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O papado e o papismo

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO SÃO PAULO (páginas 109-124)

INTRODUÇÃO O PROBLEMA DA NATUREZA HUMANA.

2. HISTÓRIA

2.10. O papado e o papismo

O princípio da autoridade eclesiástica ou do poder espiritual, que segundo Soloviev é representado eminentemente pela Igreja católica, se manifesta de três maneiras e provoca uma tríplice questão. Em primeiro lugar, no interior da hierarquia eclesiástica mesma, a relação entre o poder eclesiástico central e seus representantes nas Igrejas nacionais (bispos, arcebispos, metropolitas). Em segundo lugar, a relação da Igreja enquanto poder espiritual e o Estado enquanto poder secular. E em terceiro lugar, a relação da Igreja com a liberdade pessoal de cada indivíduo. A este triplo problema, o catolicismo romano medieval responderá, em primeiro lugar, que a unidade absoluta do poder espiritual e da autoridade eclesiástica sobre todo o clero pertencem à cátedra de Pedro, apóstolo supremo, segundo a doutrina da “pedra da Igreja” instituída por Cristo e das “chaves do Reino dos Céus” entregues ao príncipe dos apóstolos. Em segundo lugar, afirmará a supremacia absoluta da Igreja sobre o Estado, segundo a doutrina das “duas espadas”. Em terceiro lugar, afirmará o caráter obrigatório e absoluto da autoridade eclesiástica sobre a consciência individual, o qual deve ser aceito nolen volens, segundo a doutrina do compelle intrare. Em outras palavras: subordinação dos bispos ao papa; e subordinação do Estado, dos poderes

civis e dos indivíduos ao clero. Uma subordinação tripla: eclesiástica, política e

pessoal.

Contra o absolutismo eclesiástico, a centralização do poder em Roma, Bizâncio e todo Oriente ortodoxo se opuseram e se opõem ainda hoje. Contra o

absolutismo político, se opuseram o Estado, os soberanos, os poderes civis e os povos,

a ponto de se chegar em nossos dias à completa secularização da comunidade política. Enfim, contra o absolutismo moral, que exigia da consciência e da razão individual uma submissão absoluta, se opuseram o protestantismo e sua consequência, o racionalismo moderno. “Roma tendia a unir os elementos heterogêneos da humanidade, mas ela não conseguiu senão uni-los em uma hostilidade comum contra ela e contra suas pretensões. Quantas forças diversas, quantos personagens diferentes foram reunidos pela história sob a bandeira comum de uma oposição ativa, de uma reação contra a autoridade papal! Fócio e Lutero, o imperador Frederico II e Marco de Éfeso, Melanchton e Henrique VIII!”94.

Pois bem, para se entender o catolicismo romano medieval é preciso entender pelo que ele lutou e de qual modo. “É incontestável que todo erro envolve uma verdade certa e não é senão a alteração mais ou menos profunda desta verdade”.95 Em outros termos, é preciso buscar aquilo que há de ortodoxo na pretensão romana, pois a sua queda se dá pela própria deformação desta ortodoxia. Do ponto de vista eclesiástico, Roma representou uma unidade visível, um poder centralizado e uma autoridade suprema. Isso, segundo Soloviev, provoca três questões: (1) a Igreja precisa de um poder central? (2) Com que direito este poder é atribuído a Roma? (3) Como a sede de Roma usou desse poder historicamente?

Em primeiro lugar, a missão da Igreja é não só de culto ou testemunho, mas de transformação do mundo: a Igreja deve ser militante. Em toda atividade prática um poder organizado é necessário. Isso parece se opor a mensagem do puro amor do Cristo. Mas a Igreja institucional é uma organização humana, imperfeita, em vias de perfeição, e que existe em meio a forças hostis. Neste sentido, é necessária uma disciplina, uma autoridade e uma ordem. Nos dois primeiros séculos, a Igreja podia viver de seu entusiasmo. Dez ou quinze séculos depois, isso já não era possível.

Mas, admitida a necessidade de uma hierarquia unificada, se coloca a questão: por que Roma? O centro administrativo da Igreja não deriva de sua essência                                                                                                                

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eterna (a Igreja invisível ou corpo místico de Cristo), mas da Igreja terrestre, militante, em vias de transformação num mundo em transformação. Assim, que tipo de autoridade pode ter o pontífice romano? Em primeiro lugar, explica Soloviev, o papa não tem prerrogativa sobre os bispos em relação à sucessão apostólica e à consagração dos sacerdotes. Neste sentido, é somente um primum inter pares. Mesmo em relação aos sacerdotes, no que diz respeito ao ministério dos sacramentos, o papa não tem mais autoridade do que o mais humilde pároco. Enfim, no que concerne a verdade cristã revelada a todos, o papa não tem mais privilégios do que um simples leigo; o sumo pontífice não tem autoridade para proclamar verdades novas que não estejam contidas na revelação divina dada à Igreja. “O papa não pode ser nem fonte nem causa ativa de uma verdade dogmática, não menos do que pode ser causa ativa do sacerdócio e dos sacramentos. Do ponto de vista da posse da verdade do Cristo, o papa não é senão um cristão entre outros cristãos”96. Enfim, a autoridade do papa não vem dos fundamentos eternos da Igreja, mas da necessidade contingente de governar as ações terrestres da instituição eclesiástica, de dirigir as forças sociais da Igreja como um pastor. Assim, a autoridade central do papado não pode ter senão uma significação relativa, oficial e funcional; é um meio para realizar a obra divina sobre a terra e para conduzir a humanidade ao seu fim último, quando este meio se tornará completamente obsoleto.

Mas, admitindo-se que a Igreja realmente precise de um poder central, por que ela deveria estar sediada em Roma? Os próprios canonistas romanos se entregaram laboriosamente a todo tipo de tese a esse respeito, mas nesse ponto Soloviev é lacônico: “se esta autoridade repousa sobre um fundamento místico [a decisão de Cristo], ela não tem necessidade de ser consolidada a partir de fora, de ter como apoio sustentáculos exteriores e documentos jurídicos formais. Saída da fé, ela deve clamar à confiança. [...] Algumas palavras enigmáticas do Evangelho, mais uma tumba em Roma – eis o fundamento de todos os direitos e prerrogativas dos papas”97.

Por último, como a sede de Roma se valeu deste poder historicamente? É neste momento que Soloviev apela à distinção entre o papado, que, segundo a sua interpretação da tradição ortodoxa é perfeitamente legítimo e necessário, e o papismo, tendência impura que leva à deformação mesma desta instituição e à sua humilhação histórica. “Surgiu junto aos representantes da autoridade papal uma atitude de inveja e                                                                                                                

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vaidade em relação à sua autoridade, uma tendência a colocar esta autoridade sobre o terreno do direito exterior e formal, a lhe dar uma base jurídica, a afirmá-la por habilidade política, a defendê-la pela força das armas. A Igreja militante viria a se tornar Igreja militar. Em lugar de uma força calma e confiante em si mesma, surgiu um esforço intensivo; em lugar da fervor em relação à Fé e à Igreja, surgiu um zelo em relação à sua própria dominação na Igreja; a elevação espiritual tornou-se um orgulho altivo e carnal; em uma palavra, todos os traços característicos de um serviço espiritual de ordem superior foram substituídos por uma dominação material”98.

No domínio propriamente eclesiástico, o papismo se manifesta na centralização absoluta, na tentativa de supressão da autonomia das Igrejas locais (nacionais) e das instâncias intermediárias (metropolitas, arcebispos) por uma submissão imediata ao papa. Esta centralização pode mesmo se justificar em determinadas circunstâncias, como foi de fato o caso quando a metade ocidental da humanidade estava no estado semisselvagem de populações que ainda não haviam formado seu caráter nacional. Mas, tomada como uma regra constante, ela arruína a vitalidade das Igrejas nacionais e tende a dar a Igreja um caráter a-nacional, ao passo que ela deveria ser supranacional.

Em seguida, no equilíbrio de poder entre Igreja e Estado, a falsa teocracia, o papismo, peca precisamente por afirmar o seu poder segundo os meios próprios do Estado, como a força militar e jurídica, e não pelo meio espiritual da fé. Tal problema não poderia efetivamente existir para as comunidades primitivas. “Meu Reino não é desse mundo”, diz o Cristo; e precisamente porque não é deste mundo, mas superior ao mundo, o mundo deveria se submeter a ele como o inferior ao superior. Mas quando esta submissão se dá na forma histórica da conversão do César romano à Igreja de Cristo, a questão se torna imensamente mais complexa. Qual deveria então ser a relação entre Igreja e Estado? “Se fizéssemos esta pergunta aos chefes supremos da Igreja universal do IVo ao IXo século, todos nos dariam a mesma resposta, bastante clara. Todos, ocidentais e orientais, consideram igualmente todo o império que aceita o cristianismo como um corpo que reconhece o poder legítimo do espírito sobre si mesmo. Um César pagão que perseguia a Igreja, realizava em sua pessoa esta lei da carne, que segundo a palavra do Apóstolo se opõe à lei do espírito em luta contra ela; um César cristão realiza em sua pessoa a carne que se submeteu ao                                                                                                                

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princípio espiritual superior. São João Crisóstomo dizia que assim como o espírito é superior à carne, assim a autoridade pontifical é superior a autoridade régia”99. Do mesmo modo como ao espírito compete estabelecer os fins últimos da vida humana para o qual o corpo mortal é só um meio, assim à autoridade eclesiástica compete estabelecer os fins últimos de todas as forças sociais, enquanto ao Estado cabe estabelecer os meios e instrumentos temporais. Como na vida individual, na vida social os interesses exteriores e temporais devem ser orientados pelos interesses interiores e eternos.

Na prática, contudo, o papismo tentou governar a sociedade exclusivamente pelos meios deste mundo, os meios políticos: a espada, o dinheiro, as honrarias. Toda uma escola de canonistas e teólogos latinos elaboraria uma doutrina segundo a qual o papa é não somente o sumo pontífice, mas também rei: o poder leigo do Estado é só um ramo, um desdobramento do poder papal, e seus agentes, vassalos do suserano pontífice. A Igreja passa a considerar a sua missão não do ponto de vista das obrigações que esta lhe impõe, mas dos direitos que ela toma para si: ocupa-se em preservar seus privilégios antes que prestar seus serviços.

Assim, Soloviev distingue três momentos essenciais na história do papismo: (1) a confusão do serviço espiritual com a dominação deste mundo; (2) a tentativa de chegar a esta dominação pela intriga política e a força das armas; e (3) a degradação do papado e sua submissão final ao poder secular. Vejamos.

Do momento em que o papado buscou apoiar sua autoridade não mais sobre sua obrigação espiritual de orientar os poderes laicos, obrigação que era reconhecida por todos eles, mas sobre seus direitos fictícios de dominar estes mesmos poderes, se formará contra a escola de legistas papais, uma escola mais hábil e potente, a escola de legistas dos reis, que refutava de maneira convincente os direitos seculares do papado. Tendo se separado do terreno firme da autoridade moral, tendo sido confrontado legitimamente no terreno jurídico, restava ao papado afirmar sua autoridade pela força da espada, e com o apoio dos reis de França conquista uma vitória definitiva sobre a casa imperial dos Hohenstauffen, selando de uma vez por todas o destino do Sacro Império Romano Germânico.

Mas, evidentemente, a cooperação com a monarquia francesa só durou enquanto havia um inimigo comum, e o momento de maior triunfo do papado será                                                                                                                

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também o começo de sua queda. “O mesmo papa [Bonifácio VIII], que, pleno de entusiasmo proclamou-se em possessão não somente do gládio espiritual, mas também do gládio temporal, foi também vencido e feito prisioneiro pelas tropas do rei de França, seu antigo aliado, e recebeu o célebre tapa que foi como um presságio ‘da prisão de Avignon’. Aqueles que se diziam ‘soberanos dos soberanos’ tornaram-se instrumentos passivos entre as mãos de seus vassalos ilusórios”.100 Os papas quiseram fundar seu poder sobre a derrota do Estado; ei-los prisioneiros do Estado. Quiseram fundar sua autoridade sobre a legitimidade jurídica; ei-los numa situação na qual todos os direitos são inúteis. “Na verdade”, conclui Soloviev, “a política secular deve ser subordinada à Igreja, mas de modo algum por uma assimilação da Igreja ao Estado, todo o contrário, por uma assimilação gradual do Estado à Igreja. A realidade deste mundo deve ser restaurada à imagem e semelhança da Igreja, e não a imagem dela ser engolida ao nível desta realidade. [...] A Igreja deve atrair a ela todas as forças deste mundo, e não se deixar atrair e implicar ela mesma numa luta cega e imoral. Tomando a aparência de um Estado, a Igreja ocidental retirou ao Estado real seu apoio espiritual, retirando da política secular seu fim supremo e seu sentido interno”101.

Mas além da derrota contra o Estado, o papismo medieval colapsaria definitivamente por suas faltas contra as liberdades individuais do povo cristão.

A verdade que a Igreja recebeu e que é detalhada gradualmente ao longo de seu desenvolvimento histórico, é moralmente obrigatória para todo cristão, na medida mesma em que ele se confessa como tal. “Os adeptos de Pôncio Pilatos podiam repetir sua questão irônica ‘que é a Verdade?’ tratando todas as crenças e opiniões como tendo o mesmo valor e considerando-as com uma igual indiferença. Os adeptos de Jesus Cristo são obrigados a saber o que é a verdade, e o que é o erro; eles não podem, por conseguinte, tê-los por ideias de mesmo valor e tratá-los indiferentemente. A Igreja, possuindo a verdade do Cristo, é obrigada a por seus filhos em guarda contra as tentações do erro”102. Para tanto possui três meios: (1) a

censura; (2) a condenação; e (3) a excomunhão. Ante a opinião errada de um membro

de sua comunidade, o poder espiritual não pode ir além do anátema, uma mera declaração pela qual exclui a pessoa de sua jurisdição e a entrega ao poder secular do                                                                                                                 100 SOLOVIEV, V., 1953: 155. 101 SOLOVIEV, V., 1953: 156-57. 102 SOLOVIEV, V., 1953: 157.

Estado, que deve decidir sua sorte. Mas, ao contrário, a Igreja fez da heresia e da apostasia um crime que deveria ser punido pelo seu suposto braço secular: o Estado.

Se no Oriente a Igreja preocupava-se exclusivamente com seus ritos e

dogmas, com o triunfo da doutrina, no Ocidente a Igreja ocupava-se afanosamente

com o seu direito canônico e suas políticas, com o triunfo da autoridade eclesiástica. Assim, o unilateralismo da piedade oriental, de um lado, e o pragmatismo ocidental, por outro, minaram o desenvolvimento da compaixão e da clemência, o triunfo dos costumes cristãos. Por isso, “o período medieval – período mais religioso da história, naquilo que concerne a piedade e a submissão à autoridade eclesiástica – foi o menos cristão naquilo que concerne a moralidade social”103. Os resultados são bem conhecidos e denunciados: genocídios de inteiras populações heréticas, como por exemplo o massacre dos cátaros, a inquisição, as perseguições contra os infiéis e todo tipo de violação da liberdade de consciência sobre as quais não é preciso insistir.

Ao usar a força física para submeter a consciência moral a Igreja medieval perdeu seu último lastro de autoridade e provocou uma justa revolta. A partir daí, os direitos soberanos da Igreja já não serão recusados só no plano nacional e político, mas também no plano moral. Já não são mais os reis que se revoltam contra o clero em nome de sua autoridade política e de sua autonomia de governo, mas os indivíduos, em nome da autoridade moral e da liberdade de consciência: eis a razão de ser do Protestantismo.

Em seu significado histórico a Reforma é um evento complexo, que reúne em si todas as reações precedentes à autoridade central: o antagonismo das igrejas locais contra a igreja romana e também do Estado contra a Igreja. É o caso, por exemplo, da reforma da Igreja Anglicana. Mas o caráter próprio do protestantismo não é um protesto nacional ou político, e sim moral; é efetivamente o protesto de uma

pessoa em nome da liberdade de consciência e dos direitos do espírito individual de

todas as pessoas. Não por acaso o protestantismo despertou e se enraizou sobretudo nas raças germânicas, que, desde a sua origem, se distinguem por seu individualismo, por seu amor a liberdade, por sua autoconfiança exagerada, assim como por uma certa profundidade moral. Se os interesses das igrejas locais da França e da Espanha não foram suficientes para provocar uma Reforma eclesiástica nestes países, é porque o principal motivo do protestantismo é a liberdade de consciência individual. E era                                                                                                                

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normal que o espírito germânico, após ter sido oprimido pelas raças latinas no Império Romano e no papado medieval, se revoltasse agora afirmando seu caráter germânico.

Soloviev estima que, do ponto de vista da ortodoxia cristã, o protestantismo agia com todos os direitos contra uma submissão por coerção, mas errou, e de uma maneira fatal, ao negar todo tipo de obediência voluntária à tradição e à comunidade.

Podemos agora resumir as consequências do papismo na visão de Soloviev, isto é, as consequências do absolutismo religioso medieval para a civilização ocidental.

Em primeiro lugar, a centralização abusiva do poder papal, da igreja de Roma, ante as igrejas locais, se não foi propriamente a causa do Grande Cisma, o intensificaria terrivelmente, criando um antagonismo até os nossos dias inconciliável; o que mostra que a Igreja não pode ser unificada pela coerção.

Em segundo lugar, a tentativa de subordinação absoluta do poder secular ao poder clerical pela força da lei e da violência e não pelo apelo a sua fé cristã provocou o triunfo do poder secular no mundo cristão, e este triunfo mostra que a

Igreja não pode dominar o mundo pela violência.

Em terceiro e último lugar, a subordinação das consciências individuais pela coerção física, a imposição do poder espiritual por meios exteriores e não pelo convencimento e pela força da fé, levou ao justo protesto do indivíduo, e o protestantismo mostra que a Igreja não pode salvar os homens pela extorsão.

Com isso atravessamos finalmente o Rubicão rumo ao mundo moderno. Sua característica essencial depende precisamente daquilo que ele nega: o poder absoluto centralizado nas mãos do papa cesáreo e a consequente subordinação forçada de todas as esferas da vida humana à dimensão religiosa. E assim como o papismo renunciou a basear sua autoridade sobre a missão religiosa que lhe fora conferida do alto, esforçando-se por afirmá-la com os meios do mundo político, a lei e a força, em todas as dimensões da vida humana, os movimentos modernos esforçar-se-ão igualmente por conquistar a autonomia destas dimensões, menos pela realização positiva de suas obrigações, do que pela afirmação negativa de seus direitos.

Na época de Soloviev, ao invés de uma unidade social superior da civilização cristã, tanto nas esferas religiosas quanto laicas, a qual deveria ter sido conquistada pela substituição da autoridade abusiva do papismo por uma autoridade

superior, imperava ao contrário um cenário estarrecedor de divisão e discórdia por toda parte: desunião das Igrejas ao Ocidente e ao Oriente; hostilidade contínua e crescente entre as diversas nações e, em cada nação, antagonismo entre suas classes. E, no campo do pensamento, discórdia em meio a variação incessante de sistemas e teorias filosóficas incapazes de oferecer alguma verdade objetiva e universal à consciência individual, abandonando-a ao campo conflituoso de opiniões pessoais e concepções unilaterais que se excluem mutuamente. “Este estado lamentável e pernicioso do mundo cristão tem uma única causa e um só resultado. Malgrado toda a variedade de movimentos históricos que se realizaram no cristianismo, encontra-se neles um traço comum e é nele que reside a solução da questão. Todos estes movimentos efetuam-se em nome de tais ou quais direitos. Defenderam-se os direitos do poder eclesiástico central, os direitos das igrejas locais, os direitos do poder secular, os direitos de opinião e da razão pessoais”104.

A solução da questão é coisa que veremos mais adiante. Agora, é preciso ver como esta questão se desenvolve ao longo da pluralidade dos movimentos modernos.

2.11. Modernidade

Se no Oriente cristão, fiel aos seus instintos de submissão passiva a um poder superior, a reação à centralização papista se deu por uma renuncia à missão eclesial no mundo, seja pela fuga mundi aos monastérios, seja pela submissão completa do clero ao poder autocrático do imperador, primeiro de Bizâncio depois de Moscou, abandonando assim o universo secular à estagnação ou ao domínio das paixões inferiores, no Ocidente, ao contrário, a reação se deu por uma agitação centrífuga na qual as forças humanas, reagindo contra o único centro de poder inicial, se multiplicariam em diversos centros de poder, cada qual arrogando-se, num breve momento de apogeu antes da queda, a mesma condição absoluta que antes era

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