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Problemática: Tempo, Tecnologia e Género

1.3.1 Mudança social e mudança tecnológica

O termo “tecnologia” deriva do grego technè, que pode ser traduzido como técnica, mas cujos significados originais foram arte, perícia e ofício, eventualmente, mas não necessariamente, em combinação com o uso de instrumentos. Assim, tecnologia significa, à letra, “estudo sobre a técnica” e era esta a designação que o termo tinha, nas suas versões em inglês, alemão e francês, aquando do seu surgimento, a partir dos séculos XVII e XVIII (Leo Marx 2010: 562; Schatzberg 2006: 490). Hoje, o significado de tecnologia mais comum é “o conjunto de instrumentos e máquinas, e os conhecimentos e as aptidões necessárias para a sua produção e utilização”7. Este significado foi, na primeira metade do século XX, rapidamente absorvido na linguagem do diaa dia, substituindo termos anteriores como (em inglês) useful arts ou

applied science. Observemos, ainda, a simplicidade da abordagem de

Oldenziel et al. (2003: 11), quando afirma “[technology is] in its broadest sense, the process of making and doing things”. Por sua vez, Wajcman (1991)

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distingue três tipos de tecnologia: um conjunto de conhecimentos, um conjunto de práticas e um conjunto de objetos.

Com efeito, os múltiplos e sucessivos desenvolvimentos teóricos no domínio dos estudos sociais da técnica e da ciência têm mostrado que as relações que se estabelecem entre a tecnologia e a sociedade são complexas, dinâmicas e capazes de produzir, na sua interação, realidades novas que sugerem um desafio constante às formas de adaptação individual, social e institucional. O espaço doméstico é um espaço de consumo, vulnerável às mensagens de publicidade e de marketing, através das quais se fazem circular representações sobre as vantagens e o espírito transformador das tecnologias domésticas. Representações que, ao longo da história do século XX e até a hoje, continuam a ser genderizadas, isto é, extremamente vinculativas do lugar da mulher no lar, assim como da sua inabilidade inata para usar (e usar de certa e adequada maneira) um certo tipo de tecnologias.

Vários autores de referência que no início do século XX se debruçavam sobre a tecnologia e a sociedade, como o sociólogo Thorstein Veblen (1906/1919) e os historiadores Charles e Mary Beard (1930) pareciam apoiar uma explicação do curso histórico através do progresso da tecnologia8. A história humana, nessa

abordagem tecnologicamente determinista e orientada pelas noções de progresso, é contada em função das “invenções” técnicas, retratando um progresso mais ou menos linear, começando nos artefactos de pedra ou madeira, passando pela máquina de vapor até chegar às tecnologias mais recentes. Outros autores optaram por uma abordagem mais subtil9. No seu artigo clássico “Technology and state government”, Read Bain (1937) parece dar primazia à tecnologia como motor da história, mas apressa-se a salvaguardar-se contra as possíveis críticas, afirmando que rejeita qualquer determinismo tecnológico, já que “[e]xiste uma interação recíproca constante entre a tecnologia e todos os outros aspetos da cultura” (Bain 1937: 860).

8 Não foi contudo uma ideia nova; muitos autores do século XIX achavam que a tecnologia era

o motor das mudanças. Entre as teorias mais influentes podemos encontrar a de Lewis Morgan (1878) e, no seu rasto, a de Friedrich Engels (1948 [1884]).

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Hoje em dia, nas ciências sociais, parte-se, em grande medida, do princípio de que as influências da tecnologia são mediadas pelo contexto social em que a tecnologia opera, identificando-se um conjunto de fatores sociais que moldam a criação, o desenvolvimento e o uso da tecnologia. Foi nesse âmbito que surgiram, no seio dos estudos da ciência e tecnologia, as perspetivas construtivistas agrupadas em torno do que é designada por Social Shaping of

Technology, designação que serve de título do influente livro organizado por

Donald McKenzie e Judy Wajcman (primeiro publicado em 1985 e com edição revista em 1999).

Contudo, nos estudos sobre a modelação social, a modelação tecnológica é muitas vezes subestimada. Uma das premissas centrais que têm orientado o presente estudo recolhe a tese de um mutual shaping, ou seja, de uma influência mútua entre o elemento tecnológico e o tecido social. Uma interação que, pela dificuldade de analisar separadamente o social e o tecnológico, mereceu da parte de Hughes (1986) a designação de seamless

web, uma rede sem costuras. Esta tese segue de perto a ideia da

“sociotecnologia” que desde o início dos anos 80 do século passado foi sublinhada por autores como Wiebe Bijker, e segundo os quais não se deve distinguir “a priori entre, por exemplo, o social, o técnico, o científico e o político” (Bijker 1995: 13). O paradigma teórico que traduz esta complexidade a partir da “perspetiva co-producionista” defendida, entre outros, por Jasanoff (2004) é muito rico na forma como descreve as interações entre tecnologia e sociedade no intrincado de níveis e de significados.

Argumentando em favor da existência desta interação mútua, Simões (1995, 2005) considera que só analiticamente se pode fazer a distinção entre sociedade e tecnologia, sendo esta última uma componente fundamental da ação social. Aquelas abordagens permitem abandonar as perspetivas essencialistas de sinal contrário – o determinismo tecnológico, segundo o qual é a tecnologia que determina a mudança social, e o determinismo social estruturalista, em que a sociedade é a variável independente. Frise-se, neste contexto, que a perspetiva mais criticada tem sido o determinismo tecnológico, embora Hassan (2010) considere que se trata de uma perspetiva que merece ser reanalisada.

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A abordagem do “condicionamento recíproco” (Simões 1995, 2005) tem em conta quer o condicionamento social, quer o tecnológico e, ao realçar que são poderosas forças sociais que regulam a criação, o desenvolvimento e o uso das tecnologias, evidencia que os atores sociais têm algumas janelas de oportunidade para contrariar determinados desenvolvimentos tecnológicos. Mas a influência dos fatores sociais, como acima se referiu, é muito mais abrangente, não se limitando à escolha social do desenvolvimento e do uso das tecnologias. Importa incluir na análise também o contexto social, os valores subjacentes a esse contexto e as desigualdades sociais. A escolha social, na área tecnológica, revela-se em muitos estudos antropológicos, sociológicos, arqueológicos e históricos. Esclarecedores são os casos de “invenções” que não foram utilizadas, ou que, pouco tempo passado, foram esquecidas, ou que, ainda, acabaram por ser aplicadas noutros objetivos não previstos.

Contudo, é inegável que a produção, a difusão e o uso de novas tecnologias podem ser acompanhados por grandes mudanças na sociedade. O exemplo da industrialização no século XIX, apoiado por maquinaria pesada, é um dos mais conhecidos. O nosso estudo centra-se em tecnologias diferentes e também num outro contexto - o doméstico - mas focaliza, igualmente, a dinâmica das desigualdades que são, neste caso, principalmente aquelas que decorrem das diferenças de género.