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Para Descartes (1977), conhecer, significa dividir e quantificar. Não nos podemos esquecer que a segunda regra do seu método consistia em “dividir cada uma das suas dificuldades em tantas parcelas quanto fosse possível e requerido para as melhor resolver” (Descartes, 1977, p.35). Esta obsessão pela objetividade fê-lo ter, como refere Santos (1977), a intuição de um acordo entre as leis da natureza e as leis da matemática. No fundo, o que Descartes procurava, de acordo com Bidoux (citado por Santos, 1977, p.10), era “realizar a esperança pitagórica de submeter o universo aos números e, do mesmo golpe, encontrar para a indústria do homem um domínio sobre as coisas”.

A ciência moderna, segundo Santos (1989), manteve como caraterística fundamental essa mesma obsessão pela objetividade e quantificação. Perante um fenómeno, independentemente de ser natural ou social, a ciência moderna valoriza as caraterísticas externas, observáveis e quantificáveis. Um exemplo paradigmático é-nos dado por Durkheim (1973, citado por Santos 1989, p. 20), quando refere que “as causas do aumento da taxa de suicídio na Europa do virar do século não são procuradas nos motivos invocados pelos suicidas e deixados em cartas, como é costume, mas antes a partir da verificação de regularidades em função de condições tais como o sexo, o estado civil, a existência ou não de filhos, a religião dos suicidas”.

Deste modo, de acordo com Santos (1989), na ciência moderna a determinação da causa formal obtém-se com a expulsão da intenção. É a natureza não objetivável da intenção que faz com que seja rejeitada.

Merleau-Ponty (2002), contudo, alerta-nos que a ambiguidade e o inacabamento estão escritos e inscritos na própria textura da nossa vida coletiva e não apenas nas obras dos nossos intelectuais. A ação humana, como salienta Santos (1989), é radicalmente subjetiva, daí que, ao contrário dos fenómenos naturais, não pode ser descrita e explicada através de variáveis objetivas. Temos um mundo que, segundo Merleau-Ponty (2002, p.28), “os objetos não podem estar numa identidade consigo mesmos, em que forma e conteúdo estão como que emaranhados e mesclados e que, finalmente, não proporciona a armadura rígida que lhe fornecia o espaço homogéneo de Euclides. Torna-se impossível distinguir o espaço e as

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coisas no espaço”. Santos (1989) refere que os objetos possuem fronteiras cada vez menos definidas já que são constituídos por anéis que se entrecruzam em teias complexas a tal ponto que os objetos em si passam a ser menos reais que as relações entre eles. Merleau- Ponty (2002), com o objetivo de enaltecer a complexidade e a subjetividade das nossas ações, pede-nos para olharmos para o vocabulário político: palavras como liberdade, socialismo, democracia, reconstrução, renascimento, liberdade sindical, designam realidades muito diferentes ou até mesmo opostas.

Perante, então, fenómenos desta natureza, nos quais se insere a conceção de corpo que as pessoas têm, os limites do conhecimento (1989) são de natureza qualitativa e não são superáveis com maiores quantidades de investigação ou maior precisão de instrumentos. A objetividade pura é, pois, uma utopia. Merleau-Ponty (2002) evidencia a impossibilidade de conceber um conhecimento histórico que seja rigorosamente objetivo, porque a interpretação e a perspetivação dos elementos em estudo estão contaminadas pelas escolhas morais e políticas que o historiador fez por sua conta. A precisão quantitativa do conhecimento é limitada a este propósito. Merleau-Ponty (2002) dá o exemplo, no âmbito das teorias de informação do teorema de Brillouin: qualquer observação efetuada sobre um sistema físico, ao elevar a entropia do sistema, demonstra-nos que a experiência objetiva, rigorosa e exata é irrealizável.

Como deveremos então proceder para estudar fenómenos eminentemente subjetivos? Santos (1989) dá-nos várias sugestões: no paradigma emergente o conhecimento é total; sendo total é também local; sendo total não é determinístico e sendo local não é descritivista; é um conhecimento sobre as condições de possibilidade; nenhuma forma de conhecimento é racional, só a configuração de todas elas é racional; cada método é uma linguagem e a realidade responde em função dessa língua; só uma pluralidade de métodos pode captar o silêncio que existe em cada língua; a mais importante forma de conhecimento é o senso comum pois é o conhecimento vulgar e prático com que, no quotidiano, damos sentido à nossa vida; o senso comum é imetódico e indisciplinar.

Foi tendo em conta estes pressupostos, com os quais nos identificamos, que nos levou a adotar um método que desse coerência às nossas preocupações. A nossa opção recaiu na Etnometodologia. Esta conceção metodológica não representa uma doutrina homogénea, mas uma tendência das ciências sociais que surgiu nos Estados Unidos e que, como nos refere Liberman (2009), foi desenvolvida por Harold Garfinkel durante a década de cinquenta do século XX. Por etno, Garfinkel (2006, p. IX) diz-nos que quer “expressar, de alguma forma, que os membros de uma sociedade têm disponíveis para seu uso certos conhecimentos que são do sentido comum dessa sociedade, conhecimentos sobre

79 «qualquer coisa»”. É portanto, um conhecimento sobre assuntos do quotidiano que pode ser revelado sobre a forma de procedimentos práticos. A Etnometodologia, como salienta Watson (2001), ao demarcar-se dos métodos de análise formal e ao vincar uma orientação fenomenológica, está mais adequada para responder às questões de ordem lógica e de sentido de contexto que os fenómenos colocam.

A Etnometodologia, apesar de ser mais uma atitude do que uma escola, não impede, como refere Ceia (2014), que se possa identificar caraterísticas comuns aos autores que se consideram metodólogos: predomínio dos estudos empíricos, da observação “in loco” das práticas sociais, o interesse pela linguagem natural e vida quotidiana, de saber ordinário, de interação social e de criatividade.

Estando conscientes de que os fenómenos sociais possuem caraterísticas extremamente complexas e são influenciados de diversas formas sensibilizou-nos a recorrer a um vasto leque de fontes que contemplasse diferentes perspetivas sobre a conceção de corpo (revistas e livros de áreas muito diferentes; entrevistas, artigos na internet e jornais) e não apenas àquelas que apresentam cunho científico. Complementamos esta informação com quatro entrevistas semiestruturadas. Deste modo foi possível adequar as perguntas às caraterísticas dos entrevistados. A opção por não termos seguido um guião está, também, relacionada, como salienta Santos (1989), com o facto de as entrevistas estruturadas aumentarem a distância entre o sujeito e objeto. Este procedimento não impediu, no entanto, que nas 4 entrevistas realizadas houvesse preocupações comuns.