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Compaixão e solidariedade

INTRODUÇÃO O PROBLEMA DA NATUREZA HUMANA.

1.1. Genealogia da moral: pudor, compaixão e reverência

1.1.2. Compaixão e solidariedade

“Se o sentimento de pudor”, insiste Soloviev, “diferencia o homem do resto da natureza, e o distingue dos outros animais, o sentimento de compaixão, ao contrário, o une a todo o mundo dos seres vivos; e isto por um duplo aspecto: primeiro porque o homem o compartilha com todos os seres vivos, e, segundo, porque todos os seres vivos podem e devem ser objeto deste sentimento da parte do homem”37. Se por este primeiro aspecto o homem é semelhante aos outros animais, pelo segundo, pela sua capacidade de expansão da compaixão aos semelhantes mais distantes e mesmo a todos os semelhantes – isto é, pela sua capacidade de universalização da compaixão através de um esforço consciente –, ele se diferencia de                                                                                                                 35  SOLOVIEV, V., 1939: 58.   36 SOLOVIEV, V., 1939: 60. 37 SOLOVIEV, V., 1939: 64.

todos os animais, fazendo-se único. “Como convém a um princípio moral fundamental, o sentimento da compaixão não tem limites externos à sua aplicação. Partindo do círculo estreito do amor maternal, potentemente desenvolvido nos animais superiores, ele pode, no homem, alargar-se progressivamente, passar da família ao clã e à tribo, à comunidade cívica, a toda a nação, a toda humanidade, até envolver finalmente tudo aquilo que há no universo”38.

É preciso no entanto evitar um idealismo fácil. O sentimento de unidade ou solidariedade universal não é de forma alguma um dado imediato da consciência. O dado é só o sentimento espontâneo de compaixão, e isso numa esfera bastante reduzida: em princípio aos familiares, sobretudo no sentimento da mãe pela sua prole. Nesta primeira e mais estreita dimensão o sentimento de compaixão é um dado natural e, ao contrário do pudor, ele é, como vimos, explicável pelas simples condições do processo de seleção natural. Que ante o sofrimento de sua prole ou de um membro de sua família ou clã um homem sofra e reaja buscando a supressão deste sofrimento, não há nada de gratuito ou misterioso. É do interesse da espécie que ele preserve os portadores de seus genes, e é de seu interesse individual proteger àqueles que lhe estão próximos e que podem colaborar na retaliação a outros grupos hostis.

Assim, para Soloviev, a perplexidade ante a compaixão por parte daquele filósofo que a pôs como base única da moralidade, não se sustenta. Com efeito, Schopenhauer perguntava-se: “Como é possível que um sofrimento que não é o meu, que não me atinja a mim mesmo, torne-se um motivo imediato de minha ação na mesma medida de meu próprio sofrimento?” E prossegue: “Isto pressupõe que a um certo grau eu me identifiquei com outro e que a barreira entre o eu e o não eu foi derrubada. [...] Trata-se de um fenômeno altamente misterioso – é um verdadeiro mistério da ética, pois é algo do qual a razão não pode dar conta diretamente”39. Soloviev estima que por trás desta argumentação há um abuso de retórica. Os sujeitos são entendidos por Schopenhauer como absolutamente distintos ao mesmo tempo em que pela compaixão se identificam imediatamente. Se assim fosse, seria efetivamente um fato altamente misterioso. Mas em verdade tal distinção absoluta não existe, nem tampouco uma identificação imediata entre aquele que sofre e aquele que se compadece. “Tudo aquilo que existe e, em particular, todos os seres vivos”, diz Soloviev, “são ligados entre si pelo fato da existência simultânea em um só e mesmo                                                                                                                

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mundo e pela unidade de sua origem; todos vêm da mesma mãe comum, a natureza, da qual eles constituem uma parte; em parte alguma se encontra esta ‘distinção absoluta’ da qual fala Schopenhauer. A conexão orgânica de todos os seres – partes de um único todo – é um dado da experiência e não somente uma ideia especulativa; segue-se que a expressão psicológica desta conexão – a participação interior de um ser no sofrimento dos outros, a compaixão – pode ser compreendida, mesmo do ponto de vista empírico, como a expressão da solidariedade natural e evidente de tudo aquilo que existe”40. De fato, aquilo que parece estranho e inexplicável é antes a separação subjetiva dos seres objetivamente unidos. É este egoísmo interno e não uma simpatia mútua entre diferentes partes de uma mesma natureza que é na verdade misterioso e enigmático no mais alto grau. Um distinção absoluta entre os seres não existe, nem pode existir como fato.

Tampouco a conexão íntima que um ser vivo sente por outro no sentimento de compaixão se dá por uma identificação imediata. Se sinto compaixão pelo sofrimento de outra pessoa, digamos por sua dor de cabeça, isso não significa que passo a experimentar esta dor. Ante as manifestações corporais ou verbais da dor do outro eu re-presento a sua aflição recolhendo em minha memória impressões análogas. Assim, para Soloviev, a supressão de todas as barreiras entre o eu e o não

eu de que fala Schopenhauer, a identificação imediata entre um e outro, é somente

uma expressão eloquente para um sentimento mediado pela minha representação. Qual é, então, a essência da compaixão? Certamente não é a identificação imediata de si mesmo a outro, mas sim o re-conhecimento da dignidade inerente ao outro, de seu direito à existência e a uma felicidade possível. Tecnicamente a compaixão promove antes uma igualização ou aproximação do que uma

identificação. De fato, não nos tornamos idênticos a alguém que sofre por nos

compadecermos de seu sofrimento, mas nos re-conhecemos como semelhantes ou iguais em nossa capacidade de sofrer. Pois bem, assim como o sentimento espontâneo de pudor é elevado pela reflexão consciente à ideia do ascetismo, o sentimento dado de compaixão é elevado a uma ideia clara e distinta: a ideia do altruísmo ou

solidariedade. “O conteúdo intelectual (a ideia) da compaixão, tomada em sua

universalidade, independentemente dos estados psicológicos subjetivos nos quais se manifesta, (i.e., considerada logicamente e não psicologicamente), é a verdade e a                                                                                                                

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justiça. A verdade, é que outros seres são semelhantes a mim; e a justiça é que eu me comporte com eles como comigo mesmo”41.

A falta deste reconhecimento, ou seja, a falta de compaixão, quando se torna um hábito reiterado é aquilo que chamamos normalmente egoísmo. E embora em sua forma absoluta (o puro egoísmo) ele não exista de fato entre os seres humanos, uma vez que a nossa vida é sempre condicionada por uma solidariedade mais ou menos interessada, é necessário, para compreendê-lo, fazer um exercício de abstração pelo qual se o conceba em sua forma incondicional. “Eis em que consiste: uma oposição absoluta, um abismo infranqueável entre mim mesmo e os outros seres; eu, eu sou tudo para mim mesmo e devo ser tudo para os outros, mas os outros por si mesmos não são nada e não se tornam algo senão na medida em que servem de meio para mim; minha vida e minha felicidade são um fim em si, a vida e a felicidade dos outros são somente meios para atender aos meus fins, meios necessários para que eu possa me afirmar a mim mesmo; eu, o centro, do qual todo universo não é mais do que a circunferência”42. Um tal egoísmo absoluto jamais foi formulado e afirmado sinceramente e abertamente por ninguém, mas não há dúvida de que esta tendência à autoafirmação se encontra na raiz de nossa vida natural não menos do que a compaixão. Quando um indivíduo se compadece de outros indivíduos de sua família, ele promove, como se disse, uma igualização de seu eu com outros eus – ele os inclui, por assim dizer, na esfera de seu próprio eu; uma experiência comum a todo homem. Mas isso não impede que ele seja hostil a tudo aquilo que está fora deste círculo, isto é, que veja em tudo isso um meio para a conservação e a felicidade, por exemplo, de sua família. Assim, tal como o homem pode estender sua compaixão a diversos agrupamentos, cada vez mais largos, ele pode igualmente expandir seu egoísmo. Uma pessoa pode estender seu eu, por meio da compaixão, a toda uma determinada nação – e pode igualmente estender seu egoísmo a todas as outras.

Para Soloviev uma análise racional do princípio do egoísmo revela que ele é não só moralmente condenável, mas teoreticamente falso ou irreal, na medida em que postula um fim irrealizável em si. O egoísmo afirma uma oposição interior entre si mesmo (incluindo tudo aquilo que considera seu) e todas as outras coisas. Mas é claro que tal oposição absoluta, uma separação ou distinção total entre si e todas as coisas não existe na realidade e não pode existir, pois em tudo aquilo que existe há                                                                                                                

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uma interdependência recíproca. Por outro lado, aquilo que é dado no sentimento de compaixão – ou seja, a individualidade do outro enquanto digna de existir e ser cuidada, tanto quanto a do sujeito que se compadece – afirma um dado de fato, isto é, que os outros seres são centros autônomos de existência e forças vivas exatamente como ele. Desta afirmação, à qual dá testemunho o nosso sentimento de compaixão concreta por nossos familiares e pessoas mais próximas, a razão deduz a norma ou princípio de orientação maximal em termos do nosso relacionamento com os outros seres: “comporta-te em relação aos outros como gostarias que se comportassem em

relação a ti”43.

Este, que pode ser denominado o princípio do altruísmo ou solidariedade, em oposição as forças vivas do egoísmo, se divide em dois princípios, um minimal (negativo) e um maximal (positivo). Se tenho o mínimo de consideração por alguém, a primeira coisa que cuido e de não ofendê-lo, isto é, não lhe causar sofrimento. Em segundo lugar, se se trata de uma pessoa particularmente cara que sofre, procuro libertá-la deste sofrimento, ajudá-la a vencê-lo. Daí decorrem as duas normas do altruísmo, uma de mínima realização e uma de máxima realização: (1) não fazer aos

outros aquilo que não gostarias que fizessem a ti; e (2) fazer aos outros tudo aquilo que gostarias que te fizessem a ti. Combinadas, as duas regras exprimem-se assim: não ofenda ninguém e ajuda a todo mundo, na medida das tuas possibilidades. A

primeira regra negativa é aquilo que se chama normalmente “justiça”, e a segunda “clemência” ou “caridade”. Soloviev estima que entre estes dois graus do altruísmo, o mínimo e o máximo, há evidentemente uma distinção, mas não pode haver

contradição. É importante registrar esta polarização na esfera de relacionamento entre

o indivíduo e seus semelhantes, pois estes dois limites, o mínimo e o máximo, serão os elementos fundantes na distinção entre a justiça legal (que estabelece o mínimo permitido) e a moralidade (que indica o máximo desejável), ou seja, entre a vida

política e a vida moral, espiritual ou religiosa da sociedade.

Concluindo, o ideal do altruísmo, como máxima realização da relação entre o indivíduo e seus semelhantes (o que, no limite, pode ser estendido a toda criatura), parte do princípio psicológico da compaixão (experimentada pelos semelhantes) e se elabora pelo princípio ontológico da igualdade entre si e os outros indivíduos. Trata-se não de uma igualdade material e qualitativa entre os indivíduos,                                                                                                                

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coisa que não existe, já que cada um traz especificidades de sua individualidade, mas sim de uma igualdade de condições de existência e desenvolvimento. De fato, explica Soloviev, trata-se “simplesmente do direito igual de existir e de desenvolver as potencialidades favoráveis de sua natureza. Um selvagem papuásio tem tanto direito de existir e de se desenvolver em seu próprio domínio quanto Francisco de Assis ou Goethe nos seus”44. Abstraídas todas as particularidades concretas, deverá subsistir algo de idêntico e absoluto, a importância de cada pessoa como um fim em si, ou seja, sua dignidade como algo que não pode ser simplesmente um meio para os fins de outrem.