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A ortodoxia segundo si mesma e o Grande Cisma

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO SÃO PAULO (páginas 105-109)

INTRODUÇÃO O PROBLEMA DA NATUREZA HUMANA.

2. HISTÓRIA

2.9. A ortodoxia segundo si mesma e o Grande Cisma

A Igreja se apresenta a si mesma como uma união e uma colaboração divino-humana: a Nova Aliança no espírito e no corpo. Ela se vê, enquanto extensão mundial do corpo e do Espírito do Homem-Deus, como a realização das promessas da Antiga Aliança. “Eu vos retirarei do meio das nações, eu vos reunirei de todos os

lugares, e vos conduzirei ao vosso solo. Derramarei sobre vós águas puras, que vos purificarão de todas as imundícies e de todas as vossas abominações. Dar-vos-ei um coração novo e em vós porei um espírito novo; tirar-vos-ei do peito o coração de pedra e dar-vos-ei um coração de carne. Dentro de vós infundirei o meu Espírito, fazendo com que obedeçais às minhas leis e sigais e observais os meus preceitos... sereis meu povo, e serei vosso Deus” (Ez XXXVI, 24-28).

A vida da Igreja, corpo social divino-humano, se compõe, segundo sua doutrina, essencialmente de dois elementos: uma verdade divina que lhe é dada – a

graça –, e uma realidade humana que se transforma segundo essa verdade; que é não

negada, mas aperfeiçoada por ela – a natureza. Aquilo que é dado em Cristo deve ser realizado pela Igreja: a verdade revelada deve se tornar uma verdade compreendida; a vida do corpo incorruptível transmitida nos sacramentos deve se tornar vida pessoal e social. O ideal da Igreja não é uma fusão entre a força divina e a humana, mas um

acordo, uma aliança, a Nova Aliança. Este acordo é realizado perfeitamente em

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Cristo, em corpo e espírito, ao passo que a humanidade erra e oscila em desacordo rumo à realização do Reino de Deus. Com tal concepção, segundo Soloviev, a Igreja se apresentava como uma reconciliação entre o princípio oriental de submissão passiva à divindade e o ocidental da afirmação da atividade própria ao homem. E o fracasso nesta reconciliação seria determinante para os rumos do cristianismo histórico, que, segundo o filósofo, oscila penosamente entre a passividade oriental e a vaidade ocidental.

Para Soloviev, a ideia de um elemento divino e um humano como substanciais à Igreja, implica necessariamente um equilíbrio entre um princípio estático e um dinâmico. O que é divino, imutável na Igreja, é a sucessão de seu

sacerdócio, os sacramentos e a verdade revelada consolidada nos dogmas. O que está

em movimento, o que varia gradualmente e historicamente, relaciona-se diretamente ao homem, e exige sua resposta e atividade pessoal. O princípio divino deve não somente estar no mundo e ser conservado, mas expandir-se, governar, transformar o mundo, e isso ocorre – só pode ocorrer – através da colaboração humana: a Igreja deve ser por sua própria natureza, pela missão conferida a ela por Cristo, uma força social ativa. O elemento sacro, divino, da Igreja – o sacerdócio, os dogmas e os sacramentos – são os meios que Cristo, o Deus-Homem, deu aos homens para a realização da obra divina, o seu fim, a vida livre divino-humana, o Reino de Deus, ou seja: Deus tudo em todos. Pois bem, enquanto este fim não for atingido, os meios serão necessários. Assim, em relação àquilo que a Igreja considera como dom divino em si, a saber, a santidade ou a graça conservada pela tradição, ela tem um caráter

absoluto e estático. Em relação aquilo que tem de humano em si, a Igreja tem um

caráter móvel, variável, evolutivo, dinâmico, prático. E este movimento se dá entre dois polos ou tendências: o poder e a liberdade. De um lado o poder espiritual deve estar investido da autoridade necessária para conservar aquilo que lhe é dado conservar; o depósito da fé. De outro, as forças humanas devem ter liberdade para desenvolver a sua atividade própria: a transformação do universo social e material no Reino de Deus. Para Soloviev, “este equilíbrio da divino-humanidade, realizado no princípio mesmo da Igreja, em sua origem, foi violado pela humanidade no desenvolvimento de sua história, e isso em duas direções: pelo Oriente, no sentido de um fundamento imóvel e divino da Igreja; pelo Ocidente, no sentido de seu elemento humano, considerado segundo seus dois polos: antes de mais nada em nome do poder

(o papismo), mais tarde, em nome da liberdade (protestantismo)”92. São os dois grandes escândalos da Igreja histórica: o Grande Cisma entre a Igreja do Oriente e do Ocidente, e a ruptura da Igreja ocidental entre católicos e protestantes.

Enquanto durou a luta contra as heresias, os dois grandes centros de poder cristãos, Roma e Bizâncio, ainda que hostis um ao outro, concentravam o melhor de suas forças na elaboração e na defesa do dogma e da ortodoxia. Por um tempo os teólogos e monges do Oriente colaboraram com os papas do Ocidente num equilíbrio mútuo: de um lado os contemplativos orientais precisavam do poder firme e enérgico do papa contra os imperadores de Bizâncio, que mantinham o clero oriental sob seu poder; de outro, o papa romano, envolto na barbárie, na anarquia e a na ignorância das populações germânicas, precisava da luz intelectual e mística do Oriente.

Quando, no século IX, após sete concílios universais a ortodoxia finalmente triunfa pela ação conjunta da autoridade eclesiástica e do pensamento teológico, quando o dogma e a tradição são consolidados pela energia prática do papado aliada às luzes intelectuais e místicas dos teólogos orientais, neste exato momento se rompem os laços que uniam as Igrejas do Oriente e Ocidente contra um inimigo exterior comum, revelando-se a sua falta de união interior.

Uma vez garantida a ortodoxia – o mais importante para os cristãos do Oriente – a Igreja oriental não precisava mais da autoridade de Roma. De outro lado, no momento em que os bárbaros germânicos foram completamente convertidos ao catolicismo e que seu chefe supremo, Carlos Magno, recebeu a coroa imperial das mãos do papa, um fundamento novo se estabeleceu para uma nova civilização ocidental, que passava a rivalizar politicamente com a do Oriente. O cristianismo oriental quis se prender ao fundamento da vida cristã, conservar o sagrado: a santidade dos Padres da Igreja, o dogma, a tradição. Mas nisso, estima Soloviev, renunciaram ao fim, isto é, a transformação e a regeneração das forças sociais, de modo a transformar o mundo no Reino de Deus. O cristianismo ocidental, por sua vez, dado o seu caráter prático, entregou-se aos meios de transformar o mundo, realizando uma monumental obra de unificação do poder espiritual na corte papal, sob a forma propriamente latina, romana, da lei e da codificação jurídica. Como a Roma imperial pagã a Roma medieval cristã buscava afirmar uma autoridade e um poder

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mundiais, uma teocracia universal, manifestando por toda parte a autoridade dominadora de sua decisão.

Mas se Soloviev acusa a Igreja contemplativa do Oriente de ter esquecido o fim em razão do fundamento, denuncia igualmente a Igreja pragmática do Ocidente por ter esquecido do fim em função do meio, isto é, o poder; esqueceu-se de que o poder não passa de um meio para preparar a humanidade e conduzi-la à realização do Reino de Deus, onde já não haverá poder nem dominação em nenhum grau, mas só a liberdade. “A miséria”, lamenta Soloviev, “não foi que o Oriente cristão tenha sido demasiado contemplativo, nem que o Ocidente tenha sido demasiado prático, mas que um como o outro não tenham tido suficiente amor cristão”. E acrescenta: “O Oriente ortodoxo tem razão de orgulhar-se de sua firmeza na fé; mas segundo as palavras do maior dos mestres da fé, ‘se eu possuir toda a ciência e toda a fé, podendo mesmo transportar montanhas, mas não tiver a caridade, eu nada sou’ (ICor XIII, 2). A Igreja do Ocidente é conhecida e gloriosa no mundo inteiro por suas obras numerosas e seus trabalhos plenos de renúncia; mas, o mesmo apóstolo, ‘que trabalhou por todos’, testemunha como se segue: ‘ainda que distribuísse todo o meu bem em esmolas, quando entregasse meu corpo para ser queimado, se eu não tiver a caridade, tudo isso não me serve para nada”93. Enfim, a caridade, que é “paciente e misericordiosa” e que “não é invejosa nem orgulhosa”, a caridade “não se prende àquilo que é seu”. Se as Igrejas não tivessem se prendido ao que é seu, o Grande Cisma da Cristandade não teria ocorrido. Mas havia uma hostilidade íntima e profunda de parte a parte, um desejo, uma vontade de cisão, e a cisão se deu.

Enquanto a Igreja do Oriente se retirava para a apatia e a solidão, satisfeita de sua própria piedade e dividindo a vida espiritual entre e a contemplação mística dos heremitérios e monastérios e as discussões dialéticas (“bizantinas”) das escolas teológicas, a Igreja do Ocidente se entregava a uma atividade movimentada e intensa, à organização da sociedade e ao desenvolvimento do princípio humano.

Seria interessante seguir os passos de Soloviev à medida que investiga o destino da Igreja ortodoxa oriental. O que condenará nela acima de tudo será a sua visão anti-histórica, a negação da tarefa do cristianismo, a renuncia à sua missão social e política. Para um bizantino tradicionalista, o cristianismo é coisa feita, acabada, terminada. Em Bizâncio quis-se preservar a verdade, mas não realizá-la de                                                                                                                

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fato. A hierarquia eclesiástica renuncia gradativamente a governar a sociedade cristã. Na prática, a administração da Igreja fica sob o poder do Imperador. Quando o poder secular passa das mãos dos imperadores aos sultões, esta hierarquia não perde nada de substancial, só se isola mais ainda do compromisso de organização social, restringindo-se à administração dos cultos e sacramentos. Assim, toda autoridade espiritual e vigor se transferem gradativamente do clero para uma laicidade isolada, seja para os monges, peregrinos e starets, seja para a massa sinceramente piedosa e inculta.

Mas aqui devemos nos concentrar sobre o nosso objeto de estudo, as relações entre o cristianismo e a modernidade. Estamos, de fato, a ponto de entrar na raiz do problema moderno, naquilo mesmo contra o qual a modernidade protestou, naquilo que quis reformar e, finalmente, revolucionar, a saber: o absolutismo religioso da civilização medieval.

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO SÃO PAULO (páginas 105-109)