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O advento do cristianismo

INTRODUÇÃO O PROBLEMA DA NATUREZA HUMANA.

2. HISTÓRIA

2.5. O advento do cristianismo

Chegamos assim a um ponto crucial de nossa investigação: o advento da civilização cristã. Doravante estudaremos o seu desenvolvimento histórico. Mas aqui mais do que nunca é preciso lembrar ao leitor que tal investigação está sendo feita em bases puramente antropológicas e historiográficas. Pelo momento a teologia está, por assim dizer, entre parênteses. Chegará o momento de removê-los para investigar a sua verdade em si. Mas aqui trata-se de compreender a significação histórica do cristianismo a partir de suas próprias formulações. Quando Soloviev diz que a proposta cristã representa o universalismo absoluto e positivo, em sua forma plena, o faz simplesmente enquanto historiador ou quando muito filósofo da história, não enquanto teólogo. Noções como “Reino de Deus” e “Homem Perfeito” são para ele – como veremos melhor mais à frente – um ideal consequente da natureza moral. Pode- se dizer que para o senso moral são um maximum de realização. Mas isso não implica necessariamente que tal maximum tenha sido realmente concretizado no indivíduo histórico Jesus, não implica que ele seja efetivamente o Homem Perfeito, Filho de Deus, ou a Pedra Fundamental do Reino. Contudo, é um fato histórico que uma quantidade inumerável de pessoas acreditou e acredita que sim, que Cristo é o Deus- homem, e que com base nessa crença tais pessoas buscaram e buscam conduzir suas

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vidas pessoais e sociais. Ao fazê-lo tomam parte na história, fazem a história, e é esta história que estamos por percorrer.

Pois bem, a significação histórica do cristianismo está em que ele – e só ele – baseia-se sobre a ideia do homem perfeito e da sociedade perfeita fundada neste homem, prometendo a satisfação plena das exigências inerentes à consciência humana. Nesse sentido, assim como Cristo disse que não veio para negar a lei e os profetas, mas para levá-los à sua perfeição, poder-se-ia dizer que o cristianismo não veio negar as verdades universais do budismo, do idealismo e de todas as outras manifestações espirituais, mas para levá-los à sua perfeição. É claro que para a realização do suposto Reino de Deus é preciso renunciar à satisfação com a realidade indigna e limitada deste mundo, como faz o budismo, mas este não pode ser senão um primeiro passo. Tendo rejeitado a realidade inferior, é preciso substituí-la por aquilo que é superior, que seja mais digno de existir, mas para isso é preciso assimilar ou conceber a ideia de uma existência digna, como faz o idealismo. Contudo, uma ideia que é concebível porém não realizável, que ilumina a vida daqui de baixo, mas não a penetra, não a regenera, tampouco pode satisfazer o desejo de integralidade humano, de satisfação plena de sua natureza moral. Depois de negar a mentira, depois de encontrar a verdade, é preciso um terceiro passo: a encarnação desta verdade na vida pessoal e social. É precisamente esta a proposta cristã.

Assim, para Soloviev, o universalismo budista é puramente negativo, é exterior a tudo; por sua vez, o universalismo grego de Platão e outros é incompleto, porque só representa o aspecto inteligível da unidade mundial no cosmos das ideias. Só o Reino de Deus postulado pelo Cristianismo envolve efetivamente todas as coisas, o céu e a terra, e se mostra assim como um universalismo positivo, completo e

perfeito. “O Nirvana se encontra fora dos limites de todo horizonte: o mundo das

Ideias, como o céu estrelado, envolve a terra, mas não está unido a ela; só o princípio absoluto encarnado no Sol da Verdade que penetra até as mais íntimas profundezas da realidade terrestre, cria nela uma vida nova e se manifesta como uma nova ordem de existência – como Reino de Deus que envolve todas as coisas: virtus ejus integra si

versa fuerit in terram – ‘sua força é inteira quando se volta para a terra’ (Tabula Smaragdina). Ora, sem terra não pode haver céu para o homem”70.

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O budismo pode pretender despertar os homens para a falsidade do mundo, mas de modo algum propõe transformar a ordem do mundo. O idealismo, mesmo crendo-se capaz de contemplar a verdade absoluta, separa esta verdade do mundo fenomênico, o mundo sensível, e o esforço do sábio é de “habituar-se a morrer”, isto é, viver neste mundo sempre com os olhos no outro. Ao fim e ao cabo, ele não propõe nenhum tipo de realização no presente e nem a promete para o futuro. Nisso a proposta cristã oferece ao mundo algo realmente novo. Ela propõe uma personalidade que (supostamente) possui, não uma perfeição puramente negativa de indiferença, nem uma perfeição puramente ideal de contemplação intelectual, mas a perfeição absoluta e integral, porque real. “O cristianismo revela à humanidade a personalidade absolutamente perfeita e, consequentemente, fisicamente imortal; ele promete à humanidade uma sociedade perfeita construída sobre o modelo desta personalidade, e, dado que tal sociedade não pode ser criada de uma maneira puramente exterior e violenta (pois, neste caso seria imperfeita), resulta que a

promessa de tal sociedade apresenta à humanidade em seu conjunto e a cada homem

em particular a missão de cooperar com a força pessoal e perfeita revelada ao mundo na obra de transformação do universo em vias de se tornar a encarnação do Reino de Deus”71.

A civilização cristã foi erguida com base nesta crença. Ela nos dá portanto, a um só tempo, um eixo de orientação pelo qual poderemos investigar a história desta civilização, e também um critério para julgar seu sucesso ou fracasso real. Segundo o seu ideal, tal civilização deveria concretizar ao mesmo tempo a plenitude e a integração tanto da vida pessoal quanto da social. “O verdadeiro cristianismo é uma síntese perfeita de três elementos inseparáveis: (1) o

acontecimento absoluto – revelação da personalidade perfeita do Deus-Homem, do

Cristo ressuscitado corporalmente; (2) a promessa absoluta – de uma sociedade conforme à personalidade perfeita, ou, em outros termos, a promessa do Reino de Deus; e (3) a missão absoluta – de promover a realização desta promessa pela regeneração de todo o nosso meio social pessoal e social no espírito do Cristo”72. O primeiro ponto não nos compete pelo momento. Que o indivíduo Jesus tenha existido é um fato estabelecido pela historiografia e que nenhum estudioso sério põe em questão. Que nele tenha se revelado efetivamente a “personalidade perfeita do Deus-                                                                                                                

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SOLOVIEV, V., 1939: 250.

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Homem” e que ele tenha ressuscitado corporalmente é uma proposição tremenda, mas que podemos por ora deixar em suspenso, entre parênteses. O que nos interessa agora são os pontos 2 e 3. Em que consiste esta promessa?, e em que consiste esta missão?, e, finalmente, como as comunidades históricas entenderam a primeira e puseram em prática a segunda? Este é o tema que abordaremos a seguir.

Antes, porém, será importante, com base no que já fizemos até aqui, apresentar rapidamente o contexto histórico em que surge o cristianismo.