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As primeiras comunidades cristãs O Império cristão O Islã.

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO SÃO PAULO (páginas 100-105)

INTRODUÇÃO O PROBLEMA DA NATUREZA HUMANA.

2. HISTÓRIA

2.8. As primeiras comunidades cristãs O Império cristão O Islã.

Toda reação contra o cristianismo será assim para Soloviev uma reação contra uma única ideia: a divino-humanidade dada em Cristo que deve ser realizada pela Igreja. A ideia do Deus-Homem será, desde o começo até hoje, a grande pedra de escândalo.

De pronto inicia-se uma reação contra os princípios religiosos, contra o dogma de fé, na forma das primeiras heresias. Para alguns, como os ebionitas, Cristo não será mais que um grande profeta, que mereceu uma benevolência especial da Divindade. Para outros é o contrário: Cristo é Deus, e sua humanidade é só uma aparência, um revestimento transitório. Assim é para o docetismo. Na gnose o mundo inteiro é condenado como a criação de um Deus maligno e de ordem inferior, e Cristo teria vindo do alto para revelar que todos os homens estão divididos entre os

espirituais (os eleitos) e os carnais (rejeitados). De um modo ou de outro, todos

separam Deus e a Humanidade, que a ortodoxia crê perfeitamente unidas em Cristo. Para Soloviev, todas estas concepções são inspiradas pela ideia fundamental da religiosidade oriental: a de um Deus infinitamente separado do mundo, ao qual nossa natureza é incapaz de se unir; em outras palavras, a ideia de um Deus inumano. O erro fundamental das primeiras heresias é que elas rejeitam a ideia de uma mediação real entre a divindade e a criação efetuada na verdadeira humanidade e na verdadeira divindade do Cristo encarnado, “Filho de Deus” e de Maria de Nazaré.

Por outro lado, o Império, promove a perseguição da nova seita que em nome do verdadeiro Deus-Homem Cristo resiste a se dobrar ante o homem-deus césar. “Desde seu berço, a Igreja lutou contra duas serpentes: contra a força exterior de um estado pagão ergueu-se a força moral dos mártires; contra aquilo que levava o falso nome de ciência dos pretendidos eleitos, triunfou a verdadeira fé dos Apóstolos”84.

Esta luta exterior viria a se voltar para o próprio interior da Igreja, transformando-se numa luta intestina, mais intensa e dramática, a partir do século IV, quando toda a sociedade pagã se conforma a atitude tomada pelo Estado e se submete ao cristianismo. “Desde então, as duas forças hostis ao cristianismo – a concepção

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espiritual religiosa do Oriente e a civilização vinda do Ocidente – agem sobretudo no interior, e tanto mais perigosa se torna a sua ação”85.

As forças pagãs se haviam submetido, mas não desaparecido. E em lugar de uma violência aberta, a sociedade e o Estado passam a agir por uma pressão dissimulada, corrompendo internamente e imperceptivelmente o meio eclesiástico. “Sob Constantino o Grande as massas pagãs moveram-se como um rebanho para o cristianismo, não por convicção, mas por imitação servil ou por um interesse pessoal calculado. Surgiu um tipo de cristão fingido, hipócrita, inexistente até então. [...] As primeiras e verdadeiras comunidades cristãs se confundiram e se dissolveram numa multidão nominalmente cristã, mas que de fato era pagã. A maioria predominante de cristãos superficiais, indiferentes e fingidos, não só preservou de fato os princípios pagãos da vida sob o nome cristão, como por toda parte lutou – em parte instintivamente, em parte conscientemente – para estabelecer a ordem pagã lado a lado com o cristianismo; para legalizá-la e imortalizá-la, excluindo por princípio a tarefa de sua renovação interior no Espírito de Cristo”86.

Enquanto a sociedade civil inteira confessava a verdade cristã em palavras e em atos exteriores de piedade, vivendo na prática uma vida pagã e criando assim o tipo de pseudocristianismo que iria fundar as bases do cristianismo medieval, no domínio propriamente eclesiástico as antigas heresias se reelaboravam nas mãos de bispos e presbíteros da Igreja. Novamente, todas, com mais ou menos boa fé, deformam, corrompem, combatem o único e verdadeiro dogma: a encarnação de Deus no homem Cristo, a divino-humanidade.

Assim o arianismo concebe o messias como uma realidade intermediária entre as duas naturezas. Cristo não é nem Deus, nem Homem: é maior que o homem e menor que Deus. Ele mesmo, Cristo, primeira dentre todas as criaturas, não teria uma ideia completamente adequada do Deus supremo. A divindade permanece inacessível, e o homem não pode ser realmente deificado. Desta forma, seria necessário que o Primeiro Concílio de Niceia (325 d.C.) declarasse que Cristo é “homoosius” (da mesma substância) com o Pai; e que o Primeiro Concílio de Constantinopla (381 d.C.) afirmasse que Cristo “nasceu do Pai antes de todos os tempos”.

Nestorius, por sua vez, não negava a união substancial entre Deus e o Verbo, o Pai e o Filho eternos, mas a negava no homem “Jesus”, que teria nascido                                                                                                                

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exclusivamente homem, não Deus, e só posteriormente teria recebido uma encarnação

contingente do Verbo tornando-se “Cristo”. E contra essa concepção o Concílio de Éfeso (431 d.C.) declararia: Maria é “Mãe de Deus”; Jesus é Deus desde o princípio, desde seu ventre.

Para o monofisismo, com efeito, a união entre Deus e o homem em Cristo é completa. Mas tão completa que nela a divindade absorve a humanidade. E o Concílio da Calcedônia (451 d.C.) dirá: em Cristo há a “união sem confusão” entre a natureza divina e a humana, distintas, mas não separadas.

Tal união sem confusão da natureza divina e humana é admitida pelo monotelismo. Mas, no fim das contas, só em aparência, pois na realidade a natureza humana só é admitida num estado puramente passivo: em Cristo a única vontade que age é a divina, a vontade humana é pura submissão, auto-aniquilação ante a vontade suprema, que se revela ao homem como uma força externa, obrigatória e opressiva. Daí que a vida religiosa assuma as formas do fatalismo e do quietismo. Mas o Concílio de Constantinopla (680-81 d.C.) reagiria: em Cristo há duas vontades perfeitamente distintas e perfeitamente unidas: a divina e a humana.

Finalmente, o princípio anticristão se ergueria uma derradeira vez numa questão aparentemente inofensiva, que em princípio não parecia tocar a verdadeira essência do cristianismo, mas só detalhes de culto: a iconoclastia. Mas ao negar a possibilidade de representar a imagem de Cristo, os iconoclastas contestavam ipso

facto a encarnação divina. A Igreja adora a carne divinizada de Cristo, o seu corpo

glorioso no qual habita toda a plenitude da divindade (Col II, 9), e crê comungar deste corpo na eucaristia. Assim, crê na divinização do corpo humano, na libertação de toda corrupção material e da morte corporal, em outras palavras, ela crê na ressurreição. Negar toda a possibilidade de representação física do divino é negar a encarnação, a obra de divinização do corpo humano, que começa com a epifania de Cristo. Assim, o sétimo é último concílio universal, em Niceia (787 d.C.) proclamaria a restauração e a veneração dos ícones, imagens materiais de Deus.

Pois bem, toda esta negação do cristianismo, negação dissimulada no interior do próprio cristianismo, apareceria, segundo Soloviev, sem véus na religião muçulmana, a qual se manifestou abertamente como uma religião diferente e não cristã. O Islã reconhece em Cristo um grande profeta, mas não o Filho de Deus. Nega abertamente o mistério essencial da encarnação, e afirma fortemente os elementos essenciais de todas as heresias: a separação entre Deus e o homem; a aniquilação da

vontade humana ante a vontade de Deus; a submissão e a obediência cegas; a negação das imagens do divino. “Todo este movimento”, diz Soloviev, “é penetrado por uma única ideia negativa (em relação ao cristianismo), pela negação do teandrismo real e completo, o que faz com que todas as heresias orientais se reduzam ao antigo princípio oriental de um deus inumano. Ora, a afirmação de um deus inumano forma também a essência da religião muçulmana, que só faz renovar este antigo princípio sob uma forma mais firme e mais clara”87.

Mas como explicar o fato de que justamente na mesma época em que o Sétimo Concílio Universal triunfava completamente sobre as heresias, triunfasse também a expansão de uma religião anticristã nos limites do antigo Oriente cristão, chegando em poucas gerações à conquista completa da Síria, do Egito e mais tarde de Bizâncio?

Soloviev entende que as duas primeiras missões do cristianismo haviam sido parcialmente realizadas no Oriente. Com o Sétimo Concílio Universal o sistema dogmático da Igreja estava consolidado. A fé cristã tinha o seu objeto bem definido: a união sem confusão do divino e do humano em Cristo. Os mesmos Padres da Igreja orientais que haviam tão bem definido o dogma de fé nos concílios, de outra parte entregavam-se a tarefa de explicar racionalmente esta fé, como uma verdade sobre a qual se pode e se deve refletir. O triunfo sobre a cultura pagã foi tão completo que os doutores da Igreja chegaram a assimilar e revigorar totalmente a sua expressão intelectual mais poderosa: o neoplatonismo. Assim, no século VII, por todo território do Império Romano, o cristianismo era reconhecido como verdade.

Mas a verdade cristã que é revelada na fé e formulada nos dogmas, e que é refletida pela consciência individual e explicada socialmente, deve por sua própria natureza ser vivida. “Não se deve esquecer que a revelação cristã não é de modo algum esgotada por uma verdade abstrata puramente teórica, mas que nela estas duas vias estão inseparavelmente unidas”88. Faltava à sociedade oriental realizar esta verdade na prática, isto é, extrair as obras da fé: o princípio anticristão, vencido na teoria, não o foi na prática. Os cristãos orientais acreditavam na reconciliação com Deus e na restauração de seus corpos mortais. Mas maior parte não se esforçava por realizar um acordo íntimo entre o divino e o humano em sua vida pessoal.

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“Ideologicamente vencedores da heresias, eles foram praticamente vencidos por ela em sua atividade; discutindo enquanto ortodoxos, viviam como heréticos”89.

Bizâncio apresentava esta dualidade irreconciliável: de uma parte a Igreja, que anunciava a revelação da união entre Deus e o homem, de outra uma sociedade civil de costumes pagãos e um Estado regulado de jure pelo direito romano e de facto pela antiga tradição do despotismo oriental. Aos cristãos insatisfeitos restava o isolamento do deserto e da vida monástica. Os monges separados do mundo correram o risco de um desvio real do ideal cristão. Para os melhores dentre eles, o ascetismo não era mais do que um exercício espiritual; se mortificavam seu corpo para se destacarem do mundo, era para atingir mais rapidamente os céus e poderem agir destas alturas, seguindo a palavra do Cristo: “quando eu for erguido da terra, atrairei tudo a mim”. Mas, se excluirmos estes campeões da fé e da ortodoxia e analisarmos a tendência geral do monasticismo oriental, devemos reconhecer nela algo que não representa a plenitude da vida cristã. A característica marcante do monasticismo oriental foi uma rejeição quase completa da vida ativa em favor da vida contemplativa; da pessoa espiritual em relação à sociedade civil. Assim, enquanto esta sociedade na prática vivia um dualismo irreconciliável entre a sociedade sacra a profana, entre a Igreja e o Estado, entre luz da fé cristã e os costumes obscuros da vida pagã, o monasticismo, por sua vez, mergulhado na contemplação de uma divindade abstrata e infinita, levava em si os traços evidentes de um panteísmo oriental, sobretudo indiano. Na verdade, constata Soloviev, “podemos dizer que a sociedade laica de Bizâncio padecia de um nestorianismo prático e os monges, de um

monofisismo prático”90.

Assim, Soloviev vê na religião maometana uma resposta consequente a esta situação de fato: os cristãos orientais reconheciam a fé cristã, mas na prática aderiam a outro princípio. Eles não viviam segundo os princípios de sua religião, e os muçulmanos concluíram pela impotência deste princípio, substituindo-os por outros mais simples e diretos. O Islã não tem nenhuma pretensão a uma união íntima com Deus. Seu Deus é um Deus estrangeiro à humanidade, um Deus inumano, cuja força sobre o homem é fatal e esmagadora. Sua aliança é a de uma Lei que não chega a unir, mas à qual só se pode aderir. E a vida muçulmana de fato, era mais coerente do que era a cristã, porque eles ao menos viviam a sua lei. Os cristãos, por sua vez, se                                                                                                                

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acreditavam piamente na verdade de sua fé, viviam um vida mentirosa, porque não se esforçaram por pô-la em prática, em outras palavras, por encarná-la. Soloviev conclui: “O Oriente ortodoxo, conservando com o mais grande fervor a santidade da Igreja e a fé divina, não se ocupou de conformar sua própria realidade a esta santidade. Se, desta forma, toda a vida humana do cristianismo oriental estava separada da verdade divina do Cristo, é porque em verdade esta vida não cristã caíra sob o poder do princípio anticristão. Os cristãos orientais pereceram por onde pecaram, por onde não eram cristãos, pelo fato de que sua vida política e social era estranha ao cristianismo. Não obstante, conservaram aquilo que guardavam e aquilo no qual não haviam pecado; a religião verdadeira e a santidade da Igreja de Deus”91.

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO SÃO PAULO (páginas 100-105)