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Introdução

No documento Dada e o riso (páginas 119-123)

3. O riso dos dadaístas e a indústria cultural

3.1. Introdução

Pretendemos discutir, ao longo do nosso capítulo final, como o capitalismo, a partir das primeiras décadas do século XX, conferiu um ar de semelhança a tudo aquilo que produziu, inclusive, ao riso. Ele foi transformado, juntamente com os outros elementos da cultura ocidental, numa rentável mercadoria e também numa importante forma de dominação. A elaboração do processo de transformação da cultura em mercadoria, procurando exaltar e difundir, ao mesmo tempo, um discurso ideológico que enfatizou a pretensa igualdade das massas, tornou-se tão abrangente que acabou se espalhando pelas principais sociedades ocidentais industrializadas, predominando, assim, no comportamento e nos valores dos indivíduos de diversas classes sociais. Dessa forma, mesmo no âmbito cultural, sempre alguma coisa era prevista a fim de atender as novas, crescentes e inusitadas demandas dos contingentes enormes de ávidos consumidores. Nenhum aspecto da realidade social conseguiu escapar da criação, baseada na técnica e na razão científica, dessas diferenças artificiais e intencionalmente promovidas. Para empreendermos tal tarefa vamos utilizar como principais referências teóricas as concepções sobre as vanguardas encontradas em autores como Theodor Adorno, Walter Benjamin, Peter Bürger, Max Horkheimer e Herbert Marcuse.

Diversos artistas procuraram, influenciados pelo ideal Romântico de gerações anteriores, mecanismos que possibilitassem a manutenção da sua atitude de emancipação frente à sociedade. Eles desejaram, em muitos casos, que a sua posição de artesão independente e autônomo fosse preservada da destruição promovida pela Revolução Industrial. Assim, o participante, por exemplo, de um dos vários agrupamentos dadaístas, a maioria deles formados durante a última fase da Primeira Guerra Mundial ou nos anos seguintes ao final do conflito, questionou, através de suas atitudes niilistas, a arte mercadoria

e a lógica de dominação ideológica das sociedades capitalistas. Os artistas ligados aos diferentes grupos dadaístas, espalhados pelas capitais de vários países da Europa, continuaram, portanto, defendendo a independência do artista e a reflexão crítica diante da imposição dos valores da cultura burguesa.

A indústria cultural acabaria, no entanto, derrotando cada uma das pretensões revolucionárias defendidas pelo artista Dada. Atrelando-as, intimamente, aos seus próprios interesses, a burguesia, não apenas conservou seus privilégios, como aumentou o seu domínio sobre as massas. Tratou-se, na verdade, da imposição do silêncio obediente, aquele silêncio exigido a todo e qualquer proletário submetido ao jogo da mais-valia das sociedades industriais mais avançadas. A indústria cultural, portanto, tornou absoluta a imitação e a produção em série das mercadorias culturais. Ela fixou uma linguagem própria e, reduzida ao seu próprio estilo, revelou, deste modo, o seu maior segredo: a completa e irrestrita obediência à hierarquia social e a uma lógica de dominação.

A implantação de uma racionalidade tecnológica, voltada, sobretudo, para a dominação e o desenvolvimento da indústria cultural, verdadeiro império de uma pretensa igualdade e corolário da democracia de massas, também regulariam a relação da cultura com o passado. A cultura de massas incluiria qualquer elemento novo sempre como se ele fosse um elemento imprescindível. As novidades, difundidas pela indústria cultural, giravam, todavia, em torno do seu próprio eixo. Toda a criação que ainda não houvesse sido experimentada e consagrada pelos interesses do mercado, era, automaticamente, afastada por ser considerada, tendo em conta a visão pragmática da indústria cultural, como algo extremamente perigoso e completamente inútil.

Quando a indústria cultural defende a introdução de algum elemento novo, ela não estaria, portanto, pensando em transformar a sociedade ou questionar os padrões culturais já estabelecidos. Trata-se, pelo contrário, de conferir, através da busca incessante por novidades, maior dinamismo e ritmo ao desenvolvimento do próprio mercado consumidor. Tudo deveria, justamente como acontecia na produção industrial com intensa divisão do trabalho social e alto desenvolvimento tecnológico, ser mantido em movimento contínuo.

Tal ordenamento da sociedade, segundo uma perspectiva inteiramente positivista, poderia ser compreendido como sendo uma pré-condição, talvez imprescindível, para a implantação de tecnologias mais modernas e, conseqüentemente, para a criação de mercadorias inovadoras, garantindo, assim, o crescente progresso material e um maior conforto para as massas. A indústria cultural, estabelecendo o princípio de que nada poderia estar parado, ou seja, ditando um ritmo frenético, alcançado através do constante desenvolvimento racional das técnicas de reprodução, proporcionaria, ironicamente, uma mesmice que não alteraria a realidade, mas, somente reforçaria a visão de mundo da classe dominante. Toda a novidade produzida pelo sistema enquadrava-se, na verdade, em algum modelo pré-determinado de interesses econômicos, políticos, sociais ou culturais.

A grande novidade promovida pela indústria cultural não residiria, entretanto, apenas no incrível fomento de uma quantidade que, comparada a qualquer outro período da história humana parece ser incomensuravelmente maior, de novas mercadorias; todas elas seriam, aliás, pretensamente acessíveis, imprescindíveis e também necessárias ao conforto do consumidor moderno.

Sua principal inovação encontra-se, sobretudo, na conciliação de elementos até então heterodoxos e antagônicos tais como a cultura, a arte e o divertimento. A arte leve, fabricada para divertir as massas, passou, a partir desse momento, a acompanhar como uma sombra à chamada arte autônoma. Isso se tornou uma realidade porque os indivíduos, extenuados por ter de enfrentar, todos os dias, o processo alienante da exploração capitalista em troca de uma existência miserável, não conseguiam mais vislumbrar nenhuma perspectiva de superar tal situação de pobreza e exploração. O indivíduo, desse modo, foi coagido a compreender que a

única alternativa, para não sucumbir diante do desespero provocado por uma vida de alienação e violência, seria a de adequar-se inteiramente ao pensamento e à lógica do sistema dominante.

A dominação ideológica reforçou ainda mais o seu poder quando passou a criar mecanismos efetivos, principalmente nas sociedades industrializadas mais desenvolvidas, para garantir a entrega incondicional de um determinado tipo e de uma grande quantidade de diversão para as massas. O lazer, proporcionado pelas inúmeras mercadorias oferecidas, deveria, a partir de então, preencher todas as horas disponíveis para o lazer. Devemos incluir o riso mercadoria, evidentemente, como um dos mais importantes elementos contidos na formulação desses produtos. Estabelecer a relação dos dadaístas com os produtos da indústria cultural permite observar toda a ambigüidade do riso transformado em ferramenta da lógica cultural capitalista.

A quantidade de certa diversão, facilmente disponível para o consumo das massas urbanas através do constante desenvolvimento de novas tecnologias, adquiriu, a partir de então, enormes proporções. Tudo isso colaborou, justamente, para que o indivíduo não questionasse sua postura de simples espectador manipulado. As massas foram satisfeitas com doses adequadas de emoção e sentimento, acomodando-se, portanto, ao modelo de comportamento e de pensamento já estabelecido.

O indivíduo, além disso, não deveria elaborar qualquer reflexão, o que poderia ser considerado algo extremamente perigoso, ou desenvolver qualquer tentativa de estabelecer uma atitude crítica que o levasse a indagar sobre as razões e as características adquiridas pela opressão burguesa. A realidade social extremamente repressiva deveria, de acordo com a perspectiva defendida por essa lógica de dominação, ser considerada como uma condição que proporcionaria, apesar de todos os problemas sociais, inúmeros prazeres, vários tipos de deleites e uma infindável alegria para as massas de trabalhadores.

Portanto, podemos dizer que a indústria cultural formulou, através da diversão e do entretenimento, a promessa de restabelecer um paraíso para que o proletário desfrutasse e ocupasse todo o seu tempo de folga de modo a não questionar a sua própria situação de total frustração e humilhação. A farta difusão do riso mercadoria, entretanto, somente ajudou no estabelecimento e na perpetuação da mesmice na vida cotidiana. O jardim do Éden, de acordo com o projeto capitalista, apenas poderia oferecer artigos para o consumo, promovendo, com isso, uma árdua e infinita disputa para alcançar um ideal de felicidade que, neste contexto histórico de dominação e repressão das verdadeiras necessidades humanas, torna-se irrealizável. A capacidade crítica sofre inúmeros ataques e a atitude mais comum passa a ser a de um perpétuo adiamento das nossas expectativas para um amanhã que jamais se realiza ou a criação de falsas necessidades que não conseguem satisfazer qualquer ideal que contradiga a situação de opressão e injustiça da nossa sociedade.

Devemos ressaltar, no entanto, que, pelo menos inicialmente, não conseguimos sentir tanto o impacto dessa repetição enfadonha. O tempo “paradisíaco” de esquecimento, proporcionado pela diversão industrializada, mostrou-se, afinal, sempre repleto de surpresas, novos tons, cores, sons, estilos e possibilidades, tornando-se, portanto, algo extremamente agradável e desejável. As inúmeras mercadorias oferecidas pela indústria cultural, como forma de fugir da opressão e do tédio, continuavam, todavia, repercutindo, apesar de todos os seus aspectos fascinantes, a mesma impotência e alienação experimentadas na rotina normal a que as pessoas estavam, impreterivelmente, submetidas. Percebemos, desse modo, que o divertimento produzido pela indústria cultural passou a ser amplamente utilizado como um meio de resignação e de esquecimento dos muitos padecimentos diários enfrentados pelas massas urbanas das sociedades capitalistas desenvolvidas.

A diversão, desse modo, poderia ser considerada, numa realidade social de consolidação da dominação burguesa pautada no próprio desenvolvimento de uma

racionalidade cujo objetivo era a submissão total do homem e da natureza aos interesses do capital, como sinônimo de ausência de pensamento crítico e também de completa passividade diante do poder estabelecido.

Compreendemos, assim, que a alegria e o riso mercadoria deveriam ser interpretados de um modo mais crítico, ou seja, seria necessário que os considerássemos como instrumentos, usados pela indústria cultural, para minimizar o sofrimento e a frustração, provocados pelo progresso econômico. Passamos a enfrentar, nesta perspectiva de manipulação e controle sistemático, tal situação como algo corriqueiro ou banal. A alegria e o riso mercadoria passaram a ser promovidos como elementos de uma lógica de dominação alicerçada, sobretudo, para garantir os interesses estabelecidos. Eles foram usados, em outras palavras, como simples instrumentos, racionalmente administrados, visando garantir e reforçar ainda mais a manipulação ideológica exercida por uma sociedade totalitária. A repressão transforma-se, adquirindo outras conotações e características peculiares ao novo contexto econômico.

Exclui-se, nesse sentido, todo o divertimento considerado popular, irrefletido, puro ou absurdamente feliz do cotidiano das massas. A indústria cultural procurou de modo obstinado introduzir, por outro lado, um significado coerente e racional, para que as suas diferentes produções, mesmo aquela singela e inocente mercadoria, tornassem-se absolutamente eficientes como meios de dominação ideológica das massas. Portanto, um dos significados mais importantes contidos nesse divertimento caracterizado pela coerência e pela racionalidade, feito sob medida para as grandes multidões, previa que todo o pensamento e todas as suas diferentes formas de expressão deveriam sempre estar de acordo com a opinião da maioria. O riso mercadoria precisaria, além disso, buscar o isolamento e o afastamento de todo o contato com a totalidade do processo social. Deveria, finalmente, renunciar a qualquer pretensão, não apenas de refletir sobre o todo, mas, principalmente, sobre qualquer possibilidade que fosse diferente do cenário existente.

A diversão, neste sentido, poderia ser considerada como uma espécie de fuga intencionalmente fomentada e absolutamente controlada pela lógica predominante estabelecida pelo próprio desenvolvimento do sistema capitalista. Precisamos, no entanto, ter muito cuidado com tal definição, pois, não deveríamos compreendê-la, diante do que foi afirmado anteriormente, como se ela fosse apenas um mero escape ansiosamente desejado por indivíduos que tentavam sublimar os dilemas de uma realidade, cada vez mais, desumana e repressiva, porém, como se a diversão representasse, na verdade, um completo abandono de qualquer tipo de resistência que tais indivíduos pudessem exercer tentando preservar alguns dos seus valores culturais pré-capitalistas.

Portanto, esse paraíso da liberdade irrestrita, cuidadosamente montado pela indústria cultural, aconteceria somente, justamente como notaram Adorno, Horkheimer e também Marcuse, com a negação do pensamento crítico, em outras palavras, qualquer atitude de contestação a tal esquema de dominação significaria a automática e imediata expulsão deste jardim de delícias artificialmente promovido ao posto de objetivo final da existência de toda a sociedade humana. A indústria cultural conseguiu, a partir do seu próprio desenvolvimento tecnológico, atingir as pessoas tratando-as, de um modo bastante dissimulado, como se elas fossem um ser aparentemente pensante, entretanto, o seu objetivo maior consistiria, como já havíamos destacado, em desabituar os indivíduos submetidos ao seu poder de todo o contanto com a subjetividade, o senso crítico e a reflexão, transformando-os, assim, em uma grande multidão que, passando por certo tipo de socialização, aceita o choque como algo normal e até mesmo apreciado. A constante sensação do choque transforma-se, como tentaremos abordar mais adiante, numa necessidade básica, carinhosamente acalentada pelas massas submetidas aos padrões criados pelo entretenimento desenvolvido a partir das novas tecnologias disponíveis.

Também iremos considerar, nos próximos tópicos, como a ideologia difundida pela indústria cultural teve por objetivo reforçar a imutabilidade das relações de dominação social existentes no capitalismo do século XX. Não devemos esquecer que a liberdade formal, por um lado, tornou-se, evidentemente após as revoluções burguesas, um direito garantido constitucionalmente em várias sociedades do ocidente, por outro lado, precisamos lembrar os aspectos ideológicos contidos nessa conquista. O indivíduo, afinal, começou a permanecer encerrado num sistema de instituições minuciosamente organizadas, tendo que suportar, desse modo, o exercício de um forte e restritivo controle de todos os seus comportamentos, das suas atitudes e das suas visões de mundo.

As massas desmoralizadas, que se mostraram civilizadas apenas através de comportamentos automáticos e forçados, deveriam ser disciplinadas inclusive pela constante ação dos grandiosos espetáculos divulgadores daquele riso mercadoria. O ideal proposto seria o de que todos seguissem o exemplo imposto pela indústria cultural, identificando-se, preferencialmente sem nenhuma resistência, com os poderes e, sobretudo, com os valores aos quais passaram, necessariamente, a estar submetidos.

Pretendemos, finalmente, ressaltar o fato, muito interessante e com sérias implicações para a nossa discussão acerca das relações entre o riso dadaísta e a ideologia da sociedade industrial, de que as diversas situações aflitivas enfrentadas pelo espectador no transcorrer da sua rotina diária, ou seja, os choques cotidianos da sua existência no capitalismo tornaram-se, ao serem reproduzidas pela indústria cultural enquanto formas de entretenimento, exemplos de incentivo e formas ameaçadoras de enfatizar a necessidade de continuar vivendo, apesar de todo o sofrimento enfrentado como uma doença crônica, “normalmente” e sem maiores questionamentos. Os indivíduos deveriam, portanto, aceitar, alegre e passivamente, a dominação e as implicações de uma existência muito confortável, mas, completamente vazia de significados ou experiências pessoais.

No documento Dada e o riso (páginas 119-123)