3 O EXERCÍCIO DA FUNÇÃO REGULATÓRIA E AS COMPETÊNCIAS DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
3.3 As competências das agências reguladoras
3.3.1 A competência normativa
3.3.1.2 Os Limites da competência normativa das agências reguladoras
Afirmamos acima que a função reguladora é uma das formas de intervenção do Estado na economia e sobre a economia, o que implica em reconhecer que as agências reguladoras possuem competência para expedir atos normativos tendentes
111 “PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL.TRANSPORTADOR-
REVENDEDOR-RETALHISTA (TRR). PORTARIA ANP 201/99. PROIBIÇAO DO TRANSPORTE E REVENDA DE GLP, GASOLINA E ÁLCOOL COMBUSTÍVEL. EXERCÍCIO DO PODER NORMATIVO CONFERIDO ÀS AGÊNCIAS REGULADORAS. LEGALIDADE.
1. Ação objetivando a declaração de ilegalidade da Portaria ANP 201/99, que proíbe o Transportador- Revendedor-Retalhista - TRR - de transportar e revender gás liquefeito de petróleo - GLP-, gasolina e álcool combustível.
2. A Lei 9.478/97 instituiu a Agência Nacional do Petróleo - ANP -, incumbindo-a de promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis (art. 8º).
3. Também constitui atribuição da ANP, nos termos do art. 56, caput e parágrafo único, do mesmo diploma legal, baixar normas sobre a habilitação dos interessados em efetuar qualquer modalidade de transporte de petróleo, seus derivados e gás natural, estabelecendo as condições para a autorização e para a transferência de sua titularidade, observado o atendimento aos requisitos de proteção ambiental e segurança de tráfego.
4. No exercício dessa prerrogativa, a ANP editou a Portaria 201/99 (atualmente revogada pela Resolução ANP 8/2007), proibindo o Transportador-Revendedor-Retalhista - TRR - de transportar e revender gás liquefeito de petróleo - GLP-, gasolina e álcool combustível. O ato acoimado de ilegal foi praticado nos limites da atribuição conferida à ANP, de baixar normas relativas ao armazenamento, transporte e revenda de combustíveis, nos moldes da Lei9.478/97.
5. "Ao contrário do que alguns advogam, trata-se do exercício de função administrativa, e não legislativa, ainda que seja genérica sua carga de aplicabilidade. Não há total inovação na ordem jurídica com a edição dos atos regulatórios das agências. Na verdade, foram as próprias leis disciplinadoras da regulação que, como visto, transferiram alguns vetores, de ordem técnica, para normatização pelas entidades especiais. " (CARVALHO FILHO, José dos Santos. "O Poder Normativo das Agências Reguladoras" / Alexandre Santos de Aragão, coordenador - Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006, págs. 81-85).
6. Recurso especial provido, para julgar improcedente o pedido formulado na inicial, com a consequente inversão dos ônus sucumbenciais.”
Disponível em: http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/6062164/recurso-especial-resp-1101040-pr- 2008-0237401-7/inteiro-teor-12198638, acesso em 18.3.2016.
a “regular” o setor e, ainda, que o princípio da legalidade baliza a extensão e o grau dessa competência para expedir ato normativo (horizontal e vertical).
Ou seja, para regular é preciso certa autonomia normativa ou suficiente carga de competência normativa, pois sem o poder de editar normas os entes deixam de ser considerados como “reguladores” para serem apenas “adjudicatórios”.112
Perscruta-se qual seria a abrangência da função reguladora das agências reguladoras e qual seria o limite da sua competência normativa.
A legislação não apontou claramente qual o limite dessa competência normativa, de modo que coube à doutrina a missão de traçar os seus contornos.
Sérgio Guerra comenta que as agências reguladoras têm função normativa “secundária”,113 alinhada com os preceitos constitucionais e obediente aos preceitos legais (standards), não incondicional ou geral. Na ordem decrescente da hierarquia das leis no ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição está no grau máximo. Abaixo dela se posicionam as leis complementares, as leis ordinárias, os decretos. Logo abaixo, os regulamentos, as instruções, as portarias e as resoluções os quais se incluem na modalidade de “atos normativos inferiores”,114 pois em virtude do princípio da legalidade, “têm caráter estritamente subordinado e dependente de lei”.115 Contudo, explica o autor, que o nosso sistema normativo, além das leis complementares, as leis ordinárias, os decretos, os regulamentos, instruções, as portarias e resoluções, há uma gama de valores que dão substância aos princípios, sendo que todos estão inseridos num contexto que forma o conjunto que é a ordem jurídica. Então, na resolução de um conflito, a solução deve ser buscada em todo o sistema, evitando “o reducionismos do pensamento catalogatório da hierarquia
112 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo
econômico. 3 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 337.
113 GUERRA, Sérgio. discricionariedade, regulação e reflexividade. 2 ed. rev. e ampl. Belo Horizonte:
Fórum, 2013, p. 170. É secundária porque visa á complementação das normas legais, com o objetivo de explicitá-las e de dar-lhes execução.
114 Ibidem, p. 166 115 Ibidem.
normativa e simplificado pela forma piramidal,”116 e estabelecendo “conexões de valor entre as normas”.117
Nesse sentido, editar ato normativo regulatório seria “a materialização de escolhas que busquem confrontar o problema a ser solucionado em face da Constituição e os bens e valores jurídicos que ali estariam conflitando, estabelecendo-se qual desses valores em conflito irá prevalecer”.118 Pode-se concluir, portanto, que desse modo não haveria qualquer “usurpação da função legiferante do Poder Legislativo, nem, tampouco, do poder regulamentar de atribuição precípua do Chefe do Poder Executivo.”119 Só há delegação quando faculta-se ao regulamento a inovação da lei – o que não parece ser o caso.120
É que as resoluções, portarias, deliberações, instruções, os regimentos¸ “não têm o mesmo alcance nem a mesma natureza que os regulamentos baixados pelo Chefe do Executivo.”121 Mesmo os regulamentos não podem contrariar a lei;; têm com ela uma relação de dependência, de modo que a contrariedade às suas disposições é vício que afeta a validade deles.122
Clèmerson Merlin Clève, faz interessante exame da atividade normativa do Poder Executivo no Brasil e do alcance dos regulamentos, destacando, em sua análise, os atos normativos das agências reguladoras que, segundo ele, têm diferente conotação jurídica.123 Sua abordagem parte da distinção entre regulamento em sentido lato e regulamento em sentido estrito, passando pela interpretação do artigo 84, IV e VI, da CF, cotejando-o com o parágrafo único do mesmo artigo, para concluir que é possível haver delegação de competência regulamentar;; esta não é exclusiva do Presidente da República.
116 GUERRA, Sérgio. Discricionariedade, regulação e reflexividade. 2 ed. rev. e ampl. Belo Horizonte:
Fórum, 2013, p. 167.
117 Ibidem. 118 Ibidem. 119 Ibidem, p. 169. 120 Ibidem.
121 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 28 ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 127. 122 CAETANO. Marcelo. Princípios fundamentais do Direito Adminitrativo. reimpr. da edicção
Brasileira de 1977, 2. reimpr. Portuguesa. Coimbra: Almedina, 2003, p. 84.
123 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Poder Normativo da Administração Pública. In BANDEIRA DE MELLO,
Celso Antonio;; FERRAZ, Sérgio;; ROCHA, Sílvio Luis Ferreira da;; SAAD, Amauri Feres. (Coords.). Direito Administrativo e Liberdade. Estudos em homenagem a Lúcia Valle de Figueiredo. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 231.
Segundo o autor, regulamento em sentido lato, “pode ser definido como qualquer ato normativo (geral e abstrato) emanado pelos órgãos da Administração Pública”.124 Pela regra geral do art. 84, IV e VI, da CF,125 somente o Chefe do Poder Executivo tem atribuição regulamentar geral, vez que só a ele é permitido, no exercício da função administrativa, editar regulamento em sentido estrito, assim considerado aquele expedido para fiel execução da lei (inciso IV) ou para dispor sobre a organização da Administração Pública (inciso VI). Essas atribuições são, em princípio, indelegáveis. Entretanto, o parágrafo único do art. 84,126 autoriza a delegação das atribuições constantes dos incisos VI, XII e XXV do mesmo artigo, de modo que a exceção confirma a regra.
Nesse passo, conclui que as agências reguladoras podem emanar regulamento em sentido lato, com a ressalva de que elas têm a seguinte peculiaridade:
Como se sabe, a administração emana atos normativos com o objetivo de, com incidência meramente doméstica, estabelecer orientações sobre o modo como sua competência haverá de ser exercida. A situação dos regulamentos (em sentido amplo) introduzidos pelas agências reguladoras é um pouco diferente. Tratando-se de regulamentos setoriais, o espaço de atuação normativa das agências, definido pelo legislador, em função de autorização constitucional inerente ao modelo, manifestar-se-á na forma do que dispuser a lei em cada caso, retirando-se do Presidente da República a oportunidade de dispor sobre as matérias conferidas à gestão reguladora. Nessa situação, não há motivo para falar propriamente em hierarquia, mas antes em espaços de atuação normativa, lembrando sempre que a competência reguladora não se circunscreve à dimensão normativa (ou regulamentar). Ou seja, se é certo que o atuar normativo da agência reside no campo a regular delimitado pelo Legislador, não é menos certo que, por decorrência natural da adoção do modelo, nesse campo nada tem a autoridade presidencial a dizer. É que não há lei para o Presidente
124 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Poder Normativo da Administração Pública. In BANDEIRA DE MELLO,
Celso Antonio;; FERRAZ, Sérgio;; ROCHA, Sílvio Luis Ferreira da;; SAAD, Amauri Feres. (Coords.). Direito Administrativo e Liberdade. Estudos em homenagem a Lúcia Valle de Figueiredo. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 231.
125 Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: IV - Sancionar, promulgar e fazer
publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;; VI – dispor, mediante decreto, sobre: a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;; extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;;
126 Parágrafo único. O Presidente da República poderá delegar as atribuições mencionadas nos
incisos VI, XII e XXV, primeira parte, aos Ministérios de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações.
regulamentar, já que tal tarefa foi, pelo legislador, em virtude de autorização constitucional, conferida à agência (grifo meu). 127
Portanto, o regulamento da agência não é autônomo (já que depende de lei) e “nem se equipara à lei (estando antes subordinado a ela)”.128
Celso Antônio Bandeira de Mello, leciona que em atenção ao princípio da legalidade e à consequente vedação a que atos inferiores inovem inicialmente na ordem jurídica, as agências reguladoras poderão expedir atos normativos sob “aspectos estritamente técnicos, que, estes sim, podem, na forma da lei, provir de providências subalternas”.129 Afora isto, quando suas disposições se dirigirem a concessionários ou permissionários de serviço público, poderão também expedir as normas e determinações da alçada do poder concedente. “Em suma: cabe-lhes expedir normas que se encontrem abrangidas pelo campo da chamada ‘supremacia especial’.”130
O Supremo Tribunal Federal (STF) acolhe o entendimento segundo o qual as agências reguladoras são dotadas de poder regulamentar, mas vem traçando em seus julgados os limites dessa atribuição, rejeitando claramente o poder de editar regulamentos autônomo. 131 O Superior Tribunal de Justiça (STJ) igualmente
127 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Poder Normativo da Administração Pública. In BANDEIRA DE MELLO,
Celso Antonio;; FERRAZ, Sérgio;; ROCHA, Sílvio Luis Ferreira da;; SAAD, Amauri Feres. (Coords.). Direito Administrativo e Liberdade. Estudos em homenagem a Lúcia Valle de Figueiredo. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 233.
128 Ibidem.
129 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 31 ed., rev. e atual. São
Paulo: Malheiros, 2014, p.176.
130 Ibidem, p. 177.
131 Confira-se o seguinte julgado: ADI 4093/SP, Relator(a) Min. ROSA WEBER
Julgamento: 24/09/2014. DJe-203 DIVULG 16-10-2014 PUBLIC 17-10-2014 , cuja ementa é a seguinte: EMENTA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PROPOSTA PELO GOVERNADOR DO ESTADO DE SÃO PAULO. LEI ESTADUAL Nº 12.623/2007. DISCIPLINA DO COMÉRICIO DE ARTIGOS DE CONVENIÊNCIA EM FARMÁCIAS E DROGARIAS. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DA UNIÃO. IMPROCEDÊNCIA. A Lei Federal 5.991/73, ao dispor sobre o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, destinou a farmácias e drogarias a exclusividade na comercialização de tais produtos sem proibir, contudo, a oferta de artigos de conveniência. A mera disciplina acerca dos produtos de conveniência que também podem ser comercializados em tais estabelecimentos não extrapola a competência supletiva estadual. O Plenário desta Corte já enfrentou a questão ao julgamento de ações diretas de inconstitucionalidade propostas pelo Procurador-Geral da República contra diversas leis estaduais - que também disciplinavam a comercialização de artigos de conveniência em farmácias e drogarias-, concluindo pela constitucionalidade das normas impugnadas, seja pela natureza – comércio local-, seja pelo legítimo exercício da competência suplementar dos legisladores estaduais no campo da
reconhece o poder normativo das agências e vem rejeitando, especialmente, as disposições regulamentares que restrinjam direitos assegurados em lei aos usuários e/ou consumidores.