem do tempo não visa unicamente balizar temporalmente o movimento do corpo. Para Foucault (1999) o tempo participa na realização do próprio movimento porque, atendendo que a contagem de cada movimento é tão minuciosa, passa a controlar do interior o seu desenvolvimento.

Se Descartes ao retirar a alma do corpo concebeu-o maquinalmente, a sociedade produtiva do ´século XVIII, na ânsia da eficácia dos movimentos, operacionalizou esse homem-máquina. Os movimentos corporais sujeitos a limites muito rígidos enjaulam e amestram o corpo. “A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos «dóceis» (Foucault, 1999, p. 157). São dóceis porque são submissos, obedientes, que se deixam ensinar facilmente.

2.2.3. A Influência da Medicina na Conceção de Corpo

O privilégio da higiene e o funcionamento da medicina como instância de controle social (Foucault, 1979)

É num contexto de preocupação com a produção do corpo que a medicina do século XVIII adquire uma importância capital (Foucault, 1979). Para uma sociedade mercantilista que, como já vimos, não se satisfaz com um corpo obediente, é importante que se desenvolva um corpo útil. Esta utilidade do corpo, nunca é por demais salientar, está dependente do seu rendimento. Este, por sua vez, só é assegurado se houver preocupações com o bem-estar físico do corpo. A medicina vai funcionar como um meio, através do qual se garante que o corpo tem saúde e longevidade. Pode-se, assim, afirmar que o poder utiliza a medicina para garantir a capacidade produtiva do país.

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17 É com esta preocupação que, cada nação, segundo Foucault (1979), constituiu uma polícia médica que implementou um conjunto de obrigações físicas: higiene corporal, higiene alimentar, higiene de habitação, amamentação, vestuário sadio, contacto permanente, exercício físico adequado, etc.

Deste modo, o médico, a partir do século XVIII, adquire uma posição privilegiada na sociedade. Inicialmente, para Foucault (1979), não é tanto a sua função terapeuta, mas sim a função higienista que o projeta socialmente: o médico urbano não é um médico de homens, ou de organismos, mas sim um médico da salubridade (ar, água ou condições de vida). Isto deriva, como expressa Sanches (1756), de no século XVIII se acreditar que o ar era um dos principais fatores patogénicos e era através dele que se produziam os contágios das doenças: quando o ar é excessivamente quente, frio ou impuro é causador de enfermidades. Foucault (1979) considera que esta preocupação higienista dos médicos lhes permitiu reorganizar as cidades: abrir longas avenidas, mudar a localização dos cemitérios, derrubar muros, etc. Tudo em nome da qualidade do ar.

Contudo, esta medicina, que ascende socialmente e que tutela o corpo, está, segundo Tavares (2001), marcada pelo racionalismo cartesiano. O corpo continua a ser visto como uma máquina. A principal linha metodológica é a análise: dividir para conhecer melhor.

Para Coelho (2012) a medicina «científica» ao dividir e fragmentar o corpo em sistemas especializados e relacionalmente desligados, procura adequar-se a uma economia rigidamente quantitativa.

É este modo de agir que leva Marx, segundo Sérgio (2008), a considerar os médicos os autores do materialismo mecanicista do século XVIII. Esta doutrina, de acordo com Durozoi e Roussel (2000), considera a matéria a única substância ou realidade. Tal facto leva a considerar o pensamento como uma propriedade da própria matéria. Mas o que é verdadeiramente significativo é que o Homem, para estes materialistas, como expressa Baima (2013), é produto do meio e não exerce sobre ele qualquer ação transformadora. Ignora-se, assim, a interação Homem/Meio e admite-se, como refere Durozoi e Roussel (2000), apenas mudanças quantitativas na matéria. Isto significa que o corpo humano, sendo matéria, está confinado a uma posição conformista e mecânica. O seu estado de desenvolvimento qualitativo cristalizou.

Constata-se, que à semelhança de Descartes e do positivismo, mas partindo de conceções opostas, o materialismo mecanicista ignora a subjetividade do ser humano. Entenda-se subjetividade, como refere Sérgio (2003), não numa perspetiva racionalista que ignora tudo o que lhe é exterior, mas, como uma qualidade individual, uma impressão digital,

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que está em constante interação com o Meio. A vontade humana, para o materialismo mecanicista, não acrescenta rigorosamente nada ao universo e, consequentemente, o ser humano não tem influência sobre o seu futuro. Este está determinado.

2.3. O Nascimento da Educação Física

Foucault (1979) considera que a importância que a medicina adquiriu no século XVIII tem o seu ponto de origem na união entre uma nova economia “analítica” de assistência com a emergência de uma “polícia” geral de saúde. A esta medicina, Foucault (1979), chamou-lhe noso-política. Ela visou os cuidados do corpo no sentido de aumentar a sua utilidade. Esta utilidade, deve ser vista como a capacidade da força de trabalho, individual ou coletiva, ser integrada e adequada às crescentes necessidades do aparelho produtivo. No sentido de ser eficaz, esta noso-política, segundo Foucault (1979), implementou um conjunto de obrigações que se impuseram às famílias: o exercício físico, no sentido de assegurar um bom desenvolvimento do organismo, representou uma dessas obrigações.

Posteriormente, como refere Pires (2001), surgiu a necessidade de organizar melhor este conjunto de exercícios físicos no sentido de permitir uma melhor adaptação às condições do trabalho das fábricas. “Surge então a Educação Física, disciplina organizada à imagem e semelhança do trabalho em série, como instrumento conducente à docilização do operariado para com as difíceis condições da linha de montagem. No início do século foi mesmo fundada em Lisboa a «Associação Portuguesa dos Trabalhos Atléticos», na dinâmica de prolongar para o tempo de lazer a disciplina necessária ao tempo de trabalho. Esta disciplina foi conduzida, também, para a escola (Pires, 2001, p.51).

É, portanto, todo um contexto racionalista-cartesiano-positivista-capitalista-médico analista que vai permitir o nascimento da educação física.

A palavra física, na expressão educação física, representa um adjetivo que nos remete para o físico, para o material, para o corpóreo. Esta palavra apresenta uma clara significação ideológica, pois, segundo Sérgio (2003), remete-nos para uma conceção dualista do corpo humano. Falar em educação física é, pois, falar de uma determinada conceção de homem. É falar de uma educação que é física, por oposição ao que é mental.

Reforçando esta ideia, Sérgio (2005), realça que antes da Idade Moderna não existem registos do termo educação física. Platão, no livro República (2012), onde, apesar do tema

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19 central ser a justiça, dedica particular atenção à educação na Grécia, refere, por diversas vezes o nome ginástica, mas não faz alusão à educação física. A palava ginástica, segundo Coelho (1836), significa fazer exercício, e não tem qualquer conotação dualista. Sérgio (citado por Pires, 2001) diz que, até surgir Descartes e Locke, tudo o que dizia respeito à beleza corporal baseava-se na cultura greco-latina, traduzido na ginástica propugnada por Mercurialis em “De Arte Gymnasta ” (1569). Neste livro também não se encontra nenhuma referência ao nome educação física.

A educação física nasce porque, como se tem constatado, há um entendimento redutor do corpo que a origina. Foi um entendimento racionalista que, para Sérgio (1994, citado por Pires, 2001), ao dividir o ser humano em duas substâncias diferentes, a «res cogitans» e a «res extensa», organizou duas pedagogias distintas: a educação intelectual e a educação física.

Assim não é de estranhar que a educação física, tenha na sua essência, um conjunto de caraterísticas que são identificadoras do contexto que a originou. Tavares (2001) considera que são cinco e chama-lhes objeções: a primeira é uma excessiva ciência que fecha um corpo, porque as anatomias e fisiologias exibem os músculos, as vísceras, numa perspetiva redutora, pois roubam ao corpo a sua humanidade; a segunda é a constituição de uma visão anátomo-clínica onde predomina uma submissão ao médico. Só que a ciência também apresenta caraterísticas cartesianas, o que consolida a conceção dualista do corpo; a terceira mostra que o paradigma da educação física, ao partir de uma medicina cartesiana analítica, utiliza como principal linha metodológica a análise: dividir o corpo em partes, anatómica ou fisiologicamente, para o conhecer melhor. É neste sentido que se passa a falar em velocidade, resistência, endurance, etc.; a quarta diz respeito ao dualismo. É incompreensível que uma educação promova um físico que não pensa ou um pensamento que não se mova; a quinta critica a influência do positivismo na educação física: ao endeusar a ciência o paradigma da educação física privilegia os factos, apenas os factos são importantes, apenas eles provam e certificam.

Jacques Ulmann, segundo Sérgio (2008), aponta John Locke, um racionalista-empirista, como o primeiro filósofo a ocupar-se da educação física no seu livro “Pensamentos sobre a Educação Física” de 1693. Michel Foucault (1979), quando se refere aos cuidados higiénicos que a família passou a ter, refere um livro de um médico suiço Ballexsert “Dissertation sur l’education physique des enfants” de 1762.

No século XX, três professores de educação física, Bernard, Pociello e Vigarello (1975), escreveram um texto onde referem que a tradução inglesa do livro de John Locke não tem nenhuma referência à disciplina de educação física; reforçam a ideia de que foi Ballexsert

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quem primeiro se referiu ao termo educação física e, adiantam ainda, que em França o termo surge no século XVIII ligado à escola, mas com caraterísticas higienistas e militaristas.

Independentemente do autor que utilizou pela primeira vez o termo educação física, para Sérgio (2008), esta é um produto do racionalismo e destinava-se ao que no ser humano era material e mecânico e, portanto, apenas analisável matemática e experimentalmente.

2.3.1. Grandes Correntes da Educação Física

Sérgio (2004) considera que, inicialmente, a educação física era somente o âmbito onde se aplicava didaticamente o conteúdo ginástica e, só mais tarde, com a pedagogização dos sistemas europeus de ginástica é que se constata uma disciplinarização desse âmbito educativo e a educação física passa a substituir a ginástica.

Os primeiros métodos de educação física, âmbito da ginástica, obedecendo a determinados princípios pedagógicos surgem na segunda metade do século XVIII com Basedow (1723-1790), Ling (1776-1839) e Amorós (1770-1848) (Museu da Educação Física, 1967).

Contudo, estes métodos estão contaminados por uma forma de conceber o saber, caraterística do racionalismo-cartesiano-positivista-capitalista-médico analista. É um saber que decompõe e hierarquiza o objeto de conhecimento para ter sobre ele um controlo absoluto. A medicina, como refere Coelho (2012) não foge a este procedimento, e, na ânsia de se constituir científica, não só reduz intelectualmente o corpo, como o divide e fragmenta em sistemas cada vez mais especializados e relacionalmente desligados. Deste modo, não é de estranhar que, de acordo com Minciotti (2005), apareçam exercícios físicos pensados exclusivamente a partir de grupos musculares e de funções orgânicas a serem aplicados com finalidades específicas. Em vez do estudo do corpo como um todo, passa-se para o estudo da cabeça, tronco ou membros, e destes para um grupo muscular ou só um músculo.

Descartes, ao conceber o corpo dualista, abriu a caixa de Pandora a múltiplas divisões. Por outro lado, como se constatou com Foucault, o industrialismo mercantilista reforçou o interesse por um corpo são no sentido de aumentar a sua eficácia produtiva. Constitui-se, assim, um ambiente cultural, onde a ideia de utilidade prevalece. Os exercícios físicos,

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21 segundo Minciotti (2005), devem abdicar do mero entretenimento e terem finalidades eficazes.

É por entender que a educação física estava subordinada ao poder dominante que Pires (2001) considera Amorós e Ling os chefes de fila, nos limites que os médicos e os militares lhes permitiram, de um modelo não humanista mas economicista, na medida em que preparavam o corpo para tarefas estandardizadas da linha de montagem das fábricas.

Estes primeiros métodos de educação física vão estar na base de três grandes movimentos doutrinários que persistirão para lá da metade do século XX: alemão, sueco e francês (Museu da Educação Física, 1967).

É, no entanto, de realçar que, independentemente de algumas alterações mais de pormenor do que propriamente de substância, para Tavares (2001), se mantém a visão de um corpo “objeto-anátomo-fisiológico-maquinal-não consciente-limitado-extenso-divisível-definido-e-mortal”.

Observa-se, igualmente, que uma educação física, tutelada por uma medicina analítica, vai, progressivamente, interiorizar caraterísticas militaristas. Tal facto vai acentuar o lado dualista, físico, obediente e manipulável do corpo.

A Linha Doutrinária Alemã, segundo Ramos (1983), inspirada nas ideias pedagógicas de Locke e Rousseau, começou em 1760 com Basedow e o seu filantropismo; Jahn, considerado o Turnvater (pai da ginástica) é um exemplo paradigmático da conceção de corpo que a Linha Doutrinária Alemã seguiu: a sua ginástica, chamada “Turnen”, para além de estar impregnada de um elevado conteúdo nacionalista, visava o aumento da força e da energia; os seus lemas “Vive quem pode” e “ Ai dos vencidos” confirmam uma visão do corpo marcadamente militarista.

Guths-Muths, segundo Ramos (1983), procurou contrariar esta visão nacionalista/militarista de Jahn tentando imprimir uma visão mais pedagógica da ginástica. Pires (2001) considera mesmo que Guths-Muths foi, provavelmente, quem, ao questionar os modelos de instrução militar e médica, fez a passagem da ginástica (educação física) para a Educação Física, atribuindo-lhe uma dimensão educativa.

No entanto constata-se que Guths-Muths nunca conseguiu ultrapassar, na totalidade, uma visão cartesiana, militar e médica do corpo. No seu livro “Ginástica para a Juventude” (1800), refere, logo no prefácio, que uma genuína teoria de ginástica tem que ser construída com base em princípios fisiológicos e a prática de cada exercício é regulada pelas qualidades físicas de cada pessoa; é, portanto, o desenvolvimento das capacidades físicas e a saúde, aspetos parcelares do corpo, que justificam o caráter educativo da ginástica;

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defende, também, a introdução de exercícios militares na escola como forma das crianças se habituarem a uma voz de comando, perderem a indolência e a marcharem com um corpo correto; Guths-Muths rejeita a ideia dos médicos orientarem a prática dos exercícios gímnicos, mas encontra a fundamentação da inserção da ginástica na educação da juventude nas obras da polícia médica. O livro “Sistema de Polícia Médica”, segundo Quitzau e Soares (2010), torna-se uma referência especial para Guths-Muths.

A Linha Doutrinária Sueca, de acordo com Jordão (1983), tem em Per Henrik Ling a sua personalidade mais influente; o seu contributo foi de tal ordem, que em vários livros encontra-se a expressão ginástica de Ling como substituta da ginástica sueca; os seus exercícios foram concebidos na perspetiva de regenerar o povo sueco, arrasado pelo imperialismo russo, as guerras napoleónicas, a generalização da tuberculose e do raquitismo. Compreende-se, deste modo, que, procurando fundamentar a sua proposta gímnica em bases científicas, deu particular destaque à anatomia. “É uma ginástica essencialmente respiratória, sobretudo por aquilo que diz respeito ao valor preventivo e curativo da saúde com efeitos corretivos e ortopédicos” (Minciotti, 2005, p.55).

Ling também não conseguiu dissociar a sua ginástica das preocupações de uma medicina da altura: a sua conceção de ginástica devia incutir hábitos alimentares, de higiene corporal e de revigorizar o corpo ao ar livre. A ginástica de LIng, ou ginástica sueca, teve grande repercussão a nível mundial. Mantendo-se como referência principal em pleno século XX.

Em França, segundo Sérgio (2003), a Linha Doutrinária, também se caraterizou por um cunho amplamente militar e higienista. Compreende-se, assim, que, de acordo com Jordão (1983), as personalidades mais influentes desta linha tenham sido Amorós e Hebert, militares de carreira e Demeny, um fisiologista. O desenvolvimento das qualidades físicas, o aumento da energia e a exaltação do caráter resultavam mais de necessidades militares do que propriamente pedagógicas.

O corpo, para Hébert, devia ser treinado para responder às necessidades da vida ativa. Foi com esse propósito que desenvolveu um método natural, no qual as caraterísticas higiénicas e utilitárias eram privilegiadas (Museu da Educação Física, 1967).

Nos finais do século XVIII apareceu em Inglaterra um movimento desportivo que, ao contrário das Linhas Doutrinárias anteriormente referidas, centrou a sua atenção não na ginástica, mas sim no jogo. Este movimento que, segundo Jordão (1983), acabou por dar origem à maior parte do desporto atual, procurou aliar o lado recreativo com preocupações

Referências

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