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Considerações preliminares a respeito do caráter do riso dos dadaístas

No documento Dada e o riso (páginas 95-99)

Seria bastante pertinente para finalizarmos este capítulo, que buscou traçar um quadro sobre alguns dos episódios que marcam a história do riso e das suas principais implicações no debate filosófico, destacarmos algumas das características que consideramos mais relevantes acerca do riso dadaísta. Afinal, observamos que ele esteve presente nas intervenções dos diversos participantes, nos diferentes momentos e também nas várias capitais que serviram de palco para as suas contundentes manifestações.

Inicialmente, devemos ressaltar que o riso dos dadaístas inscreve-se no contexto, muito especifico, da derrota dos ideais do Iluminismo ocorrida após a Primeira Grande Guerra Mundial. Ele está baseado, além disso, na derrisão universal e na exploração irônica do senso do absurdo vivido pela sociedade européia daquele momento. Podemos considerar a Primeira Guerra Mundial como um paradigma da crescente desvalorização da vida ocorrida a partir de então. Os soldados durante aquele conflito terrível eram, muitas vezes, sacrificados sem nenhum objetivo que justificasse tamanha carnificina. Na batalha de Verdun, por exemplo, houve mais de meio milhão de mortes. Os líderes militares podiam, deste modo, utilizar quantos soldados quisessem, mesmo quando o objetivo estratégico não fosse importante, afinal os soldados eram, simplesmente, considerados inúteis e dispensáveis quando não já não serviam aos interesses da burguesia. O que ilustra também o papel que a tecnologia passou a ter na dominação imposta tendo como fundamento os princípios da racionalidade.

Um desprezo similar pela vida continua, atualmente, sendo bastante comum. O mercado de trabalho mundial convive com uma explosão demográfica que colocou milhões de pessoas numa posição delicada quanto à possibilidade de sua inserção no mercado de trabalho e aos direitos básicos da cidadania. Esta grande multidão de pobres globalizados enfrenta uma árdua batalha diária apenas para garantir a sua sobrevivência num sistema comercial opressivo que pode se dar ao luxo de descartar milhares de vidas como se não tivessem nenhum valor. A sensação, diante deste quadro de brutal exploração, é a do total desespero, afinal, somos vistos como meros instrumentos, facilmente descartáveis, de fazer dinheiro. Mesmo aqueles que não enfrentam a extrema opressão da carência sofrem com o constante sentimento de futilidade. Tais privilegiados, após as suas várias realizações, chegam ao final da vida, geralmente, insatisfeitos e abatidos por tanto esforço desperdiçado para nada alcançar.

Outra interessante particularidade desta vanguarda foi a ampla utilização dos recursos da imprensa visando polemizar com os ideólogos nacionalistas. Várias exposições de caráter provocativo, também procurando desencadear o furor dos patriotas, ocorreram nas cidades que foram sede dos grupos Dada5.

No entanto, apesar do alarde gerado por suas manifestações em todas as cidades em que ele ocorreu, o público alcançado pelo Dada permaneceu muito restrito e a sua base cultural muito elitista, o que, evidentemente, impediu que ele pudesse exercer uma influência mais durável. Dizemos, por isso, que a sobrevivência Dada dependeu do seu público. Ele nasceu da sua resistência, desenvolveu-se pelo escândalo das suas atitudes e morreu pelo desinteresse daqueles que anteriormente ficavam chocados pelo seu riso.

Eles se organizaram, invariavelmente, em pequenos grupos. Os iniciados, destas verdadeiras seitas do absurdo, desprezavam todos os valores burgueses da sociedade. Adeptos

5 Entre as principais cidades que podem ser citadas estão Zurique, Berlim, Colônia, Hanover, Nova Iorque,

do niilismo levavam apenas o riso a sério, sua grande tentação era, justamente, rir de tudo com espírito sério e metódico.

Vários manifestos, quadros, montagens, espetáculos, esculturas e outras manifestações não tradicionais e típicas de diversos artistas ligados ao Dada ostentavam a máscara do humor. Uma troça, aparentemente gratuita, porém, reservada aos seus poucos prosélitos. Essa vanguarda serviu-se, freqüentemente, das possibilidades do escárnio para explicitar e destacar a negação sistemática, o ceticismo absoluto, o terrorismo de atos tresloucados e o irracionalismo presente na sua postura niilista. A postura radical dos dadaístas de transformar tudo em motivo para a derrisão, não os livrou, entretanto, da angustia diante do nada.

Este grupo explorou, inicialmente, a mais pura derrisão como forma de protesto, isto, numa época em que já se priorizava a comercialização do riso em escala industrial. Posteriormente, diante do evidente predomínio deste riso mercadoria, a maior parte dos adeptos Dada acabou partindo para novos e mais lucrativos horizontes, reunindo, assim, o riso com as regras do totalitarismo imposto pelo mercado, transformando o humanismo e até mesmo o pessimismo em alternativas rentáveis para a indústria cultural em expansão.

Todavia, o humor negro continuava sendo, de acordo com André Breton, o único comércio intelectual de alto luxo (BRETON, 1985). Ele ainda podia exorcizar, como último recurso disponível diante do retrocesso da fé vivido por nossa sociedade tecnológica, o medo que sentimos diante do nada. Não se tratava, evidentemente, de se explicitar o humor como remédio definitivo contra as nossas angústias ou fazê-lo servir a fins didáticos e morais, os seus alvos por excelência, na verdade, eram o sentimentalismo, a bestialidade e o conformismo reinantes. Tratava-se, portanto, de uma nobre expressão do espírito humano que, atingindo zonas profundas do ser, nos permitiria dominar as convulsões da nossa existência.

O humor negro, principalmente depois das traumáticas experiências vivenciadas durante todo o período da Grande Guerra culminando com suicídio de Jacques Vaché, surge como uma necessidade e um reflexo defensivo da imaginação poética para angariar a disposição necessária para enfrentar a comédia dramática, ou o drama cômico, em que vivemos. Seria um humor produzido pela ruptura entre a imaginação poética e o bom senso, entre o excepcional e o rotineiro, uma ruptura, enfim, obtida, sobretudo, através da demissão do pensamento lógico e da moral do filisteu imperialista. Tal espírito de oposição, tranqüila e graciosamente irônica, sempre questionou radicalmente a sua realidade procurando aspectos desconhecidos das coisas, tentando, perpetuamente, achar a expressão não vista e a revelação de possibilidades que parecem exceder as capacidades humanas mais usuais. As ondas de palavras produzidas pela indústria cultural não deveriam, dessa maneira, nos confundir, a simplicidade, deste modo, muitas vezes se encontra no contrário do que é dito e feito pelos mortais comuns. A realidade poderia ser desmentida, constantemente, por este humor que nos conduz à hostilidade a toda forma de acomodação.

Alfred Jarry, apenas para citarmos um dos escritores listados por Breton na sua antologia sobre o humor negro, ilustra perfeitamente, com a sua hostilidade por todos os credos, o caráter antiburguês de alguns dos principais antecessores tanto do humor negro professado pelos surrealistas como também do niilismo iconoclasta defendido por muitos dos participantes dos diferentes grupos e momentos da história dadaísta.

Os dadaístas podem ser considerados, neste sentido, como representantes de um movimento que enfrentou a realidade da cultura capitalista ocidental questionando os seus valores e incluindo nas suas intervenções todas as possibilidades, pensamentos e experiências que pudessem servir, de algum modo, para indagar e refletir sobre a sociedade da sua época. A concepção de arte defendida por Tristan Tzara, como, por exemplo, aparece em um dos seus manifestos, visava algo mais radical do que a simples experiência do ateliê garantia ao artista. Por isso mesmo, em várias de suas obras, encontramos uma oposição radical ao comportamento e idéias do homem moderno:

A arte precisa duma operação

A arte é uma PRETENSÃO aquecida

na timidez do bacio, a histeria nascida do atelier Procuramos a força direta pura sóbria

única não procuramos NADA

afirmamos a VITALIDADE de cada instante

a anti-filosofia das acrobacias espontâneas

Neste momento odeio o homem que cochicha antes do intervalo – água de

colônia – teatro acre. O VENTO ÁLACRE. (TRISTAN, 1987, p.22 grifo do autor).

A atividade artística, de um modo geral, foi à derradeira atividade em que o objeto manteve uma relação de identidade com o seu produtor. Afinal, a possibilidade de se fazer algo (numa sociedade em que quase todos os objetos são produzidos industrialmente, com ampla utilização de tecnologia, numa escala nunca antes desenvolvida e através de uma divisão cada vez mais acentuada do trabalho social) que represente um esforço individual torna-se muito remota. Portanto, alcançar um resultado a partir da própria criatividade, experiência, trajetória, formação e capacidade da pessoa, representa uma oportunidade conferida a pouquíssimos sujeitos. Eles transformam-se em adversários, por isso mesmo, da grande turba de “idiotas” e “medíocres”.

Os objetos padronizados, resultantes dos modernos processos industriais, não criaram nenhum vínculo pessoal, nem poderiam, pois, eles se definem, principalmente, pelo seu caráter funcional, impessoal, utilitário e transitório. Tal atividade econômica, portanto, garante, por um lado, a sobrevivência do homem, em alguns casos, na verdade, uma vida de fausto e conforto sem precedentes na história da humanidade, mas, por outro lado, gera também um enorme vazio para a vida das pessoas envolvidas nesta atividade febril. Elas procuram, devido justamente à falta de identificação e de espontaneidade de suas existências, um sentido que tornasse mais suportável as suas vidas de homens descartáveis.

A arte estava, ao contrário do sombrio mundo fabril, embebida numa resplandecente aura. Ela ergueu-se, durante muito tempo, como prova da atividade de indivíduos que lograram escapar da mesmice da vida comum. Depois dos acontecimentos desencadeados pela Primeira Guerra Mundial, no entanto, essa posição privilegiada do artista também passou a ser afetada pelos padrões da indústria, da técnica e da ciência. Trata-se, na verdade, do prelúdio, que mais tarde seria descrito pelos surrealistas, por Benjamin, Adorno, Horkheimer e Marcuse, daquele cruel e completo domínio da indústria cultural, da institucionalização, da impessoalidade, enfim, do controle burocrático da vida humana que se torna o símbolo do predomínio dos desígnios do capital sobre nossas ações.

Os dadaístas persistiram na luta contra a opressão da criatividade e da imaginação. Opuseram-se também a certa concepção de arte vinculada aos interesses comerciais. Sua produção foi marcada pelo crivo do acaso, do automatismo e da simultaneidade como instrumentos de reflexão e crítica da sociedade burguesa. Eles encontravam nos elementos descartáveis, variáveis e desordenados, constituintes da rotina das grandes cidades industrializadas, a possibilidade de criar não só uma nova estética, como outras vanguardas do

início do século já haviam feito antes deles, mas, de fomentar uma rejeição a todos os valores consagrados pela ideologia própria do sistema econômica e político. Afinal, Dada nasceu entre o desastre provocado por duas guerras mundiais.

A luta contra a descaracterização das palavras, para muitos dos artistas dadaístas, significou abdicar de qualquer função comunicativa. Visava-se, com a criação deste discurso ininteligível e agressivo, evitar, a todo custo, qualquer compreensão que fosse mais superficial ou meramente previsível. Não se desejava, de nenhum modo, presentear o público com obras prontas para serem consumidas sofregamente como mercadorias produzidas a partir da mesma lógica dos demais setores produtivos da sociedade. Tratava-se, desse modo, da desesperada tentativa, através dos novos recursos estéticos utilizados por outras vanguardas, mas, sobretudo, pelo riso e por esta não-comunicação, de sacudir o espectador de seu habitual torpor.

Outro ponto importante que deve ser ressaltado, nesta caracterização do papel da linguagem e do riso, seria a iconoclastia presente em muitos trabalhos dos dadaístas. Ela aparece, incontestavelmente, como outro importante pressuposto na tarefa de destruição dos valores vigentes, afinal, a obra de arte havia deixado de ser simplesmente um campo para as experiências da alma e da imaginação, para transformar-se em mais uma mercadoria. Este foi o motivo que levou o artista dadaísta a questionar o sentido e a finalidade da arte, criticando a visão de que a nova percepção de mundo, alcançada pelas vanguardas, devesse, simplesmente, restringir-se a meras inovações no plano formal.

Eles não podiam acreditar, portanto, numa arte que refletia toda a inflexibilidade e falta de vida da sociedade burguesa. Propunham destruir e ocupar, como já havíamos destacado anteriormente, o lugar das velhas fórmulas convencionais de expressão. Criar um outro tipo de “comunicação”, que possibilitasse aos homens o contato e a reflexão com os dilemas do mundo atual, que abalasse as estruturas sociais e a dominação ideológica promovida através dos bens culturais.

Compreendemos, dessa maneira, que os artistas dadaístas utilizaram o riso como uma forma de insubordinação contra o crescente perigo de dissolução de todos os valores, idéias, estéticas e arquiteturas, enfim, como um protesto contra as vivencias que irão caracterizar todas as sociedades capitalistas a partir da Idade Moderna. O riso possui, justamente por corrigir, despertar nossa atenção e promover a sociabilidade ao reprimir todo o isolamento e rigidez, uma forte relação com as questões da vida social.

Pretendemos, no último capítulo do nosso trabalho, abordar tais problemas mais detalhadamente, a partir, sobretudo, da compreensão exposta por Walter Benjamin no seu A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, Theodor Adorno e Max Horkheimer no livro Dialética do esclarecimento e por Herbert Marcuse na obra Ideologia da sociedade industrial. Assim, veremos que o riso presente nas intervenções dadaístas caracterizou-se, por um lado, como repulsa ao nosso cotidiano banalizado. Por outro lado, pode ser entendido como luta contra a imposição de uma lógica mecânica, também pode ser interpretado como um movimento caracterizado por atitudes que contestaram o utilitarismo vigente ou como um protesto veemente contra as diversas implicações nefastas do capitalismo e, finalmente, também como um esteio que permitiria a permanência dos ideais de uma sociedade mais justa.

Desse modo, compreendemos que o riso dos dadaístas foi uma arma fundamental para a sustentação das manifestações criativas do homem. Antes, porém, de abordarmos a oposição entre o riso Dada e o riso mercadoria, tentaremos desenvolver um pouco mais o conceito de paródia e suas possíveis implicações para a compreensão do riso na sociedade unidimensional.

No documento Dada e o riso (páginas 95-99)