• Nenhum resultado encontrado

3 O TERCEIRO ESPÍRITO DO CAPITALISMO DA DUALIZAÇÃO DO

8.2 A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO SUBORDINADO ENQUANTO

Com a Revolução Industrial, operários passaram a se amontoar nas fábricas para realizar o que a doutrina denomina trabalho livre, mas que verdadeiramente é organizado militarmente, sob integral vigilância e controle totalmente hierarquizado146.

Segundo Michel Foucault (1987), esse modelo de sociedade substituiu as punições clássicas pela vigilância hierarquizada e sanção normalizadora, a fim de manter a disciplina. Torna-se passível de pena o campo indefinido do não-conforme. A vigilância centra-se nos indivíduos, e se institui a partir de uma rede de relações, formada de baixo para cima e lateralmente, que dá sustentação ao conjunto e o impregna de efeitos de poder (apoiados uns sobre os outros, como fiscais perpetuamente fiscalizados). Não há, pois, como se considerar livre um trabalho baseado na disciplina e penalidade.

Como então considerar livre um trabalho que, segundo Foucault, está centrado na disciplina e na penalidade, que se apresenta como um sistema duplo: gratificação-punição; castigo-recompensa? A doutrina

145

Seção baseada em: ANDRADE, 2014, p. 101-102. 146

Massas de operários, amontoados na fábrica, são organizados militarmente. Como soldados da indústria, estão sob a vigilância de uma hierarquia completa de oficiais e suboficiais. Não somente escravos da classe burguesa, do Estado burguês, mas também diariamente, a cada hora, escravos da máquina, do contramestre e, sobretudo, do dono da fábrica (Marx, 2014, p. 27).

trabalhista majoritária e voz corrente do Direito do trabalho não é capaz de responder (ANDRADE, 2014, p. 102).

Essa racionalidade, prossegue, baseia-se em técnicas que põem em funcionamento os novos mecanismos de sanção normalizadora. Essa engrenagem do poder disciplinar tornou-se ainda mais necessária e sofisticada, construindo uma vigilância distinta da forjada nas manufaturas – que se dava de fora para dentro, pelos inspetores, encarregados de fazer aplicar os regulamentos. Agora o controle é intenso e contínuo, abrangendo inteiramente o processo produtivo (natureza e quantidade) e a atividade dos homens (conhecimento técnico, maneira de fazê-lo, rapidez, zelo, comportamento). Assim, no sistema capitalista, a força de trabalho aparece como uma mercadoria, controlada e disciplinada de maneira militar.

A doutrina majoritária, ao não dialogar com os outros ramos do saber social, não soluciona a contradição consistente na desigualdade entre o empregador e empregado.Enquanto o primeiro “admite, assalaria, dirige e disciplina a prestação pessoal de serviços”, o segundo encontra-se “jurídica, econômica e psicologicamente subordinado ao empregador”. Em razão dessa desigualdade, surge uma “coação jurídica, econômica e psicológica, subjacente e que existe em potência”. Acatando essas constatações, não há como falar em trabalho livre e, ao mesmo tempo, subordinado (Idem, p. 21).

Pagès et al (PAGÈS, 1987)examinaram as estratégias pelas quais o capitalismo moderno conquista a alma de seus executivos, como as políticas e as práticas de recursos humanos consolidam os princípios e as crenças da ideologia empresarial. A coerência entre esta e os dispositivos operacionais utilizados é eficaz para fazer interiorizar, em cada funcionário, os valores, os princípios, as crenças da empresa.

Tal estudo demonstra que o poder da empresa capitalista se dá em quatro eixos distintos, porém conectados: ideológico, político, econômico e psicológico, sendo este último hegemônico no sistema existente no interior das modernas organizações, uma vez que seus objetivos primordiais são dessa ordem.

No eixo psicológico, as políticas de recursos humanos conduzem a investimentos dos sentimentos na organização, através do inconsciente e

assim possibilitam a dominação sobre o psíquico do trabalhador, que incorporam as crenças e acatam as regras por ela geradas.

A partir do toyotismo, a modificação do conteúdo do trabalho associa-se à das formas de autoridade adotadas, através de estratégias de dominação e exploração sutis. O poder não mais se concentra na chefia, como no taylorismo. Os novos tipos de controle são efetivados mediante deslocamento, para o exterior da empresa, da “fonte” de exigências e responsabilidades.

Como decorrência do método de produção just in time, ditado pela imprevisível demanda dos clientes externos que precisa ser atendida com rapidez e eficiência, contamina-se a vida cotidiana do trabalhador pelo sentimento de urgência, tornando-se fonte de ansiedade e sofrimento psíquico (SILVA, 2011, p. 173).

Essa dominação sutil foi incrementada a partir do final dos anos 1970, com a reestruturação produtiva desenvolvida sob a ameaça da globalização, a qual exigia a maximização da competitividade. A solução então seria unir aos paradigmas da acumulação flexível a excelência, cuja imposição menospreza os limites da condição humana e acarreta danos econômicos, ambientais,desgaste e sofrimento mental (Idem, p. 174).

Os modos de exploração, dominação, os dilaceramentos dos vínculoshumanos e das subjetividades no trabalho, por sua sofisticação e perversidade, se estenderam para a vida além dele. Essas transformações trazidas pela mundialização da economia, as desregulamentações, as formas de flexibilização, acarretaram desgastes na saúde (sofrimento social, físico e social) dos trabalhadores e dos que desejam encontrar trabalho147.

Na acumulação flexível ou toyotismo há novas formas de controle, geradoras de tensão, que são exercidas de modo menos explícito. Agora o mal-estar e as tensões já não decorrem do autoritarismo e da intimidação claramente expressos pelas chefias, mas dos aspectos organizacionais.

Através da revolução informacional o controle passou a ser feito através de métodos e técnicas que o intensificam e o disfarçam, aumentam a dominação e a superexploração, extensivas à subjetividade, maximizam a extração das energias, saberes e potenciais, físicos e mentais, e diminuem custos (Idem, p. 172).

147

O desemprego de longa duração, no qual os laços de sociabilidade passam por mudanças e rupturas contribui para a exclusão social (Idem, p. 414).

Embora a transformação do trabalho operário em trabalho de controle, de gestão da informação, de capacidades de decisão que pedem o investimento da subjetividade, toque os operários de maneira diferente, segundo suas funções na hierarquia da fábrica, ela apresenta-se atualmente como um processo irreversível (LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 25).

As pressões são exercidas sob múltiplas formas:

a) no setor de serviços, o aumento de produtividade decorre da intensificação do ritmo, imposta pela própria clientela, inclusive através das pesquisas de satisfação; b) nos setores em que a dominação é internalizada na esfera dos sentimentos, valores e desejos, os desígnios da empresa passam a confundir-se com os do próprio sujeito, que passa a exigir de si mesmo o máximo de produtividade num desejo de reconhecimento. Cumprir metas corresponde à autovalorização; prestígio; esperanças de ascensão na carreira; vitória na disputa interna por cargos, prêmio e outras “glórias”, pelas quais a organização estabelece e administra competições entre equipes e pessoas; c) as leis de mercado que atingem indiretamente os trabalhadores da empresa que precisa enfrentar competição de suas concorrentes. Se a empresa fechar, perde-se o emprego. Realiza-se uma ideologização pela qual há identificação do trabalhador com a própria empresa (vitória deum é a do outro); d) devido à sofisticação tecnológica, nas áreas de informática e teleatendimento148, usam-se modelos muito precisos de controle através de equipamentos que registram, de forma contínua, horários de diminuição ou aumento de ritmo, paradas para descanso. Associam-se o controle interno (pela empresa) e externo (pelo cliente). Com o passar do tempo, a vigilância externa é interiorizada e uma polícia interna passa a exercer autocontrole e bloquear a vida subjetiva, com graves riscos para a saúde mental; 5) nas sutilezas das formas mais “participativas” de organização, como círculos de controle de qualidade149, nos quais fiscalização recíproca e maior introjeção da dominação interferem na vida psíquica, pelo cansaço mental, tensão ou efeito alienante; 6) na institucionalização de setores de relações humanas, como instrumento de atenuação dos sintomas e conflitos laborais, que passam a ser psicologizados, reduzidos a aspectos psicológicos individuais, com o apagamento das suas causas sociolaborais (SILVA, 2011, p. 174).

Torna-se visível a contradição entre a dominação internalizada na própria subjetividade, cujo agente é o próprio empregado, e a retórica exaltadorada autonomia150 e da não submissão aos ritmos impostos pelas linhas de montagem. Estimula-se o narcisismo e a sedução como tática de

148

As práticas de telemarketing expõem os operadores a agressões verbais e humilhações cotidianas, exacerbando a fadiga e a tensão (SILVA, 2011, p. 174).

149

São técnicas gerenciais que incrementam o controle e intensificam o trabalho. As avaliações destinadas a indivíduos, equipes, setores ... promovem competição em todos os níveis, do individual ao coletivo, gerando tensões individuais e tensões interpessoais e conflitos (Idem, p. 177).

150

O trabalhador cada vez mais se considera empresário de si mesmo, e, no plano jurídico, o é realmente. No plano essencial, a autonomia desse empresário-trabalhador é uma ficção pura e simples, enquanto não é ele que decide os planos a longo prazo, as modalidades de desenvolvimento da atividade, e assim por diante (BERARDI, 2005, p. 51).

gestão, sutil ou explícita, com promessas de vantagens futuras a quem opte pela dedicação total.

De modo manipulativo desenvolve-se uma hiperfocalização na autoestima e no poder de competir para sobreviver no mercado, em detrimento de outras dimensões da subjetividade mais integrativas e agregadoras de valor para o desenvolvimento humano (SILVA, 2011, p. 175).

Estudos revelam diferenças entre a captura da subjetividade nos anos 1980 e 1990. Nestes, ao lado da dominação subjetiva há um apaziguamento das resistências sindicais à reestruturação produtiva, até pelo enfraquecimento dos sindicatos causado pela diminuição dos postos, alta rotatividade, medo do desemprego, que faz o indivíduo aceitar qualquer condição para manter-se empregado.

8.3. AS NOVAS FACES DO ADOECIMENTO E A MORTE LENTA NO