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REVELAÇÃO, MISSÃO E DOM DE CRISTO

2. DEUS ENCARNADO

Como é possível uma encarnação, isto é, a união da Divindade com a Humanidade não só em espírito mas na carne e no sangue? Como se dá esta união? Por que no homem? E por que e como se dá no indivíduo Jesus de Nazaré?

A encarnação é certamente inconcebível se se parte de um deísmo ou

monoteísmo abstrato (como no racionalismo iluminista) ou fundamentalista (como no

islã), os quais supõem um Deus onipotente mas absolutamente separado do mundo e do homem. E é igualmente inconcebível se se move ao polo simetricamente oposto,                                                                                                                

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SOLOVIEV, V., 2008b: 224.

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ao panteísmo, que representa Deus como o “todo universal”, sendo o homem e a natureza fenômenos ou modos de ser da única Substância, do Ser que é tudo: o Absoluto. Mas, segundo Soloviev, a concepção de Deus como absoluto e onipotente é, por definição, incompatível com ambas as possibilidades.

O termo “absoluto” (absolutum de absolvere), explica Soloviev, implica necessariamente dois elementos: antes de mais nada, a noção de liberdade; ab-soluto é aquilo que é “solto”, livre ou isolado em relação a algo. Em segundo lugar, absoluto sugere algo completo, pleno, acabado, perfeito. Na primeira definição, o Absoluto é definido negativamente, como isolado, solto de qualquer coisa, ou seja, é independente em relação a tudo aquilo que é finito, transitório, múltiplo, em uma palavra, ele é uno; e é também nada, porque não é alguma coisa. No segundo caso, o Absoluto é definido positivamente em relação a tudo, como aquilo no qual estão todas as coisas, que não pode ter nada fora de si, pois se assim fosse seria incompleto, limitado, finito. Neste segundo sentido, o Absoluto é tudo. Deste modo, a definição do Absoluto se sintetiza na noção tantas vezes citada por Soloviev de en kai pan, o um e tudo, ou unitotalidade177. “O absoluto é nada e tudo: é nada na medida em que não é alguma coisa, e tudo na medida em que não pode ser carente de qualquer coisa”178.

Assim, o panteísmo tem razão ao dizer que Deus é tudo, na medida em que Deus, para ser Deus, deve ser a força de tudo, ou seja, aquele de quem depende toda existência. Mas a falsidade desta concepção está naquilo que nega: a transcendência de Deus, isto é, sua liberdade e independência total em relação a tudo, de modo que a tendência de todo panteísmo, nolente volente, é conceber Deus como pura força ou energia, portanto como algo absolutamente indeterminado, em uma palavra, como nada. O deísmo monoteísta, por sua vez, afirma precisamente esta

independência total de Deus em relação ao mundo, sua soberania única: ele é o Uno.

Mas para isso separa completamente Deus e o mundo, fazendo de Deus uma realidade abstrata numa transcendência inacessível, e no fim inexplicável e incomunicável, em uma palavra, inumana – um Deus que o agnosticismo não tem qualquer dificuldade em ignorar e nem o ateísmo em negar; e com razão.

A solução de Soloviev, sempre buscando a máxima positividade possível de todos os pontos de vista e a superação de todo unilateralismo, é sugerir que no                                                                                                                

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homem, em toda criatura, em toda criação, em tudo o que existe enfim, há sempre algo que está fora de Deus e algo que está em Deus. O mundo inteiro está fora de Deus enquanto realidade material, mas, por outro lado, todas as coisas estão intimamente ligadas a Deus em sua vida interior. “Os ramos de uma árvore se cruzam e se intersectam entre si e os galhos e folhas se tocam de maneiras variadas em suas superfícies, mas estas mesma folhas e ramos, além das ditas relações exteriores, são ligadas interiormente por meio do tronco e das raízes comuns dos quais recebem igualmente os sucos vitais”179.

Pois bem, no homem individual Jesus não se encarna o Deus absolutamente imanente do panteísmo, porque este já está indistintamente encarnado em todas as coisas como força ou energia. Mas tampouco se encarna um Deus único e puramente transcendente a um mundo criado por ele “do nada”. Num Deus assim o homem pode crer; pode contemplá-lo ou obedecê-lo; mas nenhum homem pode ser esse Deus, não pode encarná-lo. O Deus Pai é absolutamente transcendente ao mundo, mas quem se encarna no mundo é o seu Verbo, o Logos de toda criação, o Filho por quem e para quem o mundo inteiro foi feito. Assim, “a encarnação não é algo miraculístico, ou seja, estranho a ordem geral do ser, mas é essencialmente ligada à toda a história do mundo e da humanidade, é algo que é preparado pela história e que é logicamente consequente à mesma. [...] A encarnação pessoal [do Verbo] em um homem indivíduo é simplesmente o último anel de um longa série de encarnações físicas e históricas; esta aparição de Deus na carne é somente uma teofania mais plena, perfeita, na série de outras teofanias incompletas, preparatórias, transfigurantes”; daí a fórmula expressa diversas vezes e de vário modo por Soloviev: “rumo ao homem tendia e aspirava toda a natureza, rumo ao Deus-homem se dirigia toda a história da humanidade”180. Por isso a verdadeira crença em Deus não só não exclui a crença no homem como a exige. Um antropomorfismo consequente de Deus é possível justamente na medida em que se crê num homem destinado desde o princípio ao teomorfismo pela graça de Deus.

A Revelação, portanto, ilumina e ressignifica plenamente a intuição antropológica de que todo homem se relaciona com aquilo que lhe é inferior, com aquilo que lhe é igual e com aquilo que lhe é superior. “O homem em geral é uma espécie de reunião da Divindade com a natureza material, e isso pressupõe nele três                                                                                                                

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elementos componentes: o divino, o material e o propriamente humano que liga os dois outros. O conjunto destes três elementos constitui o homem real, e o princípio propriamente humano é a razão (ratio), ou seja, a relação entre os outros dois”181.

Quando esta relação se dá em uma sujeição direta e imediata ao princípio divino temos aquilo que Soloviev chama o homem primordial ou protótipo da humanidade (Adam Kadmon); o homem enquanto pura potencialidade inconsciente ou ideia de Deus em Deus. Num segundo momento, o homem animal ou natural, vivendo em meio à existência material, se encontra totalmente identificado com ela e completamente separado de Deus, fora dele; aqui é o princípio humano que se encontra em ato consciente, enquanto Deus está na consciência humana enquanto pura potencialidade inconsciente, sendo projetado para fora do homem na natureza visível (politeísmo). O processo histórico determina finalmente o destaque do homem em relação à natureza (budismo), e a afirmação dele sobre ela; agora o homem, fora da natureza, expande por todos os lados a luz de sua racionalidade pela força de sua atividade moral (idealismo grego). Ao mesmo tempo, como vimos, esse mesmo processo histórico avança na forma de reencontros progressivos e dramáticos do homem com Deus; de sucessivos choques, interpenetrações e esclarecimentos entre eles (Israel). Nesta condição, seja a divindade seja a natureza são reconhecidas pelo homem como realidades distintas entre si; o homem está fora de um e de outro, acima da natureza e abaixo de Deus, e a vida humana consiste em harmonizar os dois princípios, o natural e o divino, submetendo livremente o primeiro ao segundo. Quando essa condição chega à plenitude, na união perfeita entre Deus e o homem em Cristo, temos o que Soloviev chama homem espiritual, que não exclui os dois primeiros graus de humanidade – o do Homem ideal, mas inexistente, e o do homem

real, mas animal –; ao contrário, ele os sintetiza: é o homem natural ideal.

Do conceito de homem espiritual, Soloviev conclui que a união entre Deus e a Criação, à qual tende o processo histórico universal, devia necessariamente realizar-se primeiro numa pessoa singular, porque esta união não pode ser uma relação inconsciente – de fato, uma união deste tipo existe entre toda e qualquer criatura e o Criador –, mas sim uma aliança ou comunhão plena de vontades, pela qual Deus e a criatura colaboram livremente. Em outras palavras a união perfeita não pode ser simplesmente mecânica, mas deve ser pessoal – voluntária, livre, consciente.                                                                                                                

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Assim, a unidade primordial entre Deus e o Homem (Adão) não poderia ser simplesmente restaurada, mas deveria ser conquistada, através de uma autonegação mútua do divino e do humano, servindo-se voluntariamente um ao outro, como na relação amorosa; relação essa que atinge a perfeição no Segundo Adão, o homem histórico Jesus Cristo.

Mas como compreender tudo isso? Por que, antes de mais nada, este “homem primordial” ou Adão deveria ser separado de Deus tornando-se homem animal ou natural? E por que este último por sua vez teria de atravessar milênios de uma história tormentosa e errática até a encarnação do Deus-homem, ou homem espiritual? Porque não ir de um ao outro imediatamente? Por que toda essa travessia pelo deserto, pelo mal, pela morte?

Que o mal transcende a condição humana, é algo que a razão e experiência admitem sem dificuldades. A investigação antropológica e filosófica não fizeram senão confirmar este fato. Vimo-lo sempre inerente tanto à natureza humana quanto à sua história. Mas se o mal transcende o mundo, há de ter uma causa transcendente. Se está presente em todo o mundo físico – pela lei da morte –, não pode, por necessidade lógica, ter uma causa física, mas sim meta-física. Se o conflito entre o bem e o mal é a substância mesma da história, ele deve ter uma origem pré- histórica. Agora é preciso buscar a sua origem na natureza da natureza humana, ou simplesmente na natureza da natureza; natureza esta que por definição é anterior à natureza humana e portanto está além dela, é sobre-natural. Estivemos percorrendo a história do homem até a encarnação do Deus-homem, mas agora precisamos ir àquilo que vem antes dela, à sua origem, sua pré-história.

Sem dúvida chegamos aqui aos mistérios bíblicos da Criação e da Queda que precedem a Encarnação, ambos afirmados dogmaticamente pela Igreja. Mas para Soloviev, todo mistério deve ser revelado, e a consciência cristã não pode, por definição (isto é, por sua confissão de uma fé divino-humana), se contentar com a fé na verdade divina expressa nos dogmas e nas Escrituras, mas deve penetrá-la com seu pensamento humano e explicá-la racionalmente.

É por este poder de penetração e explicação, mais do que qualquer outra coisa, que se justifica o fascínio de Soloviev pelas especulações gnósticas e cabalísticas, como também pela sua elaboração moderna em Böhme e Schelling, mas sobretudo pela gnose ortodoxa de Máximo o Confessor. Seria impraticável explorar com toda precisão e postura crítica o sistema teosófico de Soloviev sem nos

estendermos além do conveniente aqui. Mas tentarei fazer um resumo de suas ideias contando na medida do possível com algum conhecimento prévio do leitor sobre o tema. O sistema foi trabalhado longamente nas Lições sobre a divino-humanidade (1877-81), e também no diálogo não publicado Sophia (1876) e ainda nos Princípios

filosóficos do conhecimento integral (1877), obra que restou incompleta. Em 1889,

Soloviev o retomaria na Terceira Parte de A Rússia e a Igreja Universal, chamada “O princípio trinitário e sua aplicação social”, sem maiores alterações – exceto uma, importantíssima, que indicarei oportunamente. Baseio-me sobretudo nesta última para uma exposição sintetizada da teosofia da Criação e da Encarnação, ou, para utilizar a terminologia teológica, da extroversão ou extravasão da trindade imanente à trindade

econômica.

Crendo ou não na sua existência, ninguém tem dificuldades com a noção de um Deus uno. Mas que significa exatamente falar em unidade? Soloviev argumenta que há dois tipos unidade: a negativa e a positiva. A primeira é uma unidade pura, que se limita a excluir todo tipo de multiplicidade. Assim como Hegel falava de um “mau infinito”, um infinito puramente negativo, Soloviev chama a esta unidade “má unidade” (unidade “morta”, “estéril”). Mas há também a unidade “autêntica”, que não se opõe à pluralidade, mas, ao contrário, afirma-a em cada um de seus elementos integrando-os em um único todo: um mundo. É a este tipo de unidade que o primeiro artigo do Credo cristão se refere ao falar em unum Deum Patrem

Omnipotentem.

Mas Deus, por definição, não é somente uno, é também vivo. Para Soloviev, a ideia de ser vivo implica necessariamente uma unidade, uma dualidade e uma trindade. Unidade porque é um ser. Dualidade porque todo ser é, e é algo, ou seja, é singular e diferente de todos os outros, único, tendo portanto uma objetividade determinada ou essência singular. Assim, as duas categorias fundamentais de todo ser são a sua existência, enquanto sujeito concreto, e a sua essência objetiva, ou ideia. A

trindade enfim deriva justamente da tríplice relação possível entre a existência e a

essência a partir do momento em que o sujeito vivo se toma a si mesmo por objeto. Assim, em primeiro lugar, a essência está no sujeito existente enquanto sua

substância íntima; em segundo lugar, esta essência se manifesta exteriormente ao

em terceiro lugar, o sujeito percebe esta mesma manifestação, isto é, sente a própria essência tal como manifestada por ele em sua ação.

Se Deus é, é vivo, e não só estas três categorias se aplicam a Ele, como, por definição, se aplicam de forma plena e absoluta, isto é, independentemente da relação com qualquer outro ser. Deus existe por si mesmo, age por si e para si mesmo, e sente a si mesmo, sem qualquer mediação e de maneira completa. Ele se relaciona exclusivamente com sua própria substância, sem interferência extrínseca. Esta substância, Deus “(1) a possui em si no ato primeiro (fato absoluto); (2) a possui para

si, manifestando-a ou produzindo-a por si no segundo ato (ação absoluta); e (3) a

possui no retorno a si, reencontrando, com o terceiro ato, a unidade perfeita do próprio ser e da própria manifestação (sentimento ou gozo absoluto)”182. Os três atos são expressões diversas mas equivalentes da única Divindade.

Não tendo relação com nada fora de si, o fato, a ação e o sentimento de Deus são, justamente, absolutos. Isso significa que em sua ação de si para si, Deus não revela só parte de si mesmo (tal como na nossa ação), mas revela tudo de si mesmo a si mesmo. Em sua re-produção ou re-presentação de si para si é toda a divindade que se exterioriza e se manifesta, de modo que o produtor é perfeitamente

idêntico ao seu produto. Por este motivo, a única diferença entre um e outro está na

sua relação e não em suas substâncias, que são idênticas, isto é, são uma única e mesma substância. E como toda a divindade está contida na sua reprodução, o seu sentimento de si tampouco é parcial, mas é a percepção completa da existência e da ação divinas. Nele, o produtor sente toda a sua ação, isto é, o seu produto, assim como este último sente toda a existência de seu produtor. Assim, “Deus enquanto sensiente

procede de si enquanto produtor e enquanto produto”183. E como este terceiro termo é completamente determinado pelos outros dois e por nada mais, segue-se que também ele é idêntico aos outros em tudo, exceto na sua relação com eles, ou seja, exceto pelo fato mesmo de que procede de ambos184.

Temos desta forma, três modos de existência de Deus; três hipóstases, ou

sujeitos divinos co-eternos, a saber, Deus como não-produzido e não-manifestado

                                                                                                                182 SOLOVIEV, V., 1989b: 174. 183 SOLOVIEV, V., 1989b: 174. 184

Evidentemente, quando se fala em fases ou momentos, está-se indicando não uma distinção

real, mas somente mental, feita a posteriori, uma vez que em se tratando de uma realidade

(mas produtor e manifestador); Deus como produto ou manifestação; e, finalmente, Deus enquanto sensiente da hipóstase produtora e da hipóstase produzida.

Sem dúvida, sob essa linguagem talvez exageradamente racionalista para o nosso gosto, o leitor já terá intuído a concepção trinitária “antropomórfica” entre Pai-Filho-Espírito Santo. Antropomórfica entre aspas, porque, se para o senso comum esta linguagem é uma metáfora para algo inominável, inconcebível ou inacreditável, do ponto de vista cristão se dá precisamente o contrário: a realidade natural destes termos é que é o reflexo de uma relação eterna e plena. Só o Pai é um verdadeiro “pai”, assim como o só o Filho é um verdadeiro “filho”, ao passo que pais e filhos no mundo natural são simples reproduções imperfeitas dos arquétipos supremos.

Pois bem, como o Pai se manifesta inteiramente no Filho e o Filho recebe

tudo do Pai, entre eles não pode haver uma diferença de essência; ela é absolutamente

idêntica para ambos. Por outro lado, há uma distinção absoluta entre um e outro quanto à existência, pelo fato mesmo de que tudo o que o Pai tem é dado ao Filho e de que tudo o que o Filho tem foi dado pelo Pai. Sendo absolutamente idênticos em sua

essência e absolutamente distintos em sua existência, a ação recíproca entre o Pai e o

Filho não pode ser senão um terceiro ato, um ato de união ou unificação a partir desta diferença primordial. E como esta unidade completa não pode ser representada nem pelo Pai (que tudo dá) e nem pelo Filho (que tudo recebe), necessariamente surge uma terceira hipóstase que procede do Pai e do Filho, e que, não procedendo de ninguém mais, é como eles absolutamente idêntica na sua essência e absolutamente distinta na sua existência. Existência essa cuja característica absolutamente única é justamente o fato de que ela procede do Pai e do Filho185.

Se uma vez dada a simples proposição “Deus é”, é logicamente necessário admitir estas três hipóstases, pela mesma necessidade lógica é impossível admitir outras. Se Deus não pode somente existir em si (pois se assim fosse não seria completo, não seria Deus) e por isso manifesta-se para si (na segunda hipóstase), a sua vida completa se realiza quando o produtor (o Pai) se reúne numa atividade recíproca e criativa com o seu produto (o Filho). Este proceder de parte a parte numa relação única e completa, cujo resultado é a terceira hipóstase (o Espírito), realiza                                                                                                                

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Eis a diferença, ou melhor dizendo, o acréscimo fundamental na teoria trinitária de Soloviev no fim da década de 80 em relação às obras juvenis da década de 70 – o Espírito que procede do Pai e também do Filho (filioque) –, cuja razão evidente foi a assimilação, por parte do ortodoxo Soloviev, da concepção católica (cf. SOLOVIEV, V., 1998a: 88-91; e SOLOVIEV, V., 1990: 164-169).

perfeitamente o desenvolvimento da única vida divina, na qual Deus é em si, age por si, sente a si e goza de si mesmo inteiramente.

Isto não significa que o Pai seja só aquele que é, e o Filho só o produto ou manifestação do Pai, ou que o Espírito seja só o sentimento, encontro ou gozo de ambos. Cada uma das três hipóstases ou pessoas possui a existência e a vida absolutas, e as possui de modo completo: mas somente as possui nos outros, através deles e com eles. Daí a diferença absoluta entre cada um, que está sempre nas

relações para com os outros, de modo que o Pai é por si, mas age sempre através do

Filho e para ele, e sente e goza sempre com o Filho no Espírito de ambos. O Filho, por sua vez, é, primordialmente mas não somente, a ação ou manifestação absoluta do Pai; ele tem também o sua existência em si, mas a existência que é dada pelo Pai; e tanto esta existência quanto este dom, ele sente em seu Espírito, que é também o Espírito do Pai. O Espírito Santo, por sua vez, possui tudo o que os outros possuem; possui a sua própria existência e a manifesta livremente, mas a possui somente enquanto ela procede dos dois outros e é manifestada a eles.

Por fim, se as três pessoas ou hipóstases divinas são absolutamente distintas umas das outras em razão das suas relações entre si, isto é, em razão de seu modo único de existência, não se pode falar por isso em três Deuses distintos, porque uma pessoa isolada e separada da outra não poderia ser o verdadeiro Deus. As três hipóstases são realmente distintas, mas essencialmente indivisíveis. Se representamos a Trindade como três seres separados, nota Soloviev, é somente pela insuficiência de nossa imaginação; mas isso nada prova contra a verdade da ideia racional.

Deus é, e portanto é uno. Mas todo ser que é, por um lado existe e, por outro, é algo. Vimos que a existência de Deus se traduz necessariamente em uma tríplice relação com a sua única essência, com aquilo que ele é. Deus existe enquanto ato puro ou primordial (o Pai), enquanto ação segunda ou manifestação (o Filho), e, finalmente, enquanto sentimento ou gozo de si, gozo do Pai em relação ao seu Filho e do Filho em relação ao Pai (o Espírito Santo). Isso revela como o Deus único existe. Mas o que Deus é?, qual é a sua essência?

Não podendo ser uma dentre tantas essências ou substâncias, a substância de Deus deve necessariamente ser entendida como a substância, ou seja, como aquilo

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO SÃO PAULO (páginas 179-199)