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A noção de humor e o riso amargo

No documento Dada e o riso (páginas 62-72)

O conceito de humor mostra-se, à primeira vista, como algo inapreensível. Deve-se considerar, inicialmente, que os seus conteúdos, extremamente variáveis, dependeriam muito do tempo e também da sociedade a ser analisada. Vemos, com isso, que um dos seus traços mais característicos seria, justamente, o da imprecisão, no entanto, outro traço bastante peculiar que também deveríamos considerar para compreendê-lo em suas implicações sociais é que ele se apresenta com um caráter abrangente, ou seja, marcando a história de muitas sociedades em diferentes épocas e lugares. Dessa forma, o aparecimento do termo, na Enciclopédia Britânica de 1771, apenas consagrou, exatamente como observamos a respeito

do surgimento e do desenvolvimento do grotesco, uma remota e preexistente forma de espírito que assumiu grande importância no desenvolvimento do pensamento crítico de várias culturas.

Os ingleses passaram a apreciar a noção somente a partir do século XVIII, quando da ascensão dos valores individualistas. Humor e liberdade caminharam juntos. Ele foi uma atitude voluntária e consciente baseada, sobretudo, no distanciamento crítico. Além disso, podemos considerá-lo como uma arma trocista, amplamente utilizada, na luta contra a idiotice vigente. Uma denúncia, enfim, contra um presente medíocre e que era irritante e ofensivo. Por isso mesmo, seria equivocado classificarmos o humor como uma simples brincadeira involuntária.

Um outro importante enfoque que utilizaremos para a interpretação do humor seria o de considerá-lo, seguindo uma definição elaborada pelo dramaturgo inglês Ben Jonson no século XVII, como uma disposição geral do caráter, ou ainda, defini-lo como um estado emotivo que não possui um objeto determinado, distinguindo-se, por isso mesmo, da emoção propriamente dita. O humor acaba, por ser um estado emotivo sem um objeto específico, identificando uma vasta gama de estados emocionais. Isso significa que o humor não tem objeto intencional no sentido de que não existe, por exemplo, um humor de barata exatamente como existiria um determinado medo de barata. O humor possui, dessa maneira, causa e razão, no entanto, é também verdade que não seria correto afirmar que ele se refere a um objeto em particular (ABBAGNANO, 2000, p.520):

Para Jonson, o predomínio de determinado humor em um indivíduo confere-lhe uma excentricidade, uma bizarrice de caráter nitidamente cômico. Se o indivíduo em questão toma consciência dessa originalidade e usa-a diante das dificuldades da vida, o ‘humor’ (no sentido fisiológico do termo) transforma-se em humor no sentido moderno do termo. Vários países estão dispostos a transpor a barreira: a Espanha, onde a excentricidade de Dom Quixote é claramente um ‘humor’; a França, onde Corneille e Scarron, entre outros, utilizam várias vezes a expressão ‘ter humor’, no sentido jonsoniano; a Itália, sobretudo, onde o umorismo design um sistema de pensamento baseado na extravagância barroca. Em 1602, é fundada em Roma, a academia Umoristi, reunindo aristocratas que praticavam o umore. Havia também os

lunaici, os estravaganti, os fiammati, os fatastici, os intromati. (MINOIS, 2003, p.

304).

A afirmação de certo humor, intimamente relacionado às questões inerentes aos conflitos religiosos que marcaram todo o século XVI, fez ressoar o riso em todas as dimensões da sociedade. A leitura humorística de textos, parodiando, muitas vezes, os textos sacros, desempenhou, neste sentido, um papel de cimento social, excluindo todos aqueles que eram considerados como sendo os “outros” dentro desta realidade social. O grupo, nessa conturbada situação eivada por numerosas guerras, fechava-se para rir, quase sempre como acompanhamento de atitudes de extrema violência física contra outros grupos sociais, étnicos e/ou religiosos. Haveria, nesse caso, através da utilização de um riso agressivo, a consolidação dos preconceitos e a construção de uma solidariedade baseada na exclusão de todo o elemento considerado estranho ao perfil traçado pelo grupo.

Teríamos, com isso, uma outra interpretação, muito diferente daquela defendida por Mikhail Bakthin, para o embate entre a séria cultura das elites, civis ou religiosas, e a transformadora cultura popular. Ela ressaltaria, na verdade, somente o caráter agressivo, intolerante, altivo e tirânico do riso carnavalesco. Um riso, portanto, que não poderia admitir oposição, que humilharia, vexaria e desprezaria o estranho. Impondo-lhe sua lei através do

riso e do medo, o grupo, eliminaria todos aqueles que não quisessem se divertir de acordo com as regras preestabelecidas.

O riso, de acordo com esta outra análise, poderia ser relacionado à teoria de Hobbes sobre a maldade inata do ser humano, tornando-se, assim, uma manifestação do nosso orgulho, da nossa vaidade e do desprezo que sentimos pelos outros espíritos mesquinhos. Ele deixa de ser uma visão global da existência, como acontecia no carnaval popular, para ser um procedimento mais intelectual, de crítica social e, principalmente, um perigoso instrumento de destruição a serviço da razão.

Dessa maneira, para entendermos melhor as possíveis mudanças adquiridas pelo riso neste contexto histórico, bastaria, inicialmente, estabelecermos a diferença do seu sentido social na Renascença, quando o riso tinha um caráter mais geral e era compreendido como sendo a marca inerente da espécie humana, e na época Clássica quando muitos já não podem mais rir tão livremente assim. As autoridades, por exemplo, passam a ter o dever de manter, mesmo que apenas de fachada, a seriedade. O semblante sério funcionava, então, como uma contrapartida aquele riso promotor do movimento, do desequilíbrio e do caos. Vemos, com isso, que o riso passa a ser relegado a uma função ácida e, essencialmente, crítica, de oposição, de escárnio, derrisão e zombaria.

Este riso, de caráter mais disciplinado, se impõe pouco a pouco durante todo o século XVII. A elite culta abdicou dele em favor das exigências morais, da estabilidade social e de uma ordem política baseada no direito divino dos reis:

Os poderes se restabelecem, a sociedade estabiliza-se, as hierarquias reencontram suas bases, as injustiças, suas justificativas, as hipocrisias, sua máscara séria. Uma nova ordem se estabelece. O riso sempre teve seu lugar no quadro clássico, mas é um riso disciplinado, conveniente, de bom-tom, decente, discreto, fino. Um riso que acomoda as convenções sociais e políticas, que defende os valores, excluindo os desvios e os marginais; o riso de Molière, de Boileau, de La Bruyère, que até Bossuet aprecia. Certamente, esses ridentes sabem que o mundo é mau, mas é preciso mudá-lo. Então, vamos rir desses avarentos, dos distraídos, dos burgueses pretensiosos, dos velhos amorosos, vamos rir de todos esses furúnculos ridículos que permeiam o corpo social, mas não vamos rir do próprio corpo. O grande riso burlesco da época de Luís XIII tinha uma dimensão cômica; ele ria da vida do homem. O pequeno riso polido da época de Luís XIV é puro divertimento, um pequeno jogo superficial que zomba de alguns defeitos anódinos para assegurar a seriedade dos valores fundamentais. Essa é a grande diferença, esperando a volta de ridentes mais radicais. (MINOIS, 2003, p.393).

O objetivo dos poderosos, dessa forma, foi o de buscar um controle, cada vez maior, sobre o poder inerente ao riso. Ele passou a ser utilizado de maneira mais consciente e também com uma nítida finalidade de garantir uma maior eficácia política. A dominação social, tendo como aliado este riso refinado, adquiriu uma precisão e um alcance que atingiu todas as esferas da sociedade. O resultado, desta nova atitude, se mostrou, na maioria das vezes, destruidor e agressivo. Aquele riso bruto e festivo transformou-se, assim, em ironia e humor. Perdeu, ao sofrer um apurado refinamento cortesão, a sua antiga naturalidade, tornando-se civilizado. Nesse contesto, quando não o utilizaram como instrumento de controle ou como um instrumento de crítica social, política e religiosa, passaram a usá-lo como parte essencial de espetáculos sempre mais sofisticados ou como elemento da recreação de cortesões que precisavam demonstrar, cada vez mais, requinte nos seus gestos, nos seus pensamentos e nas suas palavras.

Chamaremos este riso de libertino. Para ele a realidade não passava de uma grandíssima asneira digna do pior cômico possível. Percebe-se que estamos lidando com um riso amargo e totalmente pessimista que não alimentava, portanto, nenhuma esperança em relação a um mundo melhor. Trata-se, portanto, de um riso amargo, cético e inquieto que suspeita até mesmo da Razão que poderia estar contaminada pela loucura humana. Somos coagidos a rir das nossas desgraças, ou seja, desta vida que começa de uma maneira trivial, desenvolve-se entre a loucura, a mediocridade e a futilidade e termina, inevitavelmente, de forma absurda. Diante da incurável bestialidade e demência do homem, o riso ganhava um tom de total desânimo, afinal, ele já não pode mudar a sociedade ou alcançar o seu sentido. O que restou foi apenas um riso petulante e negativo que lamentava a deplorável situação humana sem, contudo, poder efetivamente transformá-la.

Notamos que este riso zombou de todos os defeitos da sua época, revelando, impiedosamente, até mesmo aquelas práticas que eram desconhecidas pela sociedade em geral, além disso, ao ridicularizar a moral vigente, ele acabou, na verdade, por se constituir em um de seus maiores baluartes. Fica evidente também que os libertinos assumiram uma postura cínica, pois, fizeram rir, de tal forma, de vícios, tão arraigados às práticas sociais, que eram considerados como finas qualidades merecedoras de não poucos elogios por parte de todos, tornando-os, então, desprezíveis.

Outro traço importante do riso libertino foi o seu caráter burlesco. Não podemos esquecer que esta sempre foi uma atitude característica de períodos de profundas crises, sociais, econômicas, políticas e, sobretudo, de valores, ou seja, quando a realidade perde completamente a sua inteligibilidade. Tal vertigem parece estar ligada diretamente à falta de confiança, uma decorrência direta das guerras religiosas, nas possibilidades humanas. Muitos autores, dessa forma, passam a definir e a rir do homem por sua crueldade, imensa vaidade, bestialidade e incurável maldade.

Jonathan Swift (1667 – 1745) com seu romance, cômico e profundamente pessimista, As Viagens de Gulliver, pode ser citado como um bom exemplo desses autores que defenderam, tanto nas suas obras como nas suas vidas, a postura de considerar o homem como uma criatura, no mínimo, detestável. Ele chegou, com o seu tom niilista e trocista, ao extremo da zombaria no século XVIII. Observou o ser humano como se fosse um espantoso verme e elegeu como alvo das suas risadas os vícios da organização social da sua época. Após este virulento ataque à sociedade e aos valores morais de seu tempo, restariam somente à esperança em Deus e a feroz humilhação imposta ao ser execrável, seja por meio das lágrimas da dor, da culpa ou, preferencialmente, através das mais impiedosas zombarias que pudessem ser arquitetadas para a completa vingança contra toda a forma de injustiça. Esse riso amargo dos autores burlescos, não poderia oferecer, ao contrário do que anteriormente havia ocorrido com o espírito carnavalesco, nenhuma perspectiva ou esperança para a transformação efetiva da sociedade, mas, apenas uma vontade incontida de aniquilar através do humor toda a iniqüidade sofrida pela humanidade.

Por outro lado, Swift, ao contrário do que poderia parecer inicialmente, levou, de certo modo, a humanidade a sério. Foi, justamente por isso, que considerou o humor como único remédio eficaz contra o desespero de não conseguir acabar com o mal que sufocava as melhores possibilidades do homem. Este amor, de modo algum incondicional, que sentiu pela humanidade pode ser constatado mesmo quando ele descreve a idiotice criminosa daqueles “vermes espantosos” sob os traços repulsivos dos yahoos.

Um outro elemento valioso do humor que podemos encontrar em As viagens de Gulliver foi o comentário feito por Swift, expresso pela visão da humanidade a partir de diferentes pontos de vista, a respeito da nossa existência. Encontramos, inicialmente, um ser com superioridade física que vê a humanidade ridiculamente pequena. Depois temos um ser de físico inferior que vê a humanidade grotesca e muito grande. A realidade, já num terceiro

momento, passa a ser abordada do ponto de vista do senso comum e a humanidade mostra-se, assim, desvairada e extremamente perversa. Temos, finalmente, a perspectiva de um animal racional que encarou a humanidade como sendo irracional e inteiramente bestial.

O caráter de Gulliver, ao mesmo tempo em que ele se movimentou através dessas variadas visões de mundos tão diferentes, também acabou sofrendo uma série de profundas mudanças. Trata-se de um dolorido processo de aprendizagem. Podemos, com isso, saber como as atitudes de um ser inteligente e sensível reagiram, segundo o autor, ao crescente conhecimento da natureza humana.

Assim, a humanidade, na primeira parte, foi visualizada em miniatura, o que, num primeiro julgamento, lhe conferiu um aspecto encantador. Estas pequenas criaturas, no entanto, logo se revelaram, mostrando uma enorme capacidade para a crueldade e para as mais sórdidas traições. São pessoas dispostas a sacrificar todos os seus sentimentos para satisfazer suas mais tolas ambições.

Encontramos, já na segunda parte, a descrição de uma raça humana grosseira e empedernida. Os enormes brobdingnagianos, com seu cheiro, seus hábitos físicos e suas maneiras à mesa, provocam, em Gulliver, uma indisfarçável repugnância. A maior revolta, no entanto, aconteceu quando ele foi aprisionado, tendo de trabalhar quase até a morte para um fazendeiro cujo principal interesse estava no dinheiro. Até mesmo nos soberanos de Brobdingnag podemos notar, por exemplo, nas piadas contadas sobre as experiências de Gulliver com o macaco e as moscas gigantes, uma completa falta de sensibilidade. Esta insensibilidade dos monarcas estende-se também pela população em geral, revelando-se, sobretudo, pela maneira como os brobdingnagianos se relacionam entre si. Nesse sentido, a descrição dos mendigos de Lorbrulgrud pode ser compreendida como um típico episódio que demonstra o tipo de consciência social predominante entre a população desse país e, além disso, evidencia todo o barbarismo contido no seu sistema penal.

Os relatos de Gulliver, em contrapartida, a respeito da situação da Europa, da sua política, das eleições para os cargos públicos, do funcionamento da justiça, da administração dos recursos do tesouro, da religião, do comportamento dos religiosos, da demografia, dos exércitos mercenários, da política externa e da história inglesa do último século, também causaram horror no rei. O monarca ficou surpreendido com a capacidade demonstrada por “um impotente e rastejante inseto” em acalentar idéias tão desumanas, ficou, além disso, paralisado com as incoerências contidas nas descrições feitas pelo pequeno Grildrig sobre o seu país e aterrorizado com o amontoado de conspirações, rebeliões, assassinatos, massacres, revoluções, exílios, produzidos incessantemente pela avareza, hipocrisia, perfídia, crueldade, raiva, loucura, ódio, luxúria, malícia e ambição humana:

Sua Majestade, numa outra audiência, deu-se ao trabalho de resumir tudo o que eu dissera, de comparar as perguntas que me fizera com as respostas que eu dera. Então, pegando-me em suas mãos e me acariciando gentilmente, desabafou com estas palavras, que jamais esquecerei, assim como a maneira como ele as disse: Meu pequeno Grildrig, você fez o mais admirável panegírico sobre o seu país. Você provou claramente que a ignorância, a preguiça e o vício são verdadeiros qualificativos de um legislador. Que as leis são muito bem explicadas, interpretadas e aplicadas por aqueles cujos interesses e habilidades residem em pervertê-las, confundi-las e eludi-las. Observo entre vocês algumas linhas de uma instituição que originalmente seria muito tolerável, mas que na aplicação tornou-se obliterada, deturpada e manchada pela corrupção. Não percebo em tudo o que me disse, que se exija nenhuma perfeição dos que alcançam os cargos de direção entre vocês, muito menos que se exijam homens que se tenham tornados nobres pela virtude, que os sacerdotes sejam

homenageados por sua piedade ou ensinamentos, os soldados por sua conduta ou coragem, os juízes por sua integridade, os senadores pelo amor à sua terra, os conselheiros por sua sabedoria.

Como você, prosseguiu o rei, passou a maior parte de sua vida viajando, estou disposto a esperar que tenha escapado de muitos vícios do seu país. Mas, pelo que pude perceber no nosso relacionamento e pelas respostas que consegui extorquir de você com muito esforço, devo concluir que a maior parte dos seus compatriotas é a mais perniciosa raça de pequenos e odiosos parasitas que a natureza permitiu que rastejem na face da Terra. (SWIFT, 2003, p. 166).

Gulliver passou, em seguida, a observar o comportamento humano sob o ângulo do senso comum. Viu como a razão poderia ser desperdiçada na realização de fúteis jogos intelectuais ou, pior ainda, para explorar, inescrupulosamente, as outras pessoas. Aprendeu também, em Glubbdubdribb, a lição de que o crime não só ficaria impune como poderia até mesmo compensar e de que a natureza humana vai, cada vez mais, se tornando pior. Para deixar o quadro ainda mais deprimente este ensinamento foi, triste e indubitavelmente, confirmado em Luggnagg, em primeiro lugar, por uma tirania sanguinária e, em segundo lugar, pelos struldbrugs que ilustram tanto as misérias gerais da vida como a tendência dos seres humanos em tirar vantagem uns dos outros.

Finalmente, na quarta parte, os seres humanos são considerados pelos houyhnhnms como sujos, gananciosos, perversos, lúbricos e estúpidos. Os homens aparecem descritos através das figuras dos yahoos. Gulliver os comparou com os europeus, todavia, na descrição que ofereceu ao seu patrão estes últimos possuem uma inteligência maior, o que os transforma, pelos atos que praticam sendo indivíduos pretensamente racionais, em criaturas ainda mais repulsivas do que os yahoos. Percebemos, deste modo, que os cristãos tornam-se mais impiedosos do que os próprios pagãos e aqueles que foram considerados como sendo civilizados mais embrutecidos do que os que foram chamados de bárbaros.

Dessa forma, cada um destes quatro pontos de vista apresentou algum aspecto desagradável do homem. Devemos ressaltar, no entanto, que tais retratos não são idênticos, não pretendem ser completos e nenhum deles desejou encerrar uma verdade absoluta. Podemos ter uma idéia da importância desta relatividade de figuras se considerarmos a aparência do houyhnhnm que, sem dúvida, representou um importante aspecto humano, mas, de forma alguma, o único. Por isso mesmo, as figuras criadas por Swift para representaram o ser humano são admiráveis, em muitos casos, e revelam-se, em outras ocasiões, como algo completamente detestável.

Assim, visualizamos a formação, tendo como referência a sucessão dos quadros criados por Jonathan Swift repletos de humor, de uma realidade que ganhou, lentamente, cores sombrias e terríveis. As viagens de Gulliver constituem-se, assim, como se fossem estágios na sua desilusão. A única reação que podemos esperar, diante desse processo de aprendizado e de completo descrédito quanto à natureza humana, seria a sua transformação num misantropo. Não podemos esquecer que ele iniciou sua jornada como um rapaz alegre, inocente até o ponto de sempre esperar o melhor de todo o mundo, mas, que acabou se surpreendendo com a traição que encontrou em Liliput, terminando, por isso mesmo, como alguém obcecado pelo que há de errado com as pessoas.

Percebemos ainda, principalmente nos últimos capítulos, que ele perdeu o senso de proporção na sua devoção pelos houyhnhnms e também no seu ódio pela sociedade humana. A sua caracterização como misantropo foi, propositadamente, exagerada, para que somente pudéssemos compreendê-la como uma piada:

Comecei na semana passada a permitir que minha esposa sentasse comigo ao jantar, no extremo mais distante de uma longa mesa, e a responder (mas com a maior brevidade) às poucas perguntas que lhe formulo. O odor dos yahoos continua a me ser profundamente ofensivo, assim mantenho sempre junto ao nariz arruda, lavanda ou folhas de tabaco. E apesar de ser difícil para um homem de mais idade remover certos hábitos, não estou totalmente desesperançado de, com o passar de algum tempo, conseguir suportar a companhia de um yahoo vizinho sem a apreensão que ainda sinto por causa de seus dentes e garras. (SWIFT, 2003, p. 347).

A misantropia de Gulliver, desse modo, também acabou sendo tão satirizada como qualquer um dos defeitos apontados e repudiados pelo próprio misantropo. Swift, em

No documento Dada e o riso (páginas 62-72)