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2.3. O Nascimento da Educação Física

2.3.1. Grandes Correntes da Educação Física

Sérgio (2004) considera que, inicialmente, a educação física era somente o âmbito onde se aplicava didaticamente o conteúdo ginástica e, só mais tarde, com a pedagogização dos sistemas europeus de ginástica é que se constata uma disciplinarização desse âmbito educativo e a educação física passa a substituir a ginástica.

Os primeiros métodos de educação física, âmbito da ginástica, obedecendo a determinados princípios pedagógicos surgem na segunda metade do século XVIII com Basedow (1723-1790), Ling (1776-1839) e Amorós (1770-1848) (Museu da Educação Física, 1967).

Contudo, estes métodos estão contaminados por uma forma de conceber o saber, caraterística do racionalismo-cartesiano-positivista-capitalista-médico analista. É um saber que decompõe e hierarquiza o objeto de conhecimento para ter sobre ele um controlo absoluto. A medicina, como refere Coelho (2012) não foge a este procedimento, e, na ânsia de se constituir científica, não só reduz intelectualmente o corpo, como o divide e fragmenta em sistemas cada vez mais especializados e relacionalmente desligados. Deste modo, não é de estranhar que, de acordo com Minciotti (2005), apareçam exercícios físicos pensados exclusivamente a partir de grupos musculares e de funções orgânicas a serem aplicados com finalidades específicas. Em vez do estudo do corpo como um todo, passa-se para o estudo da cabeça, tronco ou membros, e destes para um grupo muscular ou só um músculo.

Descartes, ao conceber o corpo dualista, abriu a caixa de Pandora a múltiplas divisões. Por outro lado, como se constatou com Foucault, o industrialismo mercantilista reforçou o interesse por um corpo são no sentido de aumentar a sua eficácia produtiva. Constitui-se, assim, um ambiente cultural, onde a ideia de utilidade prevalece. Os exercícios físicos,

21 segundo Minciotti (2005), devem abdicar do mero entretenimento e terem finalidades eficazes.

É por entender que a educação física estava subordinada ao poder dominante que Pires (2001) considera Amorós e Ling os chefes de fila, nos limites que os médicos e os militares lhes permitiram, de um modelo não humanista mas economicista, na medida em que preparavam o corpo para tarefas estandardizadas da linha de montagem das fábricas.

Estes primeiros métodos de educação física vão estar na base de três grandes movimentos doutrinários que persistirão para lá da metade do século XX: alemão, sueco e francês (Museu da Educação Física, 1967).

É, no entanto, de realçar que, independentemente de algumas alterações mais de pormenor do que propriamente de substância, para Tavares (2001), se mantém a visão de um corpo “objeto-anátomo-fisiológico-maquinal-não consciente-limitado-extenso-divisível- definido-e-mortal”.

Observa-se, igualmente, que uma educação física, tutelada por uma medicina analítica, vai, progressivamente, interiorizar caraterísticas militaristas. Tal facto vai acentuar o lado dualista, físico, obediente e manipulável do corpo.

A Linha Doutrinária Alemã, segundo Ramos (1983), inspirada nas ideias pedagógicas de Locke e Rousseau, começou em 1760 com Basedow e o seu filantropismo; Jahn, considerado o Turnvater (pai da ginástica) é um exemplo paradigmático da conceção de corpo que a Linha Doutrinária Alemã seguiu: a sua ginástica, chamada “Turnen”, para além de estar impregnada de um elevado conteúdo nacionalista, visava o aumento da força e da energia; os seus lemas “Vive quem pode” e “ Ai dos vencidos” confirmam uma visão do corpo marcadamente militarista.

Guths-Muths, segundo Ramos (1983), procurou contrariar esta visão nacionalista/militarista de Jahn tentando imprimir uma visão mais pedagógica da ginástica. Pires (2001) considera mesmo que Guths-Muths foi, provavelmente, quem, ao questionar os modelos de instrução militar e médica, fez a passagem da ginástica (educação física) para a Educação Física, atribuindo-lhe uma dimensão educativa.

No entanto constata-se que Guths-Muths nunca conseguiu ultrapassar, na totalidade, uma visão cartesiana, militar e médica do corpo. No seu livro “Ginástica para a Juventude” (1800), refere, logo no prefácio, que uma genuína teoria de ginástica tem que ser construída com base em princípios fisiológicos e a prática de cada exercício é regulada pelas qualidades físicas de cada pessoa; é, portanto, o desenvolvimento das capacidades físicas e a saúde, aspetos parcelares do corpo, que justificam o caráter educativo da ginástica;

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defende, também, a introdução de exercícios militares na escola como forma das crianças se habituarem a uma voz de comando, perderem a indolência e a marcharem com um corpo correto; Guths-Muths rejeita a ideia dos médicos orientarem a prática dos exercícios gímnicos, mas encontra a fundamentação da inserção da ginástica na educação da juventude nas obras da polícia médica. O livro “Sistema de Polícia Médica”, segundo Quitzau e Soares (2010), torna-se uma referência especial para Guths-Muths.

A Linha Doutrinária Sueca, de acordo com Jordão (1983), tem em Per Henrik Ling a sua personalidade mais influente; o seu contributo foi de tal ordem, que em vários livros encontra-se a expressão ginástica de Ling como substituta da ginástica sueca; os seus exercícios foram concebidos na perspetiva de regenerar o povo sueco, arrasado pelo imperialismo russo, as guerras napoleónicas, a generalização da tuberculose e do raquitismo. Compreende-se, deste modo, que, procurando fundamentar a sua proposta gímnica em bases científicas, deu particular destaque à anatomia. “É uma ginástica essencialmente respiratória, sobretudo por aquilo que diz respeito ao valor preventivo e curativo da saúde com efeitos corretivos e ortopédicos” (Minciotti, 2005, p.55).

Ling também não conseguiu dissociar a sua ginástica das preocupações de uma medicina da altura: a sua conceção de ginástica devia incutir hábitos alimentares, de higiene corporal e de revigorizar o corpo ao ar livre. A ginástica de LIng, ou ginástica sueca, teve grande repercussão a nível mundial. Mantendo-se como referência principal em pleno século XX.

Em França, segundo Sérgio (2003), a Linha Doutrinária, também se caraterizou por um cunho amplamente militar e higienista. Compreende-se, assim, que, de acordo com Jordão (1983), as personalidades mais influentes desta linha tenham sido Amorós e Hebert, militares de carreira e Demeny, um fisiologista. O desenvolvimento das qualidades físicas, o aumento da energia e a exaltação do caráter resultavam mais de necessidades militares do que propriamente pedagógicas.

O corpo, para Hébert, devia ser treinado para responder às necessidades da vida ativa. Foi com esse propósito que desenvolveu um método natural, no qual as caraterísticas higiénicas e utilitárias eram privilegiadas (Museu da Educação Física, 1967).

Nos finais do século XVIII apareceu em Inglaterra um movimento desportivo que, ao contrário das Linhas Doutrinárias anteriormente referidas, centrou a sua atenção não na ginástica, mas sim no jogo. Este movimento que, segundo Jordão (1983), acabou por dar origem à maior parte do desporto atual, procurou aliar o lado recreativo com preocupações

23 de ordem moral e social: “fair play”; “ jogo limpo” e “cavalheirismo”; o seu dinamizador foi Thomas Arnold, diretor do colégio de rugby.

Para Sobral (1976), esta tendência desportiva inglesa vai conflituar com a tendência gímnica e ambas vão constituir-se como os polos fundamentais da chamada «guerra dos métodos», que se arrastou desde a 1ª metade do século XIX até aos anos 50 do século XX.

É importante referir que, nesta «guerra dos métodos» o que verdadeiramente está em jogo é um confronto de conceções de corpo: como o concebemos e como queremos que ele atue. Quando se fala de métodos, para Durozoi e Roussel (2000), designa-se um conjunto de procedimentos e de «regras» para chegar ao objetivo desejado. Independentemente de se considerar a prática gímnica ou a prática desportiva, é através do corpo que esse conjunto de procedimentos e de regras vai ser operacionalizado. O professor dirige-se, seja a um nível mais micro como o exercício, ou seja a um nível mais macro como a aula, ao corpo de cada aluno como meio de atingir o objetivo pretendido.

Mas, se o corpo é meio, também é, simultaneamente, finalidade pois deseja-se que a vivenciação de cada exercício, e de cada aula, se traduza num conjunto de alterações corporais a que usualmente se chama aprendizagens.

Esta «guerra dos métodos» traduz-se, no fundo, em visões opostas sobre o que queremos que o corpo faça e seja. Estas visões são a consequência de contextos sociais com determinadas caraterísticas. Como temos visto ao longo deste estudo desde Descartes tem-se construído um contexto racionalista-cartesiano-positivista-capitalista-médico analista. O corpo cartesiano, desprovido de alma, foi encarado como algo mecânico. Para Foucault (1979), a sociedade vai aproveitar esta ideia de corpo mecânico para o socializar enquanto força de produção.

É este contexto social que, na «guerra dos métodos», vai favorecer a tendência gímnica em detrimento da tendência desportiva.

Convém reafirmar que quando se fala de ginástica, fala-se de um conjunto de práticas físicas que teve a sua gestação na Idade Moderna, mais precisamente a partir de Descartes. Sobral (1976) refere que no século XIX quando se falava de ginástica, não se relacionava com as origens do termo, pois na Grécia Antiga significava um conjunto de práticas físicas realizadas com os corpos nus, mas sim desde as origens científicas da própria prática, ou seja a partir da ginástica sueca de Ling. Foi com este educador sueco que um termo, como diz Sobral (1976), muito elástico, muito impreciso, passou a ser identificado com uma prática bem definida (imagem muito precisa do movimento). Pires (2001) considera que Ling, à

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semelhança de Amorós e Jahn, desenvolveu uma ginástica, não numa perspetiva humanista, mas numa perspetiva económica.

Como vimos com Foucault (1979), no século XIX o sistema de produção capitalista apoia- se mais nos corpos e nas suas ações do que nas terras e seus produtos; a economia do gesto passa a ser fundamental pois pretende-se um gasto mínimo com uma eficiência máxima.

A ginástica, para Pires (2001), como já vimos, é concebida no sentido de responder a uma necessidade social: preparar o trabalhador para se integrar nas tarefas estereotipadas das linhas de montagem.

É pois com preocupações de rentabilidade e de utilidade que, segundo Sobral (1976), o exercício gímnico deve corresponder totalmente à finalidade pretendida, oferecendo, também, todas as garantias de que tal finalidade seja conseguida. Pretende-se um mecanismo minucioso de aperfeiçoamento de cada indivíduo. Cada exercício passa a ter, naturalmente, um objetivo muito preciso e uma forma muito rigorosa de o atingir. Surgem assim, de acordo com Sobral (1976), os exercícios estereotipados, comandados à voz ou ao tamborim, rígidos, numa disciplina formal, inflexível que formam o conteúdo de uma lição de ginástica.

O corpo, nas aulas de ginástica (educação física) é concebido a partir de uma perspetiva cartesiana. Descartes, como já foi referido, quando se deparou com a enorme complexidade dos seres biológicos, utilizou o segundo dos seus preceitos: “dividir cada uma das dificuldades em tantas partes quanto fosse possível e requerido para melhor as resolver” (Descartes, 1977, p.35). A ginástica, ou melhor, os seus mentores, dos quais se destaca Ling, preocupada com o rendimento da ação humana, vai utilizar o mesmo preceito. É desta forma que surge o exercício analítico. É um exercício, para Sobral (1976, p.174) “alicerçado na infalibilidade anátomo-fisiológica, obra-prima do génio da abstração definida pelo movimento mobilizador de uma e apenas uma (!) articulação, impondo pois a menor compensação e concentrando o esforço numa região bem determinada…”. Na ânsia de tudo controlar, divide-se o corpo humano para se monitorizar, pormenorizadamente, o processo, e garantir o resultado pretendido.

Deste modo, segundo Foucault (1999), o exercício analítico insere-se no conjunto de métodos, as «disciplinas», que permitem o controlo exaustivo do corpo, impondo-lhe, simultaneamente, uma relação de utilidade-docilidade. É dócil porque respeita o que se impõe. Não questiona. É, portanto, um corpo submisso. Também é útil, porque, como se submete às ordens, produz o que o poder quer que se produza. O corpo, nas aulas de

25 ginástica, assemelha-se a uma marioneta: o professor puxa os fios e o corpo, maquinalmente, obedece.

Para Foucault (1999), estas disciplinas entram em funcionamento muito cedo nos colégios, um pouco mais tarde nas escolas primárias e posteriormente reestruturam a organização militar.

Porém, nunca é por demais salientar que foi o contexto racionalista-cartesiano-positivista- capitalista-médico analista que gerou esta ginástica (educação física) assim como dois dos seus aliados de peso: o cientismo e o didatismo.

Mas, um didatismo fruto deste contexto apresenta, necessariamente, caraterísticas que contribuem para o controlo minucioso do corpo. Daí que, segundo Sobral (1976) se observe nos finais do século XIX e inícios do século XX, um didatismo extremo, onde o aspeto arrumado das aulas, o aval da ciência e o lugar do professor perante o aluno eram condições imprescindíveis para o sucesso pedagógico.

Perante este contexto de autoridade minuciosa sobre o corpo, o desporto encontra dificuldades para ser acolhido como atividade pedagógica. O seu caráter aleatório, como refere Sobral (1976), não permite o manejo que o didatismo, ao serviço de uma conceção ditatorial de corpo, impunha ao professor nem era digno do empenho mental que a ciência subentendia. Ao contrário da ginástica, o desporto não oferecia garantias que um determinado músculo fosse solicitado as vezes que se pretendia, nem a desencadear um efeito fisiológico claro.

Nesta «guerra dos métodos» triunfa a ginástica, porque triunfa uma conceção maquinal de corpo. Conceção que agrada, porque se submete sem questionar, ao poder dominante.