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Grécia: a visão da eternidade

INTRODUÇÃO O PROBLEMA DA NATUREZA HUMANA.

2. HISTÓRIA

2.4. Grécia: a visão da eternidade

O budismo nega qualquer valor absoluto às formas temporais e contingentes da vida humana natural e social, e nisso, segundo Soloviev, eleva a consciência ao nível de sua superioridade. Contudo, este nível permanece vazio e abstrato, sem qualquer conteúdo positivo. “‘Todas estas coisas são ilusão’, repete sem cessar – mas não vai além, pois para ele esta ilusão é tudo; ele não sabe com certeza aquilo que nega; daquilo que afirma, daquilo que vê como não sendo ilusório, não tem nenhuma ideia positiva, mas somente uma indicação negativa: o Nirvana é inação, imobilidade, calma, não-existência. O budismo só conhece aquilo que é inferior e ilusório; aquilo que é elevado e perfeito não conhece e se limita a exigi-lo: o Nirvana é somente um postulado, e não a ideia do bem absoluto; a ideia nos vêm dos gregos, não dos hindus”67. Assim, Soloviev estima que se no budismo a personalidade humana encontra sua significação absoluta na negação de uma existência indigna dela, no pensamento grego o valor absoluto da pessoa humana se justifica pela

afirmação de uma existência digna: a do mundo das ideias e das relações ideias.

O budismo e o idealismo grego têm em comum o mesmo pessimismo em relação à vida prática e a mesma concepção do fluxo da realidade material como ilusório, como sendo o domínio da não-existência. “Não ser, é o maior, o primeiro bem; o segundo, é que quando um homem vem à luz, retorne o mais rápido possível de onde veio”, diz o Édipo de Sófocles. Era evidente para a consciência helênica tanto quanto para a indiana que o homem não pode encontrar a satisfação que busca entregando-se aos apetites materiais. A filosofia grega exprimiu este sentimento moral em sentenças que se tornariam canônicas na história da filosofia: a vida sensual é uma prisão para o espírito; o corpo é o cárcere de alma; a verdadeira filosofia é o hábito de morrer etc.

Contudo, Soloviev entende que mesmo tendo assimilado esta concepção indiana sobre o mundo natural, o gênio grego não parou aí: o aspecto supra-sensual da existência lhe revelou seu conteúdo ideal, e em lugar do Nirvana indiano, os gregos                                                                                                                

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veriam o Cosmos das essências inteligíveis eternas (as ideias platônicas) ou o organismo da razão universal (nos estóicos). Aqui a significação absoluta da pessoa humana se afirma não só pela negação daquilo que é falso, inferior, mas pela participação intelectual àquilo que é superior: a realidade ideal. Nem o “sábio-monge” nem o “sábio-pensador” querem viver a vida da sensualidade, mas o segundo vive a vida do espírito pela participação no mundo das ideias puras. Daí a diferença radical entre o monismo hindu e o dualismo grego.

O budista como o idealista condenam a realidade natural como falsa. Mas enquanto para o budista ela é ilusão, porque todas as coisas, exceto a unidade absoluta e indistinta, são ilusão, para o idealista a condenação se dá porque essa realidade é refratária, opaca, resistente à norma ideal perfeita. O que ele condena na vida do mundo é a sua irracionalidade. Tal condenação já não é mais indiferente, ela comporta um elemento de desafio e de exigência, e, logo, provoca uma reação hostil daqueles que estão entregues à vida mundana.

E não obstante, segundo Soloviev, há nesse conflito algo de acidental. Sócrates, é verdade, recebeu da sociedade ateniense a taça de veneno. Mas seus discípulos puderam ensinar e debater livremente na Polis, sem que lhes sobreviesse uma perseguição sistemática. E o maior deles chegaria mesmo a esboçar uma revolução social na Sicília, com o auxílio de Dionísio de Siracusa, pela qual deveria ser instaurado o Estado ideal comandado pelos Reis-Filósofos.

O fato é que o idealismo helênico, transferindo seu centro de gravidade do mundo para o universo das ideias inteligíveis, tinha um caráter puramente intelectual, revelando-se assim impotente para transformar a realidade que ele condenava. Malgrado os melhores momentos da teoria moral e política platônica, é evidente, segundo Soloviev, que uma tal concepção de mundo não poderia ter pela organização da vida social – numa terra onde a verdade pode ser contemplada mas na qual não habita e não habitará – nada mais quem um interesse relativo. Se a verdadeira vida era concebida como contemplação intelectual, a atividade prática, no fim das contas, só poderia servir para criar as condições para que o intelecto se desenvolvesse antes de escapar definitivamente ao cárcere de seu corpo. Sócrates moribundo se regozijava de abandonar este mundo de aparências mentirosas para o reino daquilo que existe realmente; uma tal disposição de espírito, no fim das contas, exclui a atividade prática, e não por acaso seu gênio-guia jamais lhe dizia o que fazer, mas só aquilo do qual deveria se abster. Mas “se o mundo ideal é mais verdadeiro que o mundo

material, não pode ser impotente ante ele. Deve compenetrá-lo, vencê-lo interiormente e regenerá-lo. A luz inteligível do mundo superior deve transformar-se na vida moral e prática do mundo inferior; a vontade divina deve realizar-se na terra assim como no céu”68.

Assim, tal como no budismo monista, Soloviev verá no idealismo dualista uma verdade fundamental, mas incompleta, e que, tomada por completa, acaba igualmente por negar as condições da vida moral em sua tríplice dimensão. Antes de mais nada, as essências ideais, que são para o idealista a verdade absoluta, não podem ser objeto de um verdadeiro culto religioso, nem através de seu corpo mortal, que não se comunica com elas, nem por seu espírito imortal, que está ligado a elas de maneira demasiado íntima e que, na contemplação imediata, chega a uma igualdade completa com elas. A moralidade religiosa implica uma relação de interpenetração entre o superior e o inferior, mas o dualismo grego bloqueia esta interpenetração ao separar o espírito vivo (e estéril) do corpo material, mortal e fatalmente separado do divino. É verdade que Platão intuiu um mediador – eros – entre os dois reinos. Mas, segundo Soloviev, o próprio Platão, tendo indicado esta ponte, não foi capaz de atravessá-la nem de conduzir os outros por ela.

Tal como a religiosidade, o princípio moral de igualdade, a solidariedade, acaba por se tornar impraticável dentro de uma concepção de mundo que só enxerga duas categorias de existência separadas uma da outra: a material-ilusória e a verdadeira-ideal. Nesse caso, aquilo que é ilusório deve necessariamente sofrer e morrer, e não é digno de compaixão, ao passo que o verdadeiro, por essência, não pode sofrer e portanto não pode excitar a compaixão.

Por fim, um idealista consequente como Plotino, o maior dos discípulos de Platão, dirá que tem vergonha de possuir um corpo. Ora, tal sentimento não pode ter uma significação moral. Se alguém tem vergonha de sua animalidade, de ser dominado por forças inferiores, pode lutar contra elas, enfraquecer a carne e fortalecer o espírito na luta pelo domínio do corpo. Mas se alguém tem vergonha do próprio

corpo, se alguém o despreza como indigno de qualquer esforço, resta a esse indivíduo

ou suicidar-se, aniquilando a vida do corpo, ou não fazer absolutamente nada, abandonando-o à sua própria sorte. Um idealismo consequente, portanto, leva

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segundo Soloviev à negação da moralidade, e, logo, de um dos princípios fundamentais da vida humana.

Para Soloviev, a significação moral absoluta da personalidade humana exige para si a perfeição ou a plenitude da vida em todas as suas dimensões. “Esta exigência não é satisfeita, nem pela simples negação da imperfeição (como no budismo), nem pela simples participação ideal à perfeição (como no platonismo e todo idealismo); esta exigência só pode ser satisfeita pela presença real da perfeição

e pela sua realização no homem inteiro e na integralidade da vida humana”69. Pois bem, é exatamente isto o que promete o cristianismo, o qual, segundo Soloviev, formula definitivamente um universalismo pleno e positivo.