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3 O TERCEIRO ESPÍRITO DO CAPITALISMO DA DUALIZAÇÃO DO

8.3 AS NOVAS FACES DO ADOECIMENTO E A MORTE LENTA NO

8.3.4 A precarização, flexibilidade, capturação da subjetividade

A flexibilidade e a desregulamentação dos contratos são princípios centrais na dinâmica precarizadora, prevalente ao longo da reestruturação produtiva. Sob esses princípios se desenvolvem a intensificação e seu controle. O papel do Estado na precarização social foi liberar dos encargos sociais e dar suporte legal para subcontratações precarizantes – terceirização, quarteirização, trabalho domiciliar subcontratado, teletrabalho (Idem, p. 466- 467).

Flexibilidade ésinônimo de mudança permanente e continuada. O afrouxamento das regras por ela trazido permite a desregulamentação dos contratos (banco de horas, salários e jornadas variáveis, frequentes mudanças nos critérios admissionais, demissionais, de avaliação, de remuneração). Assume variadas formas:a) humana: responde ao anseio da organização enxuta e flexível; b) nas relações interpessoais: é observada no rompimento dos laços de confiança, motivado pelo individualismo, competição159 e medo de

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Estudos indicam a concomitância de Dort e quadros depressivos, devido às pressões psicológicas, à discriminação, às limitações e às múltiplas perdas – inclusive de autoestima e de perspectivas de desenvolvimento profissional vivenciadas pelos trabalhadores atingidos (Idem, p. 471).

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O que é que mudou nas empresas? A organização do trabalho. [...] o que mudou foram principalmente três coisas: a introdução de novos métodos de avaliação do trabalho, em particular a avaliação individual do desempenho; a introdução de técnicas ligadas à chamada “qualidade total”; e o outsourcing, que tornou o trabalho mais precário. A avaliação individual é uma técnica extremamente poderosa que modificou totalmente o mundo do trabalho, porque pôs em concorrência os serviços, as empresas, as sucursais – e também os indivíduos. E se estiver associada quer a prémios ou promoções, quer a ameaças em relação à manutenção do emprego, isso gera o medo. E como as pessoas estão agora a competir entre elas, o êxito dos colegas constitui uma ameaça, altera profundamente as relações no trabalho: “O que quero é que os outros não consigam fazer bem o seu trabalho.” Muito rapidamente, as pessoas aprendem a sonegar informação, a fazer circular boatos e, aos poucos, todos os elos que

perder o emprego; c) da produtividade: se operacionaliza pela imposição de rapidez no desempenho objetivando a maximização da produtividade, desconsiderando os tempos necessários ao trabalho físico e mental, à recuperação da fadiga.

A precarização da saúde (física e psíquica) do ser humano é consequência da desregulamentação, da flexibilização, do imperativo de tudo aceitar para não perder o posto.

O labor humano é, hoje, predominantemente intelectual, na indústria e na prestação de serviços. Porém o cansaço mental decorrente dasua intensificação e a exaustão emocional são ignorados pelas novas formas de gestão. A polivalência derrubou o orgulho profissional dos operários especializados, que detinham experiência em atividades específicas, abalou o reconhecimento como pessoa160 e o do serviço por ele realizado.

O temor do desempregopossibilita a superexploração e causa desconfiança, tensão, ansiedade, insônia, irritabilidade, enfim, adoecimento. Acarreta o rompimento dos laços de companheirismo e confiança, acentua a competição. As técnicas de gestão atuais, através do estímulo organizacional à competição, reforçam o individualismo, o isolamento, o cansaço, a busca por reconhecimento, a insegurança, o medo do futuro. O discurso da excelência e da promessa de liberdade contrasta com as políticas de pessoal extremamente opressivas, mascaradoras da tal superexploração.

A fim de superar a aparente incompatibilidade entre flexibilidade (instabilidade no emprego) e comprometimento (engajamento, envolvimento) com os objetivos da empresa, a solução encontrada é capturar a subjetividade (a alma, o desejo e a entrega à empresa) do sujeito. Para tanto, são usados métodos e técnicas de envolvimento impregnados de novas ideologias, como a

existiam até aí – a atenção aos outros, a consideração, a ajuda mútua – acabam por ser destruídos. As pessoas já não se falam, já não olham umas para as outras. E quando uma delas é vítima de uma injustiça, quando é escolhida como alvo de um assédio, ninguém se mexe […](DEJOURS, Christophe de. http://www.publico.pt/sociedade/noticia/um-suicidio-no- trabalho-e-uma-mensagembrutal-1420732.Acesso em 02/10/2015).

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Os trabalhadores, em algumas ocupações – como a de gari -, passam a ser invisíveis para os olhos de muitos. Invisibilização de seres humanos que realizam trabalhos desqualificados (SILVA, 2011, p. 473).

da excelência161, cujo objetivo é obter o empenho total. A ressonância real desses esforços empresarias são assim resumidos:

Expropriação da subjetividade, despossessão de si mesmo, captura da subjetividade. Sob a simultaneidade da sedução e da coação, a adesão a uma servidão voluntária, na qual a subjetividade está profundamente envolvida, é apontada como consequência final. Essa servidão expressaria renúncia aos próprios valores e desejos e aceitação passiva da submissão servil como única alternativa de sobreviver no contexto fixado pela dominação neoliberal (Idem, p. 475).

Desde o treinamento, a imposição da ideologia da excelência busca envolvero“colaborador” 162 – expressão usada para ocultar a relação de subordinação, enfraquecer a identificação com as aspirações da categoria de empregados, esfacelar os movimentos sindicais.

Aos poucos, o negócio e as metas começam a ocupar o lugar dos próprios desejos e se apossam da vida mental. A adoção de uma nova “categoria”, a do “colaborador”, o sequestra da vida familiar, dos amigos, das práticas de lazer e das outras formas de participação social:sacrifica-se o horário do repouso e sono; teme-se não conseguir manter a própria excelência;sente-se horror pela possibilidade de perder a competição interna com o colega, ser demitido, tornar-se vítima de ironias e pressões, passíveis de transformar-se em violência psicológica mais explícita (zombaria, humilhação, ameaça de rebaixamento funcional ou demissão);surgem depressões, esgotamento profissional (burnout) e outros agravos psíquicos e psicossomáticos (Idem, p. 495).

Diante dessa incerteza e impossibilidade de controlar a instabilidade externa, o indivíduo pode-se tornar onipotente. O mesmo ocorre na cultura organizacional, que cria o individualismo, reforça o narcisismo, gera a indiferença e menosprezo pelo outro. Ele passa a crer em sua superioridade, percebe os subordinados como instrumentos, os colegas como concorrentes, de modo a se tornar insensível ao sofrimento alheio. O narcisismo gera a

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A ideologia da excelência veicula uma absolutização na qual o significado da palavra excelência foi impregnado pela ideia de perfeição e de superioridade. Excelência entendida como perfeição passou a ser referência para tudo – materiais, processos, métodos e pessoas. Emergiu uma espécie de coerção à perfeição humana, algo que se transformou em invectiva onipotente e onipresente nas empresas. Esta invectiva é profundamente perversa, na medida em que ignora os limites e a variabilidade dos processos fisiológicos e mentais dos seres humanos (Idem, p. 494).

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http://www.ligiadeslandes.com.br/16/07/2016/voce-nao-e-colaborador-voce-e-trabalhador- se-ligue/. Acesso em: 22/07/2016.

cegueira para os limites do eu e para todos os riscos do próprio desgaste (SENNET, R. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006) (Idem, p. 496).

Nessa situação de submissão e dependência, a necessidade de reconhecimento se aguça. Perder o apreço ameaça o pertencimento à empresa e significa o dilaceramento de si mesmo, já que o eu se confunde com ela, que é seu mundo. Com a sobrecarga de atividades cresce o temor de não dar conta ou de errar, a fadiga se acumula e o desempenho diminui. Recorre-se ao uso de tranquilizantes, estimulantes, energéticos. Os indivíduos tornam-se sensíveis a qualquer indício de rejeição, e falta de reconhecimento. A perspectiva desse abandono pode levar ao desespero, à vivência de perda irremediável de si e do próprio destino, à morte por exaustão163 e mesmo ao suicídio.

O facto de as pessoas irem suicidar-se no local de trabalho tem obviamente um significado. É uma mensagem extremamente brutal, a pior do que se possa imaginar – mas não é uma chantagem, porque essas pessoas não ganham nada com o seu suicídio. É dirigida à comunidade de trabalho, aos colegas, ao chefe, aos subalternos, à empresa. Toda a questão reside em descodificar essa mensagem164.

O avanço da precarização, a alta rotatividade e as mudanças continuadas nas estruturas e equipes enfraqueceram as defesas coletivas. Portanto, o comum é contar apenas com seus próprios mecanismos psicológicos de defesa, numa resistência individual contra constrangimentos e sobrecarga.

Esse cenário de instabilidade, fragilidade, insegurança, incerteza, precarização social165 atingiu o mundo do trabalhoe os relacionamentos humanos nos mais diversos âmbitos, inclusive a família. Atualmente, é

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http://www.horadopovo.com.br/2006/marco/29-03-06/pag4a.htm. Morte por exaustão no corte de cana em SP. Acesso em 02/10/2015; http://www.vermelho.org.br/sp/noticia/23347-39. SP registra quinta morte de trabalhador rural por exaustão. Acesso em 02/10/2015; http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2013/08/1329403-estagiario-de-banco-morre-apos-

trabalhartres-dias-seguidos.shtml. Acesso em 26/09/2015;

http://ufrrj.br/institutos/it/de/acidentes/ergo7.htm. KAROSHI limites humanos. Acesso em 02/10/2015.

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DEJOURS, Christophe de. http://www.publico.pt/sociedade/noticia/um-suicidio-no-trabalho- e-umamensagem-brutal-1420732. Acesso em 02/10/2015.

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Precário, do latim precarius, significa instável, frágil, insuficiente. Portanto, a precarização social é a fragilização do tecido social – das estruturas (instituições) que regem a coesão e a proteção coletiva e dos laços que vinculam entre si os seres humanos, no mundo contemporâneo e, de modo muito marcante, nas situações de trabalho (SILVA, 2011, p. 460).

possível desvelar o avanço assustador de outra precarização: aquela que invade a identidade e a própria subjetividade.

Ao lado disso ocorreu também a precarização dos vínculos interpessoais e da comunicação, o que alcança a vida familiar, o lazer, as modalidades de participação social, pela compressão dos tempos de conviver, causados pela fadiga e inúmeros mecanismos que transformam sentimentos e modos de compartilhar. A precarização, ao atingir todos os aspectos da sociabilidade, isola os indivíduos e repercute na vida afetiva e na subjetividade de cada um.

A autorrepressão dos sentimentos e emoções, que derivam da impotência vivenciada no trabalho precarizado e dominado, suscita repercussões psicossomáticas, com o passar do tempo fracassam e se projetam externamente. A autorrepressão constante origina irritabilidade intensa que, por sua vez, exige novo aumento do esforço de autocontrole.

A instabilidade, as vivências de insegurança, medo e incerteza diante do futuro, incrementadas na esfera laboral, repercutem de modo importante na vida afetiva e alcançam todos os âmbitos da sociabilidade, tensionando os relacionamentos e empobrecendo a participação na vida familiar, social e política. A partir do isolamento social, novas vivências de mal-estar e sofrimento psíquico poderão dar lugar a desdobramentos patológicos (SILVA, 2011, p. 473).

Existe ainda a precariedade total expressa na permanência das formas antigas de dominação explicitamente autoritárias, como o trabalho forçado ou escravo, no âmbito urbano ou rural, que afeta os menos qualificados e os imigrantes, preferencialmente166.