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O Tempo no Espaço Doméstico e Familiar

4.4 A perceção do tempo

A exposição que realizámos até este ponto remete, por diversas vezes, para o conceito de “perceção” do tempo. Deve assumir-se o inter-condicionamento entre os processos e as dinâmicas sociais e institucionais e os processos mentais de entendimento do mundo. Há, todavia, necessidade de precisar que neste estudo interessa incidir particularmente na operatividade das representações sociais sobre o tempo, enquanto sistemas de classificação social enraizados nas relações sociais e nos seus marcadores de poder e de autoridade. Interessam-nos também os processos e as construções sociais do tempo, atendendo ao efeito macro histórico sobre os hábitos, os costumes e os traços culturais das populações. A perceção do tempo não sendo, por isso, um objeto central neste estudo, só importa porque nos permite entender que, para além dos processos socialmente condicionados e explicáveis dirigidos a um conjunto nuclear de variáveis, entre as quais o sexo, a idade, a classe e a profissão, existem processos e mecanismos de foro mental, única e previamente analisáveis em sede psicofisiológica.

Os estudos específicos sobre a perceção do tempo são vastos, recolhendo especial interesse por parte da psiquiatria. Interessa-nos chamá-los aqui unicamente para dar consistência às conclusões a que chegamos e que apontam no sentido da existência atual de um sentimento generalizado de

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falta de tempo, de pressão de tempo ou de paragem do tempo. Damásio (2000) esclarece que a ausência da noção do tempo (e do espaço) é um indício de patologia psíquica grave. O intelecto não percebe o tempo, se não na passagem de eventos que registam um determinada ordem. Embora os processos percetivos interatuem com o meio, são antes de tudo, processos psíquicos internos ao indivíduo, cuja existência se define pela capacidade de se situar no tempo, mesmo que não haja qualquer noção sobre instrumentos de medição do tempo e de valor do tempo. Os estudos genéticos, psicológicos e psiquiátricos ainda não chegaram a conclusões definitivas, mas nos últimos anos tem-se avançado na argumentação da existência de características inatas distintas na composição orgânica do cérebro e da fisiologia masculina e feminina. Estes estudos põem-se a par de outros anteriores que vincaram a existência de diferenças estruturais em função da idade (Piaget 1946; Fraisse 1967) que, tal como dissemos, é tanto uma variável biológica como sociológica, porque a sociedade atua no condicionamento do comportamento esperado de cada indivíduo (se homem ou se mulher).

Piaget (1946) afirmava que a relação com a “passagem” do tempo é diferencial, conforme a idade do ser humano: a impressão que o tempo passa depressa escasseia, aumenta conforme a idade, à medida que o indivíduo se aproxima da morte. A perceção do tempo reside, fundamentalmente, no entendimento da duração (estática e dinâmica de uma sequência de eventos); do antes e depois (de); e da ordem ou sequência de eventos e sua repetição. Neste ponto, a perceção do tempo impõe-se como objeto na fenomenologia que entende o tempo sobretudo como temporalidade e propõe uma série de processos subjetivos que dirigem a situação do indivíduo no mundo da vida quotidiana, a partir da auto-perceção do passado e do futuro como horizontes explicativos e incentivadores da ação.

O que os estudos sobre o stress, a depressão e outros derivados patológicos tidos como caraterísticos das sociedades contemporâneas vêm notando são as formas de inter-relação entre os processos sociais e as exigências sociais e os mecanismos internos de regulação da perceção da passagem do tempo. Globalmente, podemos afirmar que o aumento da densidade temporal dos fenómenos e dos eventos sociais e das suas exigências e estímulos nos

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indivíduos penetra os processos cognitivos individuais, gerando comportamentos e atitudes no tempo com carácter patológico ou quase (como acontece nos casos de burnout).

Machado Pais (2011) conclui que a vida atual, urbana e sujeita a ritmos tecnológicos está envolta em fenómenos de pressão e compressão do tempo que passam do espaço público para o domínio privado e íntimo das relações sociais. Mesmo assim, o autor distingue estas, que são caraterísticas dos tempos sociais, modelados pelos tempos económicos e financeiros e manifestos em estruturas e instrumentos objetivos, das dimensões “intrínsecas” ao tempo como fluxo, passagem e necessariamente inscrito em todos os atos e ações sociais. O autor escreve que:

“Os fenómenos psíquicos não se explicam necessariamente a si mesmos. E, muito menos, explicarão os fenómenos sociais, como aconteceria caso se sustentasse que as guerras são causadas por um instinto de morte ou que o sistema económico se baseia em tendências sexuais sadomasoquistas. A cultura não é um simples produto de tendências biológicas reprimidas ou sublimadas. A neurose urbana existe porque vivemos algemados a relógios, havendo uma tendência para subjugar a vida ao poder da cronometria. Todavia, a vida fui através de várias dimensões temporais” (Pais 2011 66). O excerto expressa, em primeiro lugar, não a distinção entre as dimensões objetivas e as mais subjetivas do tempo, mas a interdependência entre ambas e hoje, a relativa submissão dos tempos internos, internacionais e subjetivos aos primeiros. Com efeito, ao avaliarmos os usos e as perceções do tempo, lidamos com uma realidade dinâmica. Isto é, com processos sociais, biológicos e biográficos que atravessam o quotidiano e se posicionam ao nível das políticas e dos modelos de regulação do tempo. E, na Europa, concretamente, estes figuram intimamente ligados à regulação dos tempos de trabalho, por sua vez associados aos modelos de governação dos sistemas de proteção social, nas suas múltiplas formas e dificuldades de estruturação.

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