PUC-SP
Marcelo Consentino
Cristianismo e Modernidade.
O cristianismo moderno e a modernidade cristã
de Vladimir Soloviev
DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PUC-SP
Marcelo Consentino
Cristianismo e Modernidade.
O cristianismo moderno e a modernidade cristã
de Vladimir Soloviev
DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Tese apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Luiz Felipe Pondé.
Banca Examinadora
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AGRADECIMENTOS
Agradeço ao meu orientador, o professor Luiz Felipe Pondé, e ao meu orientador na França, o professor Olivier Boulnois; a todos os professores, funcionários e colegas discentes do programa de Ciências da Religião; à família e aos amigos por todo apoio e paciência, e em especial à minha amada Laura.
Agradeço em particular à CAPES por custear boa parte das mensalidades junto à PUC-SP e também pela bolsa de estudos que me permitiu o estágio de pesquisa junto à Ecole Pratique des Hautes Études – Sorbonne Paris IV.
RESUMO
O propósito desta dissertação é contribuir para os estudos que visam investigar
as relações entre a tradição cristã e a cultura moderna, e assim trazer elementos para
responder duas questões fundamentais: (1) o que é vivo e o que é morto no
cristianismo e na modernidade, e (2) o que deve viver e o que deve morrer no
cristianismo e na modernidade.
Para tanto se abordará o problema a partir da obra do filósofo cristão moderno
Vladimir Soloviev, particularmente rica pelo esforço do autor de ser a um só tempo
ultra-moderno e ultra-ortodoxo.
O Primeiro Capítulo será dedicado a investigar as bases científicas na obra de
Soloviev, em especial as suas noções de antropologia e de historiografia, com ênfase
especial no desenvolvimento histórico do cristianismo e da civilização moderna.
O Segundo Capítulo é dedicado à avaliação filosófica de Soloviev da condição
humana e da história da humanidade.
O Terceiro Capítulo é dedicado à teologia de Soloviev, ou seja, a como a
condição humana e a história da humanidade são vistas à luz da Revelação cristã
segundo a ortodoxia.
O Quarto e último Capítulo, que deve servir como conclusão, é dedicado a
investigar, em especial no derradeiro livro de Soloviev, O conto do Anticristo, os pontos definitivos de convergência e divergência entre o ideal da tradição cristã e o
ideal da cultura moderna.
ABSTRACT
The purpose of this dissertation is to contribute to the studies which search
to investigate the relationship between the Christian tradition and the modern
culture, and therefore to bring elements to answer two fundamental questions: (1)
what is living and what is dead in Christianity and in modernity, and (2) what
should live and what should die in Christianity and in modernity.
In order to do that, the problem will be studied according to the work of the
modern Christian philosopher Vladimir Soloviev, especially rich by the efforts of the
author to be ultramodern and ultraorthodox.
The First Chapter will be dedicated to investigate the scientific basis in the
work of Soloviev, especially his notions of anthropology and historiography, with
special emphasis in the historical development of Christianity and modern
civilization.
The Second Chapter is dedicated to Soloviev’s philosophical evaluation of
the human condition and the history of humanity.
The Third Chpater is dedicated to Soloviev’s theology, that is, on how the
human condition and the history of humanity are seen on the light of Christian
Revelation according to orthodoxy.
The Fourth and Last Chapter, which should be hold as a conclusion, is
dedicated to investigate, particularly in the last of Soloviev’s books, The Tale of the Antichrist, the ultimate points of convergence and divergence between the ideals of
the Christian tradition and the ideals of modern culture.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 3
CAPÍTULO 1
O HOMEM EM BUSCA – EM BUSCA DO HOMEM
INTRODUÇÃO . O PROBLEMA DA NATUREZA HUMANA 25
1. ANTROPOLOGIA 34
1.1 Genealogia da moral: pudor, compaixão e reverência 34
1.1.1. Pudor e ascetismo 40
1.1.2. Compaixão e solidariedade 46
1.1.3. Reverência e religião 51
1.2. Primeiros princípios do pensamento 58
1.3. Conclusão 70
2. HISTÓRIA 72
2.1. Princípios empíricos e ontológicos da sociedade humana 72
2.2. As formas primitivas de organização social: do clã à nação 76
2.3. Índia: o despertar da consciência pessoal 78
2.4. Grécia: a visão da eternidade 81
2.5. O advento do cristianismo 84
2.6. Oriente e Ocidente 87
2.7. A ideia do cristianismo 91
2.8. As primeiras comunidades cristãs. O Império cristão. O Islã. 94
2.9. A ortodoxia segundo si mesma e o Grande Cisma 99
2.10. O papado e o papismo 103
2.11. Modernidade 111
CAPÍTULO 2
AVALIAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA E A NATUREZA HUMANA
1. DA GRANDEZA E DA MISÉRIA HUMANA 118
1.1. Sinais de contradição presentes 118
1.2. Sinais de contradição perenes 133
CAPÍTULO 3
REVELAÇÃO, MISSÃO E DOM DE CRISTO
INTRODUÇÃO 154
1. PREFIGURAÇÕES MESSIÂNICAS 162
2. DEUS ENCARNADO 173
3. REINO DE DEUS E MISSÃO CRISTÃ 193
CAPÍTULO 4 O ANTICRISTO
Reencontro final – O grande divórcio 199
EPÍLOGO 228
REFERÊNCIAS 229
INTRODUÇÃO
O objetivo desta dissertação é contribuir para os estudos que investigam
as relações entre a tradição cristã e a cultura moderna. Objetivo geral, bem entendido,
e para abordá-lo em termos mais razoáveis, determinei como objetivo específico um
estudo do problema partir da obra do filósofo cristão moderno Vladimir Soloviev
(1854-1900).
De pronto algumas indagações. Que se entende por “cultura moderna” e
que se entende por “religião cristã”? E, antes mesmo, que se entende por “cultura” e
“religião”? Serão estes dois fenômenos comparáveis; serão distintos; serão
convergentes ou divergentes; serão absolutamente antagônicos e irreconciliáveis? E
por que Soloviev? Em que medida esse pensador moderno e cristão representa a
modernidade e o cristianismo? Ademais, em que medida se pode dizer que um
filósofo representa a visão de mundo de toda uma comunidade?
Estas são apenas algumas das questões, jogadas assim meio sem ordem,
dentre as tantas que a simples apresentação do problema suscita. Questões legítimas,
pois de fato todas elas constituem o próprio objeto de investigação desta dissertação.
E sendo assim não tentarei nessa apresentação preliminar respondê-las, mas
simplesmente justificá-las enquanto objeto de estudo. Farei o que se espera de uma
introdução, que é precisamente introduzir o meu examinador às intuições que
provocaram e portanto definiram o método da investigação que está por avaliar. Por
este motivo creio que ele me escusará se, a fim de apresentar a primeira destas
intuições, começo por narrar uma experiência pessoal. Afinal não há lugar melhor
para se começar do que pelo começo, e de mais a mais se exponho o meu caso não é
por ver nele algo de excepcional, mas justamente o contrário: por não ver nada de
excepcional; por ser um caso comum de um homem de minha geração confrontado
com os problemas típicos de sua sociedade, que é a nossa.
Em 2006 estava em Roma trabalhando em minha dissertação de
sentimento de gratidão e fascínio; entusiasmo juvenil por tocar com minhas próprias
mãos as raízes de nossa cultura e por alimentar-me com seus frutos em minha rotina.
Recentemente convertido ao catolicismo, o fato de estar em Roma comportava ainda
todas as consequências que meu examinador há de imaginar. Então com grande
surpresa certo dia li no noticiário que os representantes das nações da Europa se
reuniam mais uma vez na cidade para votar alguns dispositivos da Constituição
Europeia, sendo o tema principal em pauta a exclusão de qualquer menção no texto da
Carta às raízes judaico-cristãs da Europa – “judaico-cristãs”, diga-se de passagem, é
uma tautologia da qual doravante abriremos mão: quem diz raízes cristãs diz judaicas
ipso facto. Com efeito, a redação atual (de resto jamais aprovada) é um calhamaço de
mais de 400 páginas onde aqui e ali se menciona a título de origens as culturas grega e
romana, a filosofia iluminista e até um vago e anônimo “impulso espiritual” – o qual
não se admite de modo algum religioso –, mas nem uma única palavra sequer acerca
de Deus ou do cristianismo, deixe estar a Igreja.
De minha parte podia bem entender a desconfiança, a repugnância e
mesmo o ódio ao cristianismo que animava boa parte da sociedade europeia naqueles
dias, como anima nos atuais. Eu mesmo já sentira um e outro em tempos de ateísmo e
agnosticismo – não necessariamente nesta ordem. Contudo, havia algo de chocante
nessa moção parlamentar, que se movia como uma imensa borracha a ser esfregada
no registro de identidade e declaração de intenções da comunidade nascente.
Compreenderia se dissessem “odiamos o cristianismo e tudo o que vem dele” ou “o
cristianismo já não nos interessa, não queremos nossa nova civilização maculada por
superstições e mitologias primitivas; confinemo-lo aos museus!” Mas o que saltava
aos olhos e não me podia entrar na cabeça era esta obliteração de um fato histórico
mais do que evidente: que na raiz da civilização ocidental, para o bem ou para o mal,
estão os ideais da visão de mundo cristã. Toda essa reconstrução histórica me parecia
um pavoroso processo de amnésia coletiva auto-induzida; um recalque colossal da
memória paterna e materna, tal como os que os psicanalistas descrevem, só que em
proporções continentais e de períodos de tempo milenares.
Incapaz de separar os caminhos da Europa dos nossos, pensava que esta
era uma decisão radical para a qual caminhava a passos cada vez mais apressados
toda a civilização ocidental: que fazer do cristianismo? Odiá-lo, esquecê-lo ou
revigorá-lo? De minha parte, toda a sinceridade intelectual que consegui recolher em
Acreditava que, como eu um dia, havia pessoas de boa fé que já não eram capazes de
compreender minimamente os princípios básicos da mensagem cristã, a mensagem
que dera origem à sua própria civilização, e, portanto, de decidir conscientemente e
livremente sua atitude em relação a ela. Pois tempo houve em que tal mensagem fora
uma “boa nova”… quer dizer, boa para alguns, má para outros; loucura para uns
tantos, escândalo para uns poucos, mas de todo modo uma novidade digna de ser
ouvida, considerada, criticada, julgada e, finalmente, aceita ou rejeitada. Houve quem
a amasse e quem a detestasse; quem por ela matasse e quem morresse; e houve
mesmo quem, como os eruditos doutores do areópago ateniense, dela se rissem. Mas
ao menos todos esses a compreendiam – ou quando muito julgavam compreendê-la –
ao passo que hoje, para muitos – e seu nome é legião – ela já não é novidade alguma,
mas velharia, e tão velha e incompreensível quanto um hieróglifo egípcio; tão
obsoleta – e na melhor das hipóteses curiosa e pitoresca – quanto aqueles monóculos,
cartolas e casacas dos retratos de parede. E posso garantir que testemunhei
pessoalmente dentro de uma certa igreja próxima a Santa Maria Maggiore um turista
texano interromper a guia de seu grupo para perguntar candidamente: “Com licença
senhorita,mas esse Jesus Cristo de quem a senhora fala a todo momento, quem é?”
Sendo estrangeiro e recém chegado, acreditei que passaria por ingênuo ou
abusado se viesse a confrontar os próprios cidadãos da Comunidade com essas
minhas perplexidades, mas falava ao menos aos meus botões “odeiem o cristianismo
se quiserem; declarem isso em alto e bom som, mas não finjam que não têm nada a
ver com ele”. Como eles não respondessem, metia-me a caminhar pelas ruas
ensimesmado, mas a um dado momento comecei a experimentar inquietantes
fenômenos alucinatórios: não podia topar com uma árvore sem enxergar um europeu
serrando o galho em que estava sentado. Esfregava os olhos e enfiava-me pelas vielas
da Cidade Eterna em silêncio, mas, entre os mármores e granitos das igrejas barrocas,
este era insistentemente perturbado por umas palavras do Evangelho que, quero crer,
estavam só na minha cabeça, mas que então parecia ouvir com meus ouvidos: “se
vocês se calarem as pedras gritarão”. Antes que isso acontecesse, pensei que poderia
dizer uma ou duas palavras, e se acaso os botões não quisessem ouvi-las, diabos!,
sempre haveria paredes. Ou então um professor da academia, que assumiu esse
estranho ofício de ouvir o que as paredes guardam, mas muitas vezes nem elas tem
Assim surgia a dissertação que o meu examinador tem agora em mãos e a
qual tem o encargo de julgar. E antes de começarmos a definir quais são as intenções
por trás dela, convém dizer quais não são.
Antes de mais nada, não se trata certamente de uma apologia do
cristianismo em detrimento da modernidade e nem de uma apologia da modernidade
em detrimento do cristianismo. Este que escreve se reconhece como fruto legítimo de
ambos: filho natural, por assim dizer, da modernidade e espiritual do cristianismo, e
logo devedor a ambos. Assim esse trabalho é antes de mais nada motivado por amor:
amor à modernidade e amor ao cristianismo.
Em nossa era, na ainda anônima e não batizada pós-modernidade,
tendências contrárias tanto aos valores fundamentais cristãos quanto aos
especificamente modernos tomam corpo sempre mais robustos. Penso especialmente
nas duas inclinações radicais e simetricamente opostas do relativismo e do
fundamentalismo. Ambos, sejam endógenos ou exógenos, são letais para tudo aquilo
que a modernidade construiu e para tudo aquilo que o cristianismo construiu e
constrói ainda. Nesse sentido podemos, sim, aceitar que se considere esse trabalho
como apologético, tanto do cristianismo quanto da modernidade; mas não enquanto
um elogio – ao menos não diretamente, mas quando muito como consequência – e
antes no sentido original de uma defesa ou justificação, como a Apologiade Sócrates,
e ao mesmo tempo como uma expressão franca de desgosto ou reconhecimento pelos
erros realizados a fim de retificá-los com justiça, como a Apologia pro vita sua, de
Newman. Pois contra o relativismo, por um lado, partimos do reconhecimento de que
tanto a modernidade quanto o cristianismo revelaram valores universais – valores,
portanto, que deveriam ser perpetuados e difundidos ao longo da história que está por
vir; que deveriam serem incorporados em todas as sociedades do mundo e serem e
reelaborados por todas as gerações através de uma constante renovação de antigas
instituições e a criação de novas que os encarnem e os adaptem em cada tempo e
lugar. E, por outro lado, contra o fundamentalismo, partimos do reconhecimento de
que tais valores só podem ser assim encarnados no corpo social se forem antes
acolhidos em espírito por cada um destes povos e destas gerações, bem como por cada
eleitos em consciência e liberdade, isto é, serem compreendidos com clareza em suas
pretensões e desejados livremente em razão delas.
Ao mesmo tempo, é preciso se apontar qual a solução de compromisso
com tais tendências pós-modernas. Pois se, por um lado, o relativismo tem início
como uma das tendências substanciais da modernidade, a saber, a sua própria
natureza crítica, e se, por outro lado, uma das deformações perenemente possíveis e
mais perniciosas para o cristianismo, dada a sua natureza religiosa, é o
fundamentalismo, isso implica que há algo tanto em um quanto em outro endógenos
ao cristianismo e à modernidade, e, além disso, valioso para ambos. Em outras
palavras, o próprio relativismo e o próprio fundamentalismo contêm um valor e uma
verdade às quais é preciso considerar. O que os torna nocivos, tanto ao cristianismo
quanto à modernidade, não são esses valores em si, mas sim a sua afirmação
exclusivista. Tais valores determinarão em muito o objeto de investigação aqui, pois
se com o relativismo assumimos que cada pessoa tem o direito a exprimir o seu
próprio ponto de vista, assumimos igualmente com o fundamentalismo que há coisas
que são fundamentais, quer dizer, valiosas em qualquer tempo e lugar, e há coisas que
não o são, e que por isso os diversos pontos de vista podem ser avaliados a partir
delas. Pois se é preciso, como exige o relativismo, proteger e estimular a liberdade
individual, também é preciso, como exige o fundamentalismo, buscar o bem coletivo
e, uma vez encontrado, defendê-lo a todo custo. Um ponto de vista que exprima algo
que é fundamental para todos os homens tem mais valor, ipso facto, do que um que
não o exprima, e um ponto de vista que o exprima melhor tem mais valor ainda.
Em segundo lugar, não é nossa intenção comparar ou contrapor dois
períodos históricos sucessivos. Por cristianismo e modernidade certamente não
entendemos a sociedade e a cultura da Idade Média, a chamada cristandade, em
oposição à civilização pós-renascentista, e muito menos uma dicotomia simplista
segundo a qual a primeira seria uma sociedade “cristã” e a segunda uma sociedade, no
limite, “anticristã”. Em muitos sentidos dá-se justamente o oposto. A cristandade
medieval não só não realizou todos ideais do cristianismo, como em aspectos vários
foi diretamente oposta a eles. De fato, a morte da Idade Média era uma consequência
inevitável desta fé que, ao mesmo tempo em que a fundava e movia, era incompatível
com muitas de suas instituições principais e seus antigos costumes pré-cristãos. Pois
do ponto de vista cristão é só muito lenta e gradualmente que essa fé penetra, é
de vista do próprio Cristo o seu Reino é como a menor das sementes que gera a maior
das árvores, de tal modo que para o cristão a Idade Média não pode ser mais do que
um momento transitório e imperfeito nesse processo que se pretende mundial, e
jamais algum tipo de “época de ouro” ou “passado perdido”.
Grande parte das instituições modernas, embora sendo muitas vezes
inspiradas por um espírito indiferente ao cristianismo e mesmo anticristão estão,
malgrado isso, muito mais de acordo com os ideais cristãos do que as instituições
medievais, coisa que pode ser verificada em qualquer uma das grandes esferas da vida
humana: tanto na área do pensamento, quanto na da ação prática, quanto na da
sensibilidade criativa.
Na dimensão intelectual a ciência positiva, por exemplo, essa filha
legítima da modernidade, baseia-se na premissa de que o desencadeamento de eventos
no mundo segue uma ordem racional, que por trás dos fatos há uma lei que os
coordena, e que essa lei pode ser descoberta e representada pelo intelecto humano.
Apesar dos juízos um tanto desastrados de certos representantes do clero católico da
contra-reforma, baseados numa teologia tão presunçosa quanto pobre, perante as
primeiras hipóteses genuinamente científicas sobre a constituição e o funcionamento
do universo, e apesar do atual debate, sobretudo nos países anglo-saxões, entre
criacionismo e evolucionismo – debate de resto mal formulado e logo insolúvel por
princípio, típico dos desvios de um fundamentalismo religioso de talho protestante, de
um lado, e, de outro, de um fundamentalismo científico de espírito empirista, a um só
tempo arrogante e ingênuo, porque pouco consciente de que os limites e princípios
epistemológicos da própria ciência positiva são incompatíveis com o objeto em
questão –, apesar de tudo isso, dizia, não só não há nada nas crenças fundamentais
cristãs, tal como podem ser extraída das Sagradas Escrituras ou dos textos e
testemunhos de sua tradição, que se oponha aos princípios e às propostas da ciência
enquanto tal, como, ao contrário, tais crenças só os corroboram e os estimulam como
nenhuma outra das grandes tradições religiosas da humanidade jamais o fez. O quarto
evangelista diz que no princípio estava o Logos, e que todas as coisas foram criadas
por ele e para ele, enquanto o apóstolo Paulo diz que “desde a criação do mundo as
perfeições invisíveis de Deus [...] se tornaram visíveis à inteligência por suas obras”
(Rm I,18). Que haja um Deus criador em nada contradiz a ideia de uma evolução
dessa criação segundo suas próprias leis; e que se investigue e se organize
ciência positiva, em nada contradiz ou substitui a investigação e a organização
racional de uma determinada fé comum, tarefa própria da teologia.
Na esfera da atividade coletiva, ou seja, na esfera política entendida no
sentido amplo de organização social, os grandes esforços característicos da
modernidade pela afirmação do caráter nacional, do estado democrático de direito e
da liberdade de crença religiosa tampouco estão em contradição com o ideal cristão.
Em verdade, estão muito mais próximos deles do que a imensa multiplicidade de
feudos medievais fundados num princípio dinástico e personalista, bem como de sua
organização social e do trabalho segundo castas e corporações de ofícios hereditárias.
Desde que Moisés estabelecera os princípios da identidade nacional de
Israel, a promessa do Deus veterotestamentário que a Abraão se referia a uma
descendência mais numerosa do que os grãos de areia e as estrelas do céu, passaria a
ser repetida diversas vezes em termos de tribos ou nações: Israel é a tribo através da
qual serão abençoadas todas as outras, é a “Luz das nações”. Mateus narra que Jesus,
em seu discurso de despedida após a ressurreição, sua última benção e exortação aos
apóstolos, diz, antes, ordena: “Ide e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do
Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi”.
Não disse ensinai a cada indivíduo, mas às nações. É às nações que se dirige
imediatamente a mensagem apostólica, como o evento do Pentecostes bem
testemunha e simboliza. Do ponto de vista cristão, portanto, a pluralidade e a
diversidade de estados nacionais não é um mal absoluto que contrariaria o ideal
igualmente absoluto de um cosmopolitismo vago e indiferenciado da humanidade, e
nem mesmo um mal necessário, o qual seria preciso tolerar diante da incapacidade
humana de atingir, pelo momento e dada a sua condição atual, esse ideal ao qual um
dia se haveria de chegar. Ao contrário: trata-se de um bem desejável em si; não um
bem simplesmente transitório e relativo, mas um bem que foi abençoado e será
assumido pela eternidade, mesmo após o fim deste mundo, no Reino de Deus. Cristo,
segundo o Livro da Revelação, recebeu autoridade sobre toda “tribo, povo, língua e
nação” (Ap XIII, 7) e todas virão a prostrar-se diante dele (XV, 7). E, em sua visão, o
autor do mesmo livro testemunha um anjo que voava pelo meio do céu, tendo em suas
mãos um “evangelho eterno”, ou seja, uma novidade sempre nova, “para anunciar aos
habitantes da terra e a toda nação, tribo, língua e povo” (XIV, 6). A vida das nações,
indivíduos, precisamente porque, para o homem, não pode haver vida pessoal sem a
vida social.
Quanto à igualdade de direitos civis, é mais do que evidente que ela
converge plenamente com os princípios do Evangelho. O próprio Paulo, embora
pregasse a não insurreição dos escravos em seu tempo, precisamente a fim de
preveni-los contra uma ação subversiva ante o sistema jurídico vigente, dizia que diante de
Cristo já não há nem escravos nem senhores. Com efeito, dificilmente se encontrará
uma outra comunidade histórica onde essa igualdade tenha sido realizada de facto, e
não simplesmente de jure, como em geral ocorre nas nações contemporâneas, tão
plenamente como nas primeiras comunidades cristãs de que falam os Atos dos
Apóstolos e os registros mais primitivos da tradição histórica. Seria inútil buscar em
todo o Novo Testamento qualquer menção a uma elite, casta ou classe social
privilegiada. A única distinção que tem um valor absoluto é entre os “justos” e os
“ímpios”, os “filhos de Deus” e os “filhos do diabo”, o “homem velho” e o “homem
novo” e assim por diante. Mas todas elas dependem da relação individual entre a
pessoa e Deus, e, em princípio, nenhum homem pode pretender conhecer plenamente
quem é um e quem é outro, pois trata-se de um segredo entre Deus e a própria pessoa.
Desta forma, Paulo insistia: todos são iguais perante Deus. Assim, para o cristão,
qualquer diferenciação social só pode ter um valor transitório e relativo.
Já em relação à distinção entre o Estado, enquanto governo temporal e
regional da sociedade civil, e Igreja, no sentido específico de uma estrutura
hierárquica sacerdotal responsável por intermediar as relações mútuas entre Deus e a
comunidade dos fiéis – cabendo-lhe, portanto, de um lado propiciar a Deus em nome
da comunidade nos rituais religiosos, e, por outro, interpretar a ela a palavra de Deus
em seu magistério e oferecer os meios objetivos de união com Deus através dos
sacramentos –, tal divisão era já uma realidade no Antigo Testamento, do qual o
cristianismo não nega um iota, desde Moisés, que separara, segundo os comandos de
Yahwe, as funções do Grão-Sacerdote Aarão e do líder político e militar Josué. E se
Saul, o primeiro rei de Israel, deposto por Deus por se rebelar contra as suas ordens e
por prestar culto a outras divindades, promoveu o massacre de centenas de sacerdotes,
Davi, o monarca modelo de Israel, jamais pensou em disputar a esfera própria de ação
sacerdotal para si, e, bem ao contrário, submetia-se deliberadamente a ela sempre que
era o caso segundo a Lei e a exortação dos profetas – e quando não obedecia,
de Deus não anula o Reino de César, e, diante de Pilatos, não só não nega a sua
autoridade de chefe do poder público, mas revela que ela lhe fora conferida do alto. É
verdade que, segundo o Livro da Revelação, o Estado será um instrumento importante
e talvez o mais nefasto nas mãos do Anticristo, mas essa não é a sua vocação e sim a
sua usurpação, tal como a foi a de Pilatos ao abusar de sua autoridade para condenar
um inocente (ou, ao menos, ao se omitir de usá-la para impedir a sua morte), só para
fazer satisfazer sua política de interesses com as autoridades locais e a opinião pública
de então.
Quanto à esfera da atividade criativa, tampouco contrariam os ideais
cristãos o desenvolvimento tecnológico e o espírito da arte moderna. Com relação ao
primeiro, não há propriamente qualquer ruptura em relação à cristandade medieval,
mas somente um crescimento exponencial. De fato, ao contrário do que se costuma
pensar, muitas das descobertas tecnológicas marcantes do Ocidente já haviam sido
realizadas pelos medievais, tendo sido simplesmente exploradas ao longo da
modernidade. O impulso maior, claro, seria dado com o desenvolvimento da ciência
positiva. De todo modo, no sentido da técnica, isto é, da criação de instrumentos
através dos quais se possa alterar as condições do universo material, há uma linha de
continuidade entre a Idade Média e a modernidade que só é potencializada nesta
última.
Já em relação à arte, o fato de que desde a Renascença entre em curso
uma metanoia estética que gira o olhar dos artistas de maneira gradual, mas enérgica,
da realidade sobrenatural para a realidade mundana, não implica de modo algum por
si só uma contradição com o cristianismo. Pois o cristão é chamado a ocupar-se das
coisas deste mundo e o artista cristão, em sua esfera própria de atividade, é também
chamado a fazer do seu trabalho o “sal da terra” e a “luz do mundo”.
Na perspectiva cristã, Deus encarregou o homem desde o princípio a
estender seu domínio sobre a natureza material e a extrair frutos deste mundo. E
Cristo revela que cabe ao homem transfigurar o universo natural, assim como o
Espírito Santo transfigura o próprio homem, de velho em novo, de carnal em
espiritual. Cabe ao homem espiritualizar a natureza, liberar suas energias e uni-la a
Deus como um sacerdote cósmico. Paulo diz que toda a criação aguarda ansiosamente
a manifestação dos filhos de Deus. E, assim sendo, quando a civilização moderna
transforma o mundo através da sua tecnologia e o contempla com os olhos de seus
Enfim, o mesmo poderia ser dito de outras conquistas da modernidade: a
gradual remissão da pena de morte e mitigação da justiça criminal, a declaração dos
direitos universais do homem, o respeito aos direitos e à dignidade de estrangeiros,
encarcerados, doentes mentais; os diversos serviços de assistência social assumidos
oficialmente pelo Estado e assim por diante.
É verdade, entretanto, que grande parte destas conquistas foi obra de
homens muitas vezes indiferentes ao cristianismo e, em alguns casos, abertamente
hostis a ele. Assim como é verdade que a atitude de muitos cristãos confessos e
escrupulosos e mesmo da própria Igreja em sua hierarquia oficial foi muitas vezes
negativa em relação a elas, chegando, vez ou outra, em nome mesmo de um suposto
ideal cristão, a servir gravemente de entrave. Não é preciso citar exemplos. Casos
como o processo de Galileu e a Inquisição espanhola já são demasiado emblemáticos
e bem impressos no imaginário contemporâneo quando se trata de acusar as atitudes
reacionárias do cristianismo histórico. E, mesmo hoje, há cristãos piedosos que
penetrados da nostalgia de uma sabe-se lá qual sociedade cristã medieval que tenham
em mente, ainda criticam e escarnecem essas conquistas e que, secretamente, talvez
até gostassem de vê-las eliminadas, se acaso isso estivesse em seu poder.
Da perspectiva cristã, porém, Deus é aquele que é absolutamente belo,
verdadeiro e bom. Ele é a fonte de toda beleza, verdade e bem, e sua providência age
na história do universo e na história humana rumo à instauração de um reino de
beleza, verdade e bem: o Reino de Deus. Desta mesma perspectiva, quem quer que
pratique uma boa ação, quem quer que diga a verdade, quem quer que crie algo belo,
o faz em favor deste Reino, ainda que o faça inconscientemente, ainda que aquele que
o faz seja um ímpio ou um ateu declarado, ainda que seja um demônio. Todas as
criaturas, segundo essa perspectiva, servem à providência, seja como colaboradores
conscientes, seja como instrumentos passivos; seja por ações positivamente desejadas
por ela, seja por aquelas que são simplesmente toleradas, isto é, aquelas ações
malignas que, não obstante, como dizem os teólogos, podem sempre ser convertidas
em um bem. No Antigo Testamento, Moisés serviu a essa providência como o faraó
que o perseguiu a serviu, cada um a seu modo, um consciente e voluntariamente, o
outro involuntariamente. E assim, no Novo Testamento, o fariseu Nicodemus ou o
centurião Cornélio ou o bom ladrão na cruz ou o apóstolo Pedro serviram à
providência tanto quanto a serviram Anás e Caifás ou Pilatos ou o mau ladrão ou
quando querem voluntariamente agir contra, como daqueles que agem a favor sem
saber que o fazem, assim como, daqueles que, pensando agir a favor, na verdade
agem contra.
Cristo adverte que nem todo aquele que lhe diz “Senhor, Senhor” entrará
no Reino dos Céus, e profetiza abertamente aos seus discípulos que muitos os matarão
pensando prestar serviço a Deus. Sua própria condenação à cruz pelo povo foi só um
reflexo consentido da condenação decidida já há algum tempo e consumada na noite
de seu julgamento pela elite religiosa de Israel, os servidores mais zelosos da casa e
do nome de Deus. Os mesmos apóstolos, em momentos em que se acreditavam
movidos pelo mais perfeito entusiasmo e zelo religioso pelo Reino e seu Rei,
descobririam pela boca do próprio que na verdade estavam a serviço do demônio. A
conversão de Saulo é exemplar nesse sentido. Lucas narra que um certo dia João, que
já antes fora repreendido junto com seu irmão Tiago por sua ambição de se sentar
acima dos outros apóstolos e lado a lado ao mestre no futuro Reino, anuncia a Jesus
que proibira um homem de expelir um demônio em seu nome, porque “não era dos
nossos”, ao que é novamente repreendido: “Não lhe proibais; porque o que não é
contra vós é a vosso favor” (Lc IX, 49-50; cf. Mt IX, 38-41). Pouco depois, o mesmo
João, o futuro “apóstolo do amor”, vindo de uma povoação de samaritanos que lhes
recusara hospedagem – ao que parece por receio de se implicarem com o controverso
profeta galileu – pergunta a Jesus: “Senhor, queres que mandemos que desça fogo dos
céus e os consuma?” Ao que Jesus responde severamente: “Não sabeis de que espírito
sóis animados. O Filho do Homem não veio para perder a vida dos homens, mas para
salvá-las” (Lc IX, 51-56). Pedro, a pedra da Igreja, o primeiro papa, na mesma noite
em que mutilaria a orelha do guarda do templo em defesa de Jesus e em que
declararia estar pronto a segui-lo até a prisão e mesmo à morte, o negaria por três
vezes, intimidado por uma miserável serviçal. E se, em outra ocasião, tocou-lhe
confessar pela primeira vez a fórmula que orientaria toda a doutrina e a dogmática
cristãs – “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” –, no instante seguinte seria
repreendido com palavras impressionantes pelo mesmo Jesus ao tentar dissuadi-lo de
sua missão: “Afasta-te de mim, Satanás! Tu és o para mim um escândalo; teus
pensamentos não são os de Deus, mas dos homens” (Mt XVI, 13-23).
Por outro lado, há aqueles que servem ao messias sem sequer fazerem
parte da comunidade de discípulos e mesmo do Povo Eleito de Israel. Há, já no
prestigiar o novo Rei. Diante do centurião romano que, crendo-se indigno de receber
o rabi hebreu em sua casa, suplica a cura de seu servo, Jesus declara: “Em verdade,
em verdade vos digo: não encontrei semelhante fé em ninguém em Israel. Por isso eu
vos declaro que multidões virão do Ocidente e do Oriente e se assentarão no Reino
dos céus com Abraão, Isaac e Jacó, enquanto os filhos do Reino serão lançados nas
trevas exteriores” (Mt VIII, 5-13). Essa mesma fé ele encontrará na mulher de origem
siro-fenícia que, sem questionar os privilégios dos filhos de Israel, lhe implorará um
milagre como os cães imploram migalhas. Um dos primeiros esforços de
evangelização ad gentes será o da mulher samaritana que reconhece em Jesus o
Messias esperado pelo povo de Israel e espalha a novidade aos seus concidadãos.
Quando nove dentre dez leprosos curados por Cristo dão-lhe as costas sem sequer
agradecer, ele faz notar aos discípulos: “Não se achou senão esse estrangeiro que
voltasse para agradecer a Deus”. E caberia a outro centurião, ao pé da cruz
abandonada pelos apóstolos, fazer a primeira confissão de fé cristã após a morte de
Cristo: “Verdadeiramente, este homem era o filho de Deus!” (Mt XXVII, 54).
O próprio Jesus dirigira várias palavras de esclarecimento em relação a tal
ambiguidade entre intenções e atos, entre a fé e as obras – ambiguidade que se
verifica em grande escala entre uma Idade Média “cristã” e uma modernidade “laica”.
“Um homem descia de Jerusalém”, diz a parábola, e após ser despojado, espancado e
abandonado meio morto por ladrões, viu passarem à sua frente um sacerdote e um
levita antes que um samaritano finalmente parasse por lá para o socorrer. Tiro e
Sidônia, com todos os seus costumes pagãos abomináveis, serão, do ponto de vista de
Cristo, tratadas com menos rigor no Dia do Juízo do que as piedosas Corozaim e
Betsaida, pois se naquelas “tivessem sido feitos os prodígios que foram realizados
[nestas], há muito teriam feito penitência” (Lc X, 13-15). Nesse mesmo Dia do Juízo,
“quando o pai de família tiver entrado e fechado a porta, e vós, de fora, começardes a
bater à porta, dizendo, Senhor, Senhor, abre-nos, ele responderá: Digo-vos que não sei
de onde sois. Direis então: comemos e bebemos contigo e tu ensinaste em nossas
praças. Ele, porém, vos dirá: Não sei de onde sois; apartai-vos de mim todos vós que
sois malfeitores”. E, então, repete-se novamente a fórmula que inclui os excluídos:
“Virão do Ocidente e do Oriente, do norte e do sul, e sentar-se-ão à mesa do Reino de
Deus. Há últimos que serão os primeiros, e há primeiros que serão os últimos”. Em
Mateus não só serão excluídas pessoas que comeram e beberam com Cristo, mas
dons extraordinários: “Muitos me dirão naquele dia: ‘Senhor, Senhor, não pregamos
em vosso nome, e não foi em vosso nome que expulsamos os demônios e fizemos
muitos milagres?’ E, no entanto, eu lhes direi: nunca vos conheci. Retirai-vos de mim,
operários maus!” (Mt VII, 21-23). Aos seus ouvintes no sermão da montanha
pergunta: “Por que me chamais: Senhor, Senhor e não fazeis o que eu digo?” (Lc VI,
46). E a quanta coisa na Idade Média não poderiam ser aplicadas as palavras de Isaías
glosadas por Jesus perante os fariseus?: “Este povo me honra com os lábios; seu
coração, porém, está longe de mim. Vão é o culto que me prestam, porque ensinam
preceitos que só vêm dos homens” (Mt XV, 8-9). Em outra parábola um pai pede a
um de seus filhos que vá trabalhar em sua vinha e esse responde “não vou”, mas logo
arrepende-se a vai; depois pede a outro a mesma coisa, ao que este responde
prontamente “vou”, mas não vai. E Jesus pergunta: qual destes realizou realmente a
vontade do pai? Se, olhando atentamente a modernidade e a Idade Média, nos
fazemos a mesma pergunta, é certo e seguro que as respostas causarão não poucas
perplexidades.
Era de todo inevitável que após a experiência da modernidade alguns
teólogos do século XX viessem a falar em “cristãos anônimos”, uma noção que já se
encontrava esplendidamente sintetizada por Agostinho em uma sua interpretação
alegórica da fuga da Babilônia: “Começa a partir o que começa a amar. / Muitos dos
que partem ainda não sabem, / E os pés dos exilados são os afetos do coração; / E
contudo, estão a deixar a Babilônia” (Enarrationes in Psalmos, 64,2). A adesão verbal
às formulas dogmáticas e a participação objetiva nos sacramentos com as quais a
Igreja medieval parecia ver satisfeitas as exigências da salvação “individual” da alma
estão certamente bem abaixo do critério estabelecido pelo próprio Cristo. “Quando o
Filho do Homem voltar na sua glória e todos os anjos com ele, sentar-se-á no seu
trono glorioso. Todas as nações se reunirão diante dele e ele separará uns dos outros,
como o pastor separa as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda. Então o Rei
dirá aos que estão à direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que
vos está preparado desde a criação do mundo, porque tive fome e me destes de comer;
tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; nu e me vestistes;
enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim’. Perguntar-lhe-ão os justos:
‘Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de beber? Quando foi que te
vimos peregrino e te acolhemos, nu e te vestimos? Quando foi que te vimos enfermo
digo: todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a
mim mesmo que o fizestes’. Voltar-se-á em seguida para os da sua esquerda e lhes
dirá: ‘Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e
aos seus anjos. Porque tive fome não me destes de comer; tive sede e não me destes
de beber; era peregrino e não me acolhestes; nu e não me vestistes; enfermo e na
prisão e não me visitastes’. Também estes lhe perguntarão: ‘Senhor, quando foi que te
vimos com fome, com sede, peregrino, nu, enfermo, ou na prisão e não te
socorremos?’ E ele responderá: ‘Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que
deixastes de fazer isso a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer’”
(Mt XXV, 31-46).
A verdade é que há um cristianismo medieval, assim como há um
moderno, do mesmo modo que há um anti-cristianismo medieval e um moderno. E,
correspondentemente, há também um falso cristianismo medieval e um moderno,
assim como um aparente anti-cristianismo medieval e um moderno.
Se nos dois primeiros séculos de nossa era a confissão cristã podia custar
muitas vezes o preço do martírio, após o édito de Constantino oficializando o
cristianismo como religião do Império, surgiria um novo tipo de cristão, um tipo
hipócrita, que aderia à Igreja por seus interesses pessoais ou por simples comodismo.
Para muitos essa adesão era só um compromisso com a nova religião estatal e uma
maneira de preservar, sob ele, seus mesmos costumes e valores pagãos. O caráter do
anti-cristianismo de tipo medieval é justamente esse paganismo subterrâneo que
apenas se deixava envolver por uma casca enquanto mantinha sob ela seu
funcionamento orgânico de antigamente. É verdade, entretanto, que na sociedade
medieval tal anti-cristianismo jamais viria a ser institucionalizado oficialmente em
instituições públicas deliberadamente não cristãs ou anti-cristãs. O anti-cristianismo
medieval, do ponto de vista social, é ou inconsciente ou velado. Ou ele não é
percebido, sendo simplesmente perpetuado pela inércia dos antigos costumes pagãos,
ou é dissimulado e praticado em corporações clandestinas e impopulares.
A experiência moderna, por seu turno, é bem diferente. A via
modernorum em princípio se apresentava precisamente como uma crítica a esse
cristianismo na letra que era vivido segundo o espírito da idolatria pagã. Mas, uma
vez que essa crítica foi ativada, abriram-se duas vias que conduziriam a conclusões
diametralmente opostas e heterodoxas. Assim, haverá quem considerará a
extremo oposto, buscarão levar a modernidade às últimas consequências como uma
cultura anti-cristã.
O que, de um modo ou de outro, certamente caracteriza o espírito da
modernidade é essa atitude de crítica em relação a fé medieval; fé ora sincera ora
dissimulada, ora ingênua ora profundamente meditada, mas de todo modo sempre
inquestionável.
Sem avançar nas discussões próprias desta dissertação, é possível
identificar sem dúvida algumas zonas de conflito desse criticismo, de onde, segundo
cada escola, surgirão diversas formas de solução de compromisso ou de dissociação
deliberada.
Em relação ao pensamento e ao conhecimento há a disputa entre a
teologia e a filosofia, entre o conhecimento revelado e o conhecimento dentro dos
limites da mera razão ou da experiência. Dentro da própria teologia, por sua vez,
haverá duas tendências fundamentais: o misticismo quietista e o racionalismo. Ambas
podem ser verificadas tanto na teologia católica quanto na protestante, mas serão
certamente mais contrastantes no protestantismo, dada a ausência nele de um
magistério oficial que sirva de pedra de toque aos extremos. A própria filosofia
moderna, por sua vez, será marcada por um conflito endógeno entre o empirismo e o
racionalismo, entre a experiência como fonte de todo conhecimento ou a razão.
Em relação à organização social há, na esfera religiosa, o conflito capital
entre o protestantismo e o catolicismo, o qual envolve diversos sub-conflitos: entre os
povos germânicos e os latinos; entre a igreja universal e as igrejas locais, nacionais ou
pessoais; entre o clero e o laicato. Já no que toca a própria relação entre a religião e a
política, há o conflito entre a Igreja e o Estado: a formação das igrejas nacionais; o
antagonismo entre os Estados nacionais e o Sacro Império; o antagonismo entre os
monarcas e o papa; a condição do clero dentro do Estado; a formação do estado
absolutista laico. E, assim como a Igreja ocidental moderna se divide e se fragmenta
em seu criticismo interno, o próprio Estado moderno comportará uma série de
conflitos intestinos. Há basicamente as duas tendências políticas opostas entre a
Ordem e a Revolução. Estes são basicamente os dois pólos que cobrem todas as
possibilidades tentadas pela modernidade em termos de política de Estado e que
englobam as diversas dicotomias: direita-esquerda; reacionário-revolucionário;
entre as tendências extremas do liberalismo e do socialismo – serão subsidiárias da
opção política.
Por último, no campo da estética, é fato notório que a sensibilidade
artística medieval está completamente condicionada pela sensibilidade mística, sendo
o seu emblema excelso a grande epopéia medieval de Dante. Se contemplamos a
história da arte na modernidade quase podemos ver as figuras que antes estavam todas
organizadas e concentradas nas catedrais partindo cada uma segundo sua própria via:
como se as esculturas descessem dos púlpitos, as pinturas dos afrescos, a música
saísse para as ruas e salões palacianos. Assim como a própria arte busca a sua esfera
de autonomia perante a mística religiosa, cada uma das artes buscará a sua perante as
outras. No limite, assim como no pensamento há uma tendência a absorver a teologia
na filosofia e na política do Estado a absorver a Igreja, há também uma tendência da
própria arte de absorver a mística. Daí surgirá a aura quase religiosa do artista-profeta,
o artista-arcanjo, criador visionário dos novos mundos e do novo homem.
Vemos assim que o que contrasta essencialmente a cultura moderna em
relação à medieval é o criticismo da primeira em relação à homogeneidade da
segunda. A cultura medieval, por mais complexa, variada e colorida que possa ser
internamente, mantém sempre o ideal unitário de uma ordo absoluta. Sobre a
pluralidade de organizações sociais feudais, há o Império e a Igreja; sobre a
pluralidade epistemológica e intelectual há a Suma e a Universidade; sobre a
pluralidade de manifestações artísticas há a catedral que todas une segundo uma visão
comum de um princípio místico comum. O criticismo moderno, por sua vez, deve ser
entendido não no sentido da crítica puramente intelectual, mas no sentido amplo e
mais originário de crítica enquanto separação (krinein). O espírito da modernidade é
o espírito da autonomia e é assim que cada uma das esferas da vida humana buscará,
como vimos, afirmar a sua autonomia própria em relação às outras. Se essa autonomia
se torna exclusivismo, temos os espetáculos das diversas ideologias que fazem de um
aspecto particular e relativo da vida humana um princípio absoluto em detrimento dos
outros.
E se olharmos a cultura moderna a partir, não desta pluralidade, mas de
seu caráter essencial, podemos ver uma proposta sem precedentes na história
universal. Se a cultura é, grosso modo, um sistema de organização de valores,
verdades e ideais de beleza de uma determinada comunidade os quais se encarnam em
anterior eram condicionadas pela religião. O sistema simbólico das culturas arcanas
era uma expressão direta das crenças da comunidade, um reflexo delas produzidas no
coração humano como se esse fosse um espelho do céu. Ora, assim como vemos ao
longo da modernidade uma esforço de autonomização (e eventualmente de inversão)
do Estado perante a Igreja, da filosofia perante a teologia e da arte perante a mística, a
cultura moderna, de um modo geral, se caracteriza por afirmar a autonomia da própria
ideia de cultura em relação à ideia de religião – e, eventualmente, também se poderá
notar uma tendência análoga e extrema de substituição de uma pela outra, ou seja de
absorção da religião na cultura. As religiões se tornam assim um mero epifenômeno
de cada cultura, as quais passam a ter um valor público e normativo, enquanto as
primeiras são relegadas à esfera privada, à intimidade pessoal.
Claramente há em várias destas tendências algo que para o cristianismo é
intolerável. Em outras palavras, assim como a modernidade nasce da decisão de que
havia coisas no cristianismo medieval, o qual então moldava toda a sociedade
ocidental, que deveriam morrer – e finalmente chega, em algumas facções extremas, à
decisão de que todo cristianismo deve morrer –, assim também há, do ponto de vista
cristão, coisas que na modernidade devem morrer. Do mesmo modo, há, para um e
para outro, aquilo que, em um e em outro, deve viver. De fato, o propósito geral dessa
dissertação poderia ser bem resumido assim: o que segundo o cristianismo deve viver
e o que deve morrer na modernidade e o que segundo a modernidade deve viver e o
que deve morrer no cristianismo? O que entre ambos é diferente, o que é idêntico, o
que é divergente, o que é convergente, o que é antagônico.
Mas se este é o propósito geral, surge então a questão: por que Vladimir
Soloviev? Penso que a resposta pode ser resumida numa frase de Hans Urs von
Balthasar, que exprime desde já a hipótese a ser investigada: “Soloviev ofereceu à sua
época contemporânea a máxima afirmatividade possível a todos os seus caminhos
particulares e correntes de visão de mundo”1. Se esta hipótese estiver correta, significa que Soloviev não só foi ultra-ortodoxo em seu cristianismo (como
professava), mas também ultramoderno; que ele conciliou aquilo que para muitos
cristãos e para muitos secularistas modernos (talvez mesmo a maioria de uns e outros)
parece inconciliável: o cristianismo e a modernidade; significa que a sua fé cristã foi
moderna e que os seus ideais modernos foram cristãos, e isso num máximo grau.
Se de fato é assim, não o é por acidente, digo, por uma solução de
compromisso mais ou menos artificial entre a sua fé cristã e o ideal moderno, ao
contrário, se ele ofereceu à sua época contemporânea a máxima afirmatividade
possível de todos os seus caminhos particulares e correntes de visão de mundo, não o
fez apesar da sua fé cristã, mas precisamente em razão dela. E isso porque, creio, para
ele o cristianismo oferecia a todas as épocas a máxima afirmatividade possível de
todos os seus caminhos particulares e correntes de visão de mundo. “Todas” é uma
palavra forte, eu sei, sobretudo para a nossa sensibilidade contemporânea. Mas que
fazer? Para ele era assim: uma consequência lógica e incontornável da fé cristã. Por
que? Porque para Soloviev “crer no Reino de Deus significa combinar a fé no homem
e a fé na natureza com a fé em Deus”2. E como, por necessidade lógica, não pode haver nenhuma outra fé fora destas três, segue-se necessariamente que onde quer que
houver uma delas, o cristianismo estará disposto a acolhê-la. Eis ali um típico
humanista laico pleno de confiança na razão humana e nas instituições seculares e
completamente descrente em Deus e na Igreja. Pois bem, o cristão não compartilha a
sua descrença. Mas que importa? O que move o sujeito não é aquilo que nega e sim
aquilo que afirma, e se ele afirma a capacidade do homem de compreender a
racionalmente a realidade e a força moral de melhorá-la, então não será o cristão, que
crê que todo homem é feito à imagem e semelhança de Deus, que há de negá-lo –
muito pelo contrário! Eis ali, por outro lado, um místico quietista que crê
ardentemente em seu Deus e desconfia de tudo o que o homem faz. Para o cristão esta
desconfiança é demasiado estreita, mas se o que coração do sujeito realmente deseja é
mergulhar profundamente na divindade, então o cristão o incentivará com toda
energia. Nem o excesso de fé religiosa do místico, nem o excesso de fé no homem do
secularista são um problema para a consciência cristã, pelo contrário. Ele discorda do
que eles negam, mas o que negam não serve de princípio para a ação deles.
Creio que se poderia aplicar perfeitamente ao próprio Soloviev um
encômio que ele fez sobre a tumba do amigo Dostoievsky. “Mais do que qualquer um
entre seus contemporâneos, Dostoievsky concebeu a ideia cristã harmoniosamente em
sua tripla plenitude; ele era ao mesmo tempo místico, humanista e naturalista.
Possuindo um senso vital da intrínseca conexão com o sobre-humano, e sendo neste
sentido um místico, ele encontrou a liberdade e o poder do homem neste sentimento.
Conhecendo todo o mal humano, ele acreditou em todo bem humano e era
reconhecido por todos como um verdadeiro humanista. Mas esta fé no homem era
isenta de qualquer unilateralismo e espiritualismo: ele tomou o homem em toda a sua
plenitude e realidade. Tal homem é estreitamente ligado a natureza material, e
Dostoievsky voltou-se para a natureza com profundo amor e ternura, entendeu e amou
a terra e tudo o que é terreno, acreditou na pureza, na santidade, na beleza da matéria.
Não há nada falso ou pecaminoso neste tipo de materialismo. Assim como um
verdadeiro humanista não se inclina ante o mal humano somente pelo fato de que é
humano, assim o verdadeiro naturalismo não é escravizado à natureza porque é
natural”3.
É a intenção de Soloviev de viver o seu cristianismo como um verdadeiro
místico, um verdadeiro humanista e um verdadeiro naturalista que nos interessa
sobretudo. “Não somente a fé no homem, mas também a fé na natureza retorna a nós
como uma fé real e completa na Deidade. Conhecemos a natureza e matéria separadas
de Deus e pervertidas em si mesmas, mas acreditamos na sua redenção e na sua união
com a divindade, sua transformação em Deus-matéria; e como intermediário de sua
redenção e renovação, reconhecemos um homem perfeito, verdadeiro, i.e., um
Deus-homem em Sua vontade e ação livres”4. Na obra de Soloviev tudo se resume à sua visão mística do casamento entre o Céu a Terra. O cristianismo é a religião do
Deus-Homem, do Deus encarnado. Mas para ele a encarnação se impunha como uma
missão: “O fim supremo do homem como tal e do mundo puramente humano é de
reunir todo o universo em ideia; o fim do Deus-homem e do Reino de Deus é de
reunir todo o universo em realidade”5.
Para ele, se “o cristianismo é uma religião da salvação, e se a ideia cristã
consiste na cura – e na intrínseca união de princípios, cuja discordância significa ruína
– a essência da verdadeira preocupação cristã será aquela que na linguagem da lógica
é chamada synthesis, e na linguagem da moralidade reconciliação”6. Daí a impressionante afirmação de Balthasar: “A arte e a técnica solovieviana da integração
de toda verdade parcial faz com que ele apareça talvez, ao lado de Tomás de Aquino,
como o maior artífice de ordem e de organização na história do pensamento. Não
existe sistema que não lhe ofereça uma pedra essencial após tê-lo esvaziado do
veneno de suas negações”.7 De fato, o próprio filósofo diz: “na minha doutrina encontrará o idealismo e o realismo, o materialismo e o espiritualismo, o monismo, o
dualismo, o panteísmo, o monoteísmo, o politeísmo, o ateísmo [!] e até mesmo o
ceticismo [!!]”8. Não se trata de um ecletismo ou sincretismo anódino, mas da consciência de que “tudo pode ser erro e tudo pode ser verdade conforme se afirme de
maneira exclusiva ou se afirme como membro do todo”9.
O problema não é nunca o que se afirma, mas o exclusivismo. Uma
imagem recorrente na obra de Soloviev é a analogia do sol. Um cego, um homem que
vê, um sujeito com um telescópio, e um astrônomo têm experiências diferentes do sol.
Se tudo o que o cego sabe sobre o sol é o seu calor, para o astrônomo essa é só uma
parte de uma experiência maior. Mas acaso se segue que a experiência do cego é
menos verdadeira por causa disso? Todo o problema seria se o cego quisesse negar a
experiência dos outros afirmando que tudo o que se pode saber sobre o sol é que ele é
quente. É desse tipo de exclusivismo que Soloviev tenta a todo custo liberar a
inteligência humana. “Creio que é incontestável que todo erro envolve uma verdade
certa e não é senão a alteração mais ou menos profunda desta verdade; esta verdade
dá ao erro a sua solidez, o engaja, o torna perigoso e é por esta verdade que o erro
pode ser estudado como convém, pode ser apreciado e definitivamente vencido”10. Qual é a doutrina de Soloviev? “Posso responder esta questão rápida e
definitivamente: não tenho meu próprio ensinamento; mas em vista das falsificações
perigosas do cristianismo, considero meu dever explicar a ideia básica do cristianismo
de vários aspectos, de várias formas... a ideia do Reino de Deus como a plena
realização da vida humana, não só da individual, mas também da social e política,
unida a Cristo com a plenitude da Divindade”11. Sua titânica capacidade teorética, aliada a uma fé ardente e a uma virtude que não se pode qualificar senão,
candidamente, como pura e simples generosidade, fizeram de sua obra “a criação
especulativa mais universal da Idade Moderna”, e “indiscutivelmente a justificação
7 VON BALTHASAR, H. U., 1976: 266. 8 SOLOVIEV, V., 1998a: 178.
mais profunda e a filosofia mais vasta do Cristianismo total dos novos tempos” (E.
Keuchel)12. “A hermenêutica do cristianismo” diz Giusepe Ricconda, “se acompanha em Soloviev de fato à ideia de uma filosofia cristã, ao esforço (vivo de resto no
ambiente cultural de seu tempo) de efetuar uma síntese integral de religião, filosofia e
ciência. Soloviev formulou diversas vezes claramente a tarefa à qual pretendia
dedicar-se ao início de sua carreira filosófica como sendo a da restauração do
cristianismo ‘com introduzir o conteúdo eterno em um novo quadro adequado, ou
seja, absolutamente racional’”13.
Assim, instalado precisamente no ponto de intersecção entre o Oriente e o
Ocidente, de um lado, e a modernidade e a nossa era (pós-modernidade, se quiserem),
de outro, Vladimir Soloviev escreve, num período de pouco mais de 25 anos, sua obra
monumental. “Revolução francesa, idealismo alemão, esquerda hegeliana com
Feuerbach e Marx, positivismo de Comte, evolução de Darwin, super-homem de
Nietzsche, pessimismo à moda de Schopenhauer com sua forma definitiva em Eduard
von Hartmann. O diálogo entre as confissões religiosas se abre a uma perspectiva
mundial e se converte em diálogo entre Oriente e Ocidente, entre Bizâncio-Moscou e
Roma. O grande cisma volta a ser imediatamente atual e se revisa seu sentido
teológico”, assim descreve Balthasar a massa de informações que se acumulava como
uma onda diante do filósofo russo. “A uma altura jamais alcançada depois de Hegel e
com uma enorme agudeza se volta a pensar de modo universal, ‘católico’, com uma
clarividência espiritual quase alucinante, que, como em uma paisagem varrida pelos
ventos marítimos, faz perceptíveis todas as coisas nitidamente perfiladas e
coordenadas entre si em proporção e escala”14.
Poderíamos continuar acumulando citações. Mas é hora de concluir esta
introdução já bastante longa indicando os passos que estamos por seguir.
Se o problema de Soloviev é realizar a “síntese integral de religião,
filosofia e ciência”, então é preciso respeitar estes diversos campos do saber humano
na sua relativa autonomia. Ao mesmo tempo, é preciso manter a visão de conjunto.
Tudo está centrado na ideia de divino-humanidade. “Se Deus se fez homem em
12 VON BALTHASAR, H. U., 1976: 287. 13 SOLOVIEV, V., 1996: IX.
Cristo, o Reino de Deus não irrompe unilateralmente do alto ou de fora, mas floresce
e cresce não menos, e por necessidade, de dentro”15. É este duplo movimento que queremos acompanhar.
Para tanto, dividi o percurso em três dimensões epistemológicas: a
ciência positiva, a filosofia e a teologia. À medida que avançarmos, deverá vir à luz
naturalmente o que nos interessa investigar: os pontos de convergência e divergência
entre a ortodoxia cristã e a modernidade; em que medida são conciliáveis, se separam,
se antagonizam.
Em primeiro lugar, tentarei buscar as bases científicas sobre as quais se
apoia o pensamento de Soloviev, e que, dada a sua empiricidade, deveriam ser
aceitáveis por todos. Em outras palavras, o interesse neste Primeiro Capítulo é pelos
fatos. Em dois campos: primeiro os fatos sobre o homem em geral, isto é, a
antropologia de Soloviev, e, em segundo, os fatos sobre a história, isto é, a sua
historiografia. Com isso buscaremos entender como Soloviev vê o homem e como vê
o seu passado.
Em seguida, no Segundo Capítulo, entraremos no domínio propriamente
filosófico, isto é, investigaremos como Soloviev avalia, a partir de sua especulação
racional, a condição humana e seu desenvolvimento histórico.
No Terceiro Capítulo, veremos propriamente aquilo em que ele crê, isto é,
a sua teologia, em outras palavras, como ele vê o mundo à luz da Revelação tal como
entendida pela ortodoxia cristã.
No Quarto Capítulo, que servirá como conclusão, nos dedicaremos àquele
que é o testamento espiritual de Soloviev, seu derradeiro livro e sua última palavra:
Os três diálogos e o Conto do Anticristo. Lá está a sua visão do futuro, isto é, a sua
escatologia. Lá encontraremos os pontos definitivos de convergência e divergência
entre o ideário moderno e a visão da ortodoxia cristã.