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PREFIGURAÇÕES MESSIÂNICAS

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO SÃO PAULO (páginas 168-179)

REVELAÇÃO, MISSÃO E DOM DE CRISTO

1. PREFIGURAÇÕES MESSIÂNICAS

O crença do cristão de que sua fé é a síntese da máxima fé no homem e da máxima fé em Deus, através única e exclusivamente da fé em Cristo, é relativista por natureza. Para o cristianismo nenhuma crença humana pode ser completamente falsa, e isso pelo simples fato de que é uma crença, e de que toda crença é crença em algo. Mas, segundo o primeiro artigo do Credo, tudo foi criado por Deus, e portanto nada em que o homem creia, no Céu ou na Terra, existe senão pelo seu poder. Para o cristianismo, por princípio, toda crença é uma revelação deste poder.

Os homens primitivos, assim com os homens modernos, acreditavam em muitas coisas que não em Deus, mas em que coisa acreditavam senão em algo criado por Deus? O homem primitivo vê a tempestade no horizonte e teme por trás dela o poder de um espírito ou demônio capaz de devastar a sua morada. O cristão não acredita nisso. Mas que coisa teme o selvagem senão o poder de Deus manifestado na natureza? O homem moderno contempla a tempestade no conforto de sua casa bem construída e se compraz em analisar as causas do fenômeno meteorológico que crê perfeitamente explicável, como tudo mais, sem a “hipótese” de Deus. O cristão não acredita nisso. Mas em que coisa confia o sujeito civilizado senão no poder de construir casas e teorias confortáveis, poder dado a ele por Deus? Assim, do ponto de vista cristão, em toda crença Deus, de algum modo, é revelado.

É preciso ter isso em mente quando se acompanha o desenvolvimento da consciência religiosa na obra de Soloviev. Não é que Deus se revele ao homem em alguma religião específica dentre as tantas religiões humanas, mas o próprio processo religioso é uma gradual revelação de Deus ao homem, e, ao mesmo tempo, uma revelação do homem para si mesmo. Mas uma vez que o homem se relaciona com três graus de realidade – aquilo que lhe é inferior, a natureza, aquilo que lhe é igual, os outros homens, e aquilo que lhe é superior, o próprio Deus – esta revelação se dá por fases, nas quais, da noite escura primordial, uma após a outra estas dimensões vão

sendo iluminadas, da inferior à superior, até que finalmente o sol desponta no Oriente. Assim, da gradualidade da revelação não se segue que os graus inferiores sejam falsos, só menos nítidos.

A analogia do sol usada por Soloviev, sintetiza extraordinariamente bem este princípio. A realidade do sol se revela em medidas diferentes para o homem cego, para o homem que enxerga, para aquele que tem telescópio e, enfim, para o astrônomo erudito. Ora, “acaso se segue disso que as sensações do calor solar, que constituem toda a experiência do cego em relação sol, sejam menos reais que a experiência do astrônomo?”158. O problema seria se o cego quisesse negar todas as explicações deste último afirmando que a única coisa que se pode saber do sol é que ele é quente. Mas, nesse caso, o erro e a falsidade não estão na experiência do calor em si, mas na sua afirmação exclusivista que nega todas as outras experiências. Para o astrônomo, o calor se revela apenas uma parte de uma experiência mais plena do sol, ao passo que para o cego ela é toda a experiência. Do mesmo modo, na experiência religiosa, o conteúdo positivo dos graus inferiores não é anulado pelos graus superiores, mas só integrados como parte de uma revelação mais plena. Este é o primeiro princípio fundamental da teologia da religião de Soloviev, que poderíamos chamar princípio da integralidade.

O segundo princípio, que poderíamos chamar princípio da encarnação, implica que toda manifestação divina determina o ambiente natural ou cultural que a acolhe, tal como a matéria é determinada pela forma. Isso significa que a revelação de Deus é o princípio constitutivo de cada nação ou civilização (na verdade de toda organização humana), cujo processo de constituição ao longo da história é precisamente o processo de revelação a si e aos outros povos daquilo que as constitui, ou seja, daquilo que lhes foi revelado em primeiro lugar – o seu primeiro amor. É como se a cada nação Deus manifestasse um segredo, na forma de um enigma que ela deve decifrar e comunicar, isto é, revelar para si para os outros. Mas o próprio esforço de elaboração deste enigma desperta elementos ou forças humanas que estavam em estado de latência. E nisto o homem se revela a si mesmo.

A relação entre os dois princípios implica que a cada revelação de Deus a um povo, este povo a sacraliza e se magnetiza em torno a ela, organizando-se através de um conjunto de normas morais, instituições sociais e manifestações culturais, a fim                                                                                                                

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de preservá-la e pô-la em prática, ou seja, materializá-la na vida comum. Em outras palavras: a revelação do Espírito de Deus à consciência humana excita nela o desejo de formar um organismo social no qual este Espírito possa viver corporalmente. Cada civilização forma um corpo divino-humano, que a medida que é completado deve se integrar aos outros como um membro ou órgão do corpo universal. A mentira e o mal estão, como sempre, em tomar a parte pelo todo; seja quando uma nação busca separar completamente o seu corpo de todos os outros, seja, ao contrário, quando busca submetê-los, fagocitá-los, suprimi-los como se como se fosse o único. Em linguagem clínica, se poderia dizer que as primeiras são uma necrose para a humanidade, as segundas, um câncer.

No primeiro grau de sua revelação, o Deus escondido se revela precisamente em tudo aquilo que ele não é, isto é, nos fenômenos naturais. A consciência religiosa primitiva está imersa no meio natural e completamente submetida às suas forças que, por isso, adquirem todo tipo de característica divina nas religiões politeístas ou mitológicas. É o que Soloviev chama de revelação natural ou

imediata.

Num segundo momento, a consciência religiosa reconhece a vacuidade da vida natural e prova um invencível desgosto por ela, fechando os olhos para o mundo. A Índia, primeiro no Bramanismo ortodoxo, depois na heterodoxia da filosofia Samkhya e, por último, na doutrina do Buda, reconheceu e amou o Absoluto, mas somente de uma forma negativa, como o puro contrário da existência extra-divina, ou seja da vida natural que se devora incessantemente sem jamais poder encontrar satisfação159.

Mas o espírito indiano, ao mesmo tempo em que afirmou com vigor e clareza que o divino não se encontra na vida material, não foi capaz de dizer onde ele de fato se encontra, muito menos o que é. Ao invés de reconhecer a sua incapacidade e buscar o absoluto onde de fato se encontra, a sabedoria indiana pôs a própria impotência como última palavra. A síntese de sua metafísica é que se a natureza é tudo, aquilo que não é natureza é nada160. “A sabedoria, ou melhor, a loucura oriental consiste justamente no tomar uma verdade relativa e provisória pela verdade completa

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e definitiva”161. É o que Soloviev chama de revelação negativa, na qual Deus se revela como tudo aquilo que ele não é, ou seja, o universo material.

Os sábios, poetas e artistas da Grécia, por sua vez, compreenderiam o Absoluto não mais como o Nada do Budismo, mas como um mundo ideal além deste mundo transitório, um sistema eterno de verdades inteligíveis refletidas nas formas da beleza sensível. Aqui Deus se revela como tudo aquilo que ele é: a unidade eterna de todas as coisas, essência do mundo, bem absoluto. Mas se o mundo ideal e eterno é efetivamente mais verdadeiro que o mundo material e passageiro, não pode ser impotente ante ele. Deve ser capaz de transformá-lo, regenerá-lo, em uma palavra, eternizá-lo. A vontade divina deve realizar-se na Terra como no Céu. Mas exatamente esta interpenetração – malgrado o vislumbre platônico do eros mediador –, seria ao fim rejeitada pela filosofia grega, e o neoplatonismo insistiria ainda mais que o próprio Platão sobre o caráter puramente contemplativo da vida prática. A visão da vida espiritual absolutamente vertical de Plotino, sua vergonha do corpo, seu apolitismo e completo desinteresse, antes, desprezo pela vida natural e social, seria a última palavra do idealismo grego.

Se no início de sua obra, como por exemplo nas Lições sobre a divino-

humanidade, Soloviev ainda pensava na religiosidade indiana como revelação negativa e na helênica como positiva, na célebre Terceira Parte de A Rússia e a Igreja Universal, onde o sistema das prefigurações messiânicas é retomado, a própria

revelação grega, dada a sua impotência em encarnar a divindade no mundo, será ela mesma categorizada como negativa. “Para que o principio divino vença efetivamente a vontade má e a vida do homem é necessário que o dito princípio apareça à alma como força viva pessoal capaz de penetrar na alma e dominá-la, é necessário que o Logos divino não somente influa sobre a alma a partir do exterior mas nasça na alma mesma, não limitando-a e iluminando-a, mas fazendo com que renasça”162. Com isso, Soloviev adere decididamente à ideia de que a salvação veio dos hebreus, o único povo que foi capaz de compreender que a verdadeira regeneração não pode vir nem através da absorção no Nirvana, que se encontra fora dos limites de todo horizonte e que implica no suicídio moral e físico da personalidade humana, e nem através da abstração do espírito na ideia pura contemplada pela mente mas impotente ante a carne, “como o céu estrelado, que envolve a terra, mas não está unido a ela”, e sim                                                                                                                

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que essa salvação deve se realizar através de atividade viva, na transmutação da fé em obras, no trabalho intensivo sobre este mundo.

Israel acreditou na ação pessoal do Deus vivo, e por isso foi eleito por Ele. “A vida e a história religiosa da humanidade concentraram-se neste povo único porque só ele buscava, no Absoluto o Deus vivo, o Deus da história: o futuro definitivo da humanidade foi preparado e revelado por este povo porque só ele via em Deus não somente aquele que é, mas também aquele que será, Jahve, o Deus do futuro”163. Em Israel, Deus se revela não só como aquele que transcende a natureza, e não só como a luz transcendente que ilumina a inteligência, mas como o calor que penetra até as mais íntimas profundidades da natureza terrestre e humana, como

personalidade (“Eu sou”) que se apodera do coração e da alma deste povo e de cada

um de seus indivíduos, e que através deles aparece, pela primeira vez, em formas sensíveis à humanidade. A Israel Deus se revela como Aquele que é, que foi e será.

Na vida de Abraão a união real (ou seja, não só ideal, mas material) entre o divino e o humano se dá pela primeira vez. Ele é o pai da fé, porque nele, pela primeira vez, se realizam as condições da revelação positiva de Deus, na forma das alianças pessoais entre ambos. Abrão doa-se livremente a Deus, sacrificando seus interesses humanos, e oferecendo-se em sacrifício ao princípio superior. Ele primeiro sacrifica a sua vontade, abandonando sua sociedade natal em obediência à ordem de Deus; depois, sacrifica a sua razão à fé em Deus, ao seguir rumo ao sacrifício do filho Isaac. E pela aliança de obediência e pela obediência da fé, Deus conclui com ele um último pacto: a aliança de vida. Após a justificação pela fé, Deus exige de Abraão uma justificação ainda mais perfeita: “caminha à minha frente e sê puro”. “Obedecendo”, diz Soloviev, “Abraão engajou-se no caminho indicado por Deus, acreditou na verdade das promessas de Deus, enfim, consagrou inteiramente sua vida natural aos fins misteriosos de uma vida superior. Todo este sacrifício triplo é seu ato pessoal livre, e por isso Abraão é tão caro a Deus, por isso Deus o elegeu”164.

Sacrificando-se completamente na fé e no abandono ao Deus superior, Abraão também vive o primeiro contato material com Deus nas epifanias narradas nas Escrituras. Para ele, pela primeira vez, Deus se inclina ante uma humanidade decaída, iniciando o processo de kenosis que se completaria plenamente em Nazaré. “Aqui desponta a aurora do sol de justiça vindo ao mundo; aqui ergueu-se o véu no                                                                                                                

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encontro misterioso entre a pessoa de Deus ‘que se abaixa’ e a natureza humana que se eleva; aqui se exprimiu a verdade da divino-humanidade. Não somente Deus se mostrou aqui ao homem, mas ele caminha com ele; não somente ele lhe fala, mas conversa com ele, e para isso ele chega mesmo a tomar, pela primeira vez, uma forma

humana”. O Verbo se fez carne, pela primeira vez, aos olhos de Abraão. “Antes de

tomar efetivamente a carne da família de Abraão, o Verbo de Deus quis tomar uma

figura de carne para o próprio Abraão”165.

Para Soloviev, assim como Abraão é o modelo da fé e sua vida é o germe da união divino-humana, Babel é o modelo da falsa divino-humanidade. Se o primeiro prefigura o verdadeiro Deus-Homem, a segunda revela o orgulho do falso homem- deus. Assim como no Éden, a mentira aqui não está no objetivo, isto é, no desejo de união com o divino que motiva a construção da grande torre, mas sim na presunção de que a humanidade pode fazê-lo com suas próprias forças. “A falta em Babel, como na primeira no Éden, não esteve no fim, mas sim nos meios para realizar este fim. Neste último, o fim, ser como Deus, correspondia à natureza do homem, imagem de Deus, mas a via falaciosa da experimentação arbitrária do bem e do mal abriu para o homem uma caixa de Pandora, derramando sobre ele a taça das misérias humanas. Igualmente, o fim da construção da torre, unir o céu com a terra e reunir a

humanidade, é o verdadeiro fim da história universal, mas a via falaciosa e arbitrária

da fabricação, exterior e artificial, só poderia separar a humanidade de Deus e dividi- la a si mesma”166.

A este paganismo morto e decadente, Abraão dá as costas e segue a voz que lhe chama sem olhar para trás. E aquilo no qual Abrão acreditou sem ver, se manifestaria plenamente aos olhos de seu descendente Jacó: a visão da verdadeira união divino-humana natural e social na Escada que toca os céus, e que gradualmente eleva a natureza ao mesmo tempo em que desce até ela, até as suas raízes, para purificá-la. “Abraão viu aquilo que acontecerá; Jacó, de um certo modo, contemplou

como isso acontecerá. A Abraão apareceu o milagre da força divina apoderando-se da

impotência de uma humanidade ferida de morte; a Jacó se revelaram a lei da vida universal e a ordem da união divino-humana”167. Para Soloviev, a escada de Jacó é a imagem perfeita da verdadeira religião, “tão estranha a um materialismo sem asas,                                                                                                                 165 SOLOVIEV, V., 2008b: 77. 166 SOLOVIEV, V., 2008b: 87. 167 SOLOVIEV, V., 2008b: 87.

que se arrasta sobre a terra e só se alimenta de pó, quanto a um idealismo sem substância que plana no éter do pensamento abstrato e se satisfaz de suas construções no ar”168. A verdadeira religião não pode rastejar sobre o barro, como no paganismo primitivo, nem pode se limitar a negar aquilo que não é divino, fechando os olhos e o coração ao mundo material, como na Índia, e tampouco pode se satisfazer com a pura contemplação do céu divino, como na Grécia, mas, apoiando-se firmemente sobre a Terra, deve tocar os Céus, e assim abrir caminho para a descida do Espírito divino, que penetra e regenera esta Terra, e para a ascensão do espírito humano, que a eleva consigo aos Céus.

Com a aliança do Sinai, o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, torna-se finalmente o Deus do Povo eleito. O Deus vivo que começara a sua manifestação positiva para uma única pessoa e depois para a sua família, agora se manifesta a toda uma nação. Nisso Deus se revela plenamente como o Deus vivo do passado, do presente e do futuro. É assim que Soloviev traduz e interpreta o nome de Deus revelado a Moisés: “Eu sou quem serei”. Ao anunciar-se assim, ao mesmo tempo em que Deus estabelece a Aliança nacional no presente, já faz pressentir que ela, tal como a aliança com os Patriarcas no passado, é também transitória e imperfeita, devendo ser completada por uma Aliança superior e definitiva no futuro. No futuro, o Deus que foi o Deus de Abrão, depois de sua família, e que agora é o Deus de Israel, será o Deus de toda a humanidade, salvador para o mundo inteiro, para toda a progênie de Adão. Deus, que fora conhecido no passado como o Deus da Força (El-

Shaddai), agora se revela a Moisés como o Deus da Justiça, como aquele que confere

uma lei justa para os homens e garante a sua execução. Mas a lei dada no presente ao Povo Eleito, é ela mesma só uma preparação para a vinda futura, quando serão dadas a todos a graça e a verdade. Deus, que se revelara como o Deus do Temor por sua força e potência, e que se revela agora como o Deus da Justiça, da lei e da autoridade, prepara assim a sua revelação definitiva, através do profetismo, como o Deus do

Amor. “O amor não exclui a força e ainda menos a lei: o amor não é licença. A força e

a lei são necessárias para a realização do amor no mundo do mal, e admitir o mal é necessário para que haja liberdade, sem a qual não haveria amor completo”169.

Pode-se perguntar, segundo o princípio da encarnação, por que, afinal, o povo hebreu? Quais as suas características naturais que o fazem tão caro a Deus em                                                                                                                

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seu projeto mundial de encarnação, de matrimônio entre o Céu e a Terra? Soloviev aponta três características dos judeus, cuja combinação é única dentre todos os povos da terra. Em primeiro lugar a religiosidade profunda, a crença inquebrantável no poder do Deus pessoal por parte de seus profetas e mártires, dos homens que conquistaram pela fé firme e obstinada a promessa da plenitude futura. Em segundo lugar, o desenvolvimento extremo da consciência de si mesmo, a autoafirmação

humana em âmbito individual, familiar e nacional; é o espírito de iniciativa dos

judeus que, ao mesmo tempo em que faz deste povo um povo de “dura cerviz”, leva cada um deles a trabalhar infatigavelmente por si mesmos, pela sua família e por toda a nação de Israel, a qual forma um verdadeiro “Eu” nacional. Em terceiro lugar, o traço possivelmente mais característico e manifesto dos hebreus, o seu materialismo

extremo (simbolizado na serpente que se arrasta sobre o pó), o qual penetra todos os

seus pensamentos e excita as suas ações, e que é causa de suas constantes quedas. Mas é precisamente este apego à matéria, esta necessidade de tocar a verdade divina na matéria deste mundo, que, segundo Soloviev, levará este povo à sua glória, a encarnação de Deus na carne humana, uma carne hebreia, pois “no fundo de seu espírito, na melhor parte de seu ser, este povo, mais potentemente e mais plenamente que todos os outros, deseja exatamente aquilo que constitui o fim definitivo da obra de Deus sobre a terra, precisamente a materialização realizada, a encarnação mais completa da ideia divina, sua justificação efetiva e sensível; ele deseja que a água jorrada da fonte corra sobre o solo seco, o penetre inteiramente e se torne para ele o sangue da vida”170.

Por essas razões, diferentemente da Índia e da Grécia, Deus se revela aos hebreus como a personalidade perfeita, o Eu absoluto, que não quer a aniquilação do

Eu humano pela sua absorção em uma divindade universal, e nem a sua mutilação

através da separação de seu corpo e sua alma, mas sim a união íntima, consciente e voluntária com ele. “Crendo em um único Deus, o hebreu jamais considerou que a missão religiosa do homem fosse fundir-se em Deus, desaparecer em sua unitotalidade. E, de resto, ele não reconhecia em Deus uma unitotalidade ou uma uniformidade negativa e abstrata. Malgrado algumas opiniões místicas dos cabalistas tardios, malgrado a filosofia panteísta do judeu Espinosa, o judaísmo sempre viu em Deus não a vacuidade infinita de um substrato universal, mas a plenitude infinita do                                                                                                                

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ser, tendo a vida em si e dando a vida ao outro”171. O hebreu, pelas suas próprias características naturais, não poderia tolerar uma representação de Deus como força ou ideia impessoais. Diferentemente de todas as outras religiões naturalistas e panteístas do mundo antigo, no judaísmo Deus e o Homem conservam sua plena autonomia: as

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