• Nenhum resultado encontrado

Problemática: Tempo, Tecnologia e Género

1.4 Considerações finais

Este capítulo teve como objetivo a apresentação do estado da arte relativamente aos estudos sobre o tempo e o género e também aos estudos sobre a tecnologia e o género. Dada a grande extensão teórica de qualquer dos temas, trata-se de uma apresentação necessariamente sintética e algo eclética. Nos dois campos analisados em secções separadas, foram excluídas, por um lado, abordagens de lógica simples que não dão visibilidade ao modo imbricado como tempo e género e também tecnologia e género se interligam. Por outro lado, deu-se abertura para uma abordagem conjunta do tempo, da tecnologia e do género, conceitos que estão intrinsecamente interligados. Como se referiu, existem vários estudos sobre estas problemáticas noutros países. Importa nesta investigação, uma das primeiras realizadas em Portugal, identificar continuidades e descontinuidades com aqueles estudos, do ponto de vista analítico e empírico, e que possam fornecer novas pistas de investigação e intervenção.

12 Também em Portugal as engenharias foram inicialmente áreas dominadas por homens; hoje

em dia há cursos de engenharia maioritariamente frequentados por mulheres, embora alguns, nomeadamente os de informática, continuem a ser “redutos” maioritariamente masculinos.

13 “A world of bluestockings” 2011. Compare Mellström (2003) sobre engenheiros e

51

Capítulo 2

Metodologia

52 2.1 Introdução

Nas páginas seguintes explicitam-se as escolhas metodológicas efetuadas no projeto de investigação, apresentando os prós e os contras de várias opções possíveis, nomeadamente no que diz respeito à pesquisa sobre o uso do tempo. O processo de construção dos instrumentos para o levantamento dos dados será esclarecido de forma pormenorizada. A seguir serão apresentadas as zonas da investigação e os critérios aplicados na construção das amostras, enquanto um relato do decorrer da pesquisa no terreno, nas suas várias fases, completa o capítulo.

Tendo em consideração os objetivos da pesquisa, optou-se, para a recolha de dados, pela utilização de técnicas quantitativas e qualitativas, assumindo-se uma relação de complementaridade entre ambas. Com os instrumentos quantitativos pretendeu-se obter uma inventarização básica do tipo, quantidade e modo de uso dos equipamentos (tecnologias de apoio ao trabalho doméstico, de informação e comunicação, e meios de transporte) presentes nos agregados, assim como sobre o modo como os inquiridos distribuem o tempo. Os instrumentos qualitativos permitiram captar o significado que as variáveis assumiam para os entrevistados e também obter mais informações sobre o seu funcionamento na “vida real”.

Na primeira fase foi realizado um inquérito por questionário. As conclusões deste inquérito apontaram para uma persistência do uso genderizado do tempo e da tecnologia no espaço doméstico, mas também para algumas tendências de convergência entre o papel feminino e o masculino. Numa segunda fase, e visando aprofundar estas primeiras conclusões e penetrar mais nos universos familiares, avançou-se com técnicas de caráter qualitativo (entrevistas e grupos de foco) com o intuito de identificar e explicar a pluralidade de representações, sentidos e práticas do uso do tempo e da tecnologia no espaço doméstico, em função das relações de género tecidas nas interações quotidianas dos casais.

53 2.2 O estudo do uso do tempo

O tempo é, aparentemente, uma variável relativamente fácil de medir e com boa capacidade descritiva e explicativa, o que sugere que no estudo do seu uso sejam predominantemente aplicados instrumentos de recolha e de tratamento de dados de caráter quantitativo. Esses instrumentos também permitem revelar e visibilizar atividades que ficam fora dos intercâmbios económicos, como é o caso do trabalho doméstico não pago, atividades de lazer e voluntariado.

As técnicas habitualmente utilizadas para recolher informação quantitativa sobre o uso do tempo são os diários de tempo e os inquéritos de atividades. Estas fornecem informações diferentes e cada uma requer uma adaptação específica no uso dos recursos, desenho do questionário, trabalho de campo e análise dos dados (Durán e Rogero 2009).

Os diários de tempo, surgidos como técnica específica no campo dos estudos de tempo, consistem no registo sequencial de todas as atividades realizadas pelos inquiridos num período de tempo preestabelecido. É considerada a técnica mais fiável (Gershuny 2000, 2004; Fisher et al. 2007) e precisa devido à sua capacidade para captar informação sobre os tipos de atividades e a sua estrutura sequencial (ritmos, ciclos e simultaneidade), assim como à possibilidade de fornecer informação sobre o contexto social do uso do tempo (onde, com quem e para quem se realiza a atividade). Contudo, este procedimento, precisamente por ser tão meticuloso e intensivo, apresenta algumas limitações. Em termos de desenho e aplicação, é uma técnica particularmente complexa e onerosa14, pois requer uma grande colaboração e compromisso por parte dos inquiridos e um certo grau de literacia. O registo sistemático em períodos, habitualmente de 15 minutos, de todas as atividades

14 O volume de recursos materiais e humanos necessários para as investigações que optam

pelos diários de tempo fazem com que seja uma técnica apenas ao alcance de grandes instituições, geralmente institutos públicos de estatística. No caso de Portugal, apenas o Instituto Nacional de Estatística, em 1999, tem levado a cabo um estudo com estas características.

54

e o seu contexto, ao longo do dia, torna-se um trabalho tedioso para os inquiridos, o que geralmente se repercute numa alta taxa de desistência. Tais limitações direcionaram a nossa escolha para a segunda técnica: o inquérito de atividades. Este instrumento é mais acessível no que toca aos custos e à aplicação, e permite registar atividades realizadas com pouca frequência, ou em períodos superiores ao dia. Porém, também apresenta alguns inconvenientes: em primeiro lugar, apenas recolhe um número limitado de atividades e não consegue abordar de forma satisfatória as situações de simultaneidade de atividades, o que reduz a sua fiabilidade na medição do tempo; em segundo lugar, está sujeita a maiores imprecisões, pela dificuldade dos inquiridos em recordar e calcular os tempos gastos em cada atividade; por último, nos inquéritos de atividades as respostas são mais influenciáveis pela desejabilidade social. Assim, os inquiridos tendem a sobrestimar os tempos que destinam às atividades socialmente valorizadas, consoante o seu papel, e a infra-estimar os daquelas que consideram censuráveis.

No caso desta investigação, que pretende estudar os usos do tempo no espaço doméstico com especial destaque para o trabalho não pago, estes problemas de enviesamento na estimação dos tempos são particularmente relevantes, pois as respostas dos inquiridos estão moldadas pela interiorização de padrões de género. Os estudos comparativos sobre as estimações dos tempos destinados ao trabalho doméstico mostram diferenças entre os resultados dos inquéritos de atividades e dos diários de tempo (Kan 2006)15. As investigações de Bianchi (2000) sobre os Estados Unidos e de Kan (2006) com dados do Reino Unido assinalam a tendência, nos inquiridos, a reportar mais tempo em tarefas domésticas do que efetivamente dedicado a essas atividades. Esta

15 Estes estudos comparativos partem do princípio de que os diários de tempo são uma

ferramenta mais fiável e exata do que os inquéritos de atividades, e concluem que o sentido e o tamanho do desvio dos tempos reportados nos inquéritos de atividades, isto é a infra- estimação ou a sobrestimação do tempo destinado ao trabalho não pago, está relacionado sistematicamente com algumas variáveis como o género dos inquiridos, o tempo total que despendem no trabalho doméstico, as atitudes em relação aos papéis de género, o nível educativo, a idade e outras variáveis socioeconómicas.

55

sobrestimação verifica-se, nomeadamente, por parte dos homens, cujos padrões percetivos estejam moldados pelos padrões de dominação patriarcal no espaço doméstico. Não considerando o trabalho doméstico como o seu terreno, tendem a interpretar as suas pequenas ajudas nesse âmbito como trabalhos bastante extensos. Em certas pesquisas, assinala-se uma diferença conforme a classe: homens das camadas operárias tendem a reportar uma ajuda menor do que efetivamente prestada, numa tentativa de mostrar que seguem as normas da “masculinidade hegemónica”. Por outro lado, homens com mais habilitações sobre-reportam ou sobreestimam a sua participação, porque a sua perceção é destorcida, ou talvez por se quererem apresentar como homens “modernos” (Geist 2010).

Estudos sobre o uso do tempo têm sido realizados desde o início do século XX em sociedades industrializadas, embora na primeira metade do século, tenham sido pouco frequentes e com uma aplicação de metodologias pouco consistentes. Nas pesquisas mais conhecidas, destacam-se aquela de Sorokin, em 1935, entre 176 homens em Boston (Robinson e Converse 1972: 78-82) e o projeto de Mass Observation, que começou em 1937 no Reino Unido16. Este projeto, realizado em grande escala, mas com pouco rigor na sua organização, registou, de forma aleatória, as atividades da população britânica, dando origem a uma base de dados enorme e variada sobre a vida quotidiana em diversas épocas do século (Stanley 2001; Langhamer 2000; Heimann 1998: 128- 134).

Após a Segunda Guerra Mundial, o interesse por pesquisas sobre o uso do tempo cresceu por parte de governos de muitos países. Existia a consciência da necessidade destas informações para um melhor planeamento da infraestrutura (por exemplo, o transporte público), dos horários dos serviços, e percebeu-se o valor económico do tempo. Especialmente para atividades não calculadas no mercado, o volume de tempo despendido era um bom indicador do seu valor. Trata-se dos chamados custos de oportunidade, que representam os custos associados a uma determinada escolha, neste caso,

16 Ver Mass Observation Online Database,

56

aqueles que se aplicam ao uso do tempo para um objetivo em detrimento de um outro.

Resultados das primeiras pesquisas nacionais sobre o uso do tempo, de 13 países que participaram no chamado Multinational Time Use Study, foram reunidos no livro organizado por Szalai (1972). Em 1965, foi fundado na Universidade de Maryland o Americans’ Use of Time Project (Converse e Robinson 1980). Nas pesquisas supracitadas, aplicou-se a técnica dos diários de tempo.

Como Ironmonger (1999) refere na sua história concisa do desenvolvimento dos inquéritos sobre o uso do tempo, evidenciou-se como necessário, para fins de comparação, uma uniformização dos planos de pesquisa, nos vários países. Assim, uma versão harmonizada baseada nos vários inquéritos nacionais está, desde o início do século XXI, a ser aplicada em muitos países.

Em Portugal, a Direção Geral da Família foi a primeira entidade a empenhar- se em estudos, embora modestos, sobre a ocupação do tempo. Assim, realizou, em 1988, uma pesquisa e um colóquio sobre os tempos no trabalho e no seio da família e, em 1993, um inquérito sobre os Usos do Tempo, cujos dados foram analisados por Elsa Fontainha e também por Heloísa Perista (1997). Em 1999 foi executado o primeiro inquérito completo à ocupação do tempo a nível nacional, promovido pelo Instituto Nacional de Estatística (INE 2001).

2.3 A população

A população deste estudo reside nos distritos de Braga e Castelo Branco. Estes dois distritos são bastante diferentes em termos geográficos e demográficos.

57

Quadro 1 - Dados básicos dos distritos de Braga e Castelo Branco, 2011 e 2001

Indicadores

Local e Período de referência dos dados

2011 2001

Braga Castelo Branco Portugal Braga Castelo Branco Portugal

População residente (Nº) 848 185 196 264 10 562 178 831 366 208 063 10 356 117 Densidade populacional (N./km²) 313,45 29,6 114,5 307 31,4 112,4 Área (km²) 2 706 6628 92212 2708 6627 92 152 Número de famílias (Nº) 286 477 81 625 4 048 559 251 566 80 417 3 654 633 Dimensão média familiar 3 2,4 2,6 3,3 2,6 2,8

Fonte: http://www.pordata.pt e http://www.ine.pt

Embora a área do distrito de Castelo Branco seja bastante superior à de Braga, o seu número de habitantes é menos de um quarto do número de habitantes do distrito nortenho. Associada a esta diferença em densidade demográfica (respetivamente, 29,6 hab/km² e 313,45 hab/km², segundo os censos de 2011) está a diferença relativamente a vários outros indicadores, como seja ao nível da composição e dinâmica populacional, da economia e das condições sociais – assuntos que não serão discutidos nestas páginas. O distrito de Braga estende-se desde a faixa litoral, onde estão situadas diversas cidades (incluindo Braga, que é a terceira maior cidade do país em termos de população), até zonas mais no interior com caraterísticas claramente rurais. No panorama português, é um distrito jovem, devido principalmente às caraterísticas da cidade de Braga. Mas em certas zonas, mais no interior, e mesmo nas freguesias limítrofes das cidades, nota-se um envelhecimento demográfico, o que se reflete numa dimensão mais pequena dos agregados familiares (tratando-se muitas vezes de casais mais idosos sem filhos co-residentes, ou de pessoas enviuvadas). Os 14 concelhos do distrito de Braga estão espalhados sobre três NUTs de nível III: Cávado, Vale do Ave e

58

Tâmega. As duas últimas, no entanto, não estão totalmente incluídas no distrito de Braga.

O distrito de Castelo Branco situa-se no interior de Portugal, fazendo, a leste, fronteira com a Espanha. À exceção das três concentrações populacionais referentes às cidades de Castelo Branco, Covilhã e Fundão, o distrito tem um caráter francamente rural. O distrito, na sua totalidade, apresenta um envelhecimento demográfico, o que se repercute na existência de agregados familiares de tamanho reduzido. Muitas povoações outrora relevantesestão, atualmente, ora abandonadas ora habitadas apenas por poucas pessoas, geralmente de idade avançada. O concelho de Penamacor, por exemplo, tem um índice de envelhecimento de 598 (Censos de 2011), sendo o mais elevado de Portugal. Castelo Branco conta com 11 concelhos e a sua área está dividida nas seguintes NUTs de nível III: a Beira Interior Sul; a Cova da Beira (a mais populosa); e o Pinhal Interior Sul (com menos população). Apenas um concelho pertencente a estas NUTs, Mação (Pinhal Interior Sul), não coincide com o distrito de Castelo Branco. A nossa investigação teve lugar em todas estas sub-regiões.