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Este capítulo é dedicado à análise das tecnologias no espaço doméstico, focando-se, essencialmente, na análise e discussão dos dados de natureza qualitativa resultantes dos grupos de foco e das entrevistas, embora também se recorra a dados quantitativos providenciados pelo inquérito por questionário. A primeira secção (5.1) constitui um breve enquadramento teórico, no qual se analisam as relações entre a tecnologia e a sociedade, a nível mais abrangente. Através de perspetivas teóricas em confronto, identifica-se a perspetiva teórica que consideramos ter maior valor heurístico para a pesquisa, por ter a capacidade de ultrapassar dualismos e reducionismos presentes noutras abordagens.

Uma distinção já bastante veiculada nos estudos da tecnologia, aquela que remete para as “tecnologias brancas” e as “tecnologias pretas”, como indicado no capítulo 3, é usada para estruturar as outras duas secções deste capítulo. Assim, na segunda secção (5.2), são abordadas as tecnologias domésticas, procurando-se perceber se ajudam, ou não, a poupar tempo, e se influenciam a divisão do trabalho doméstico e as relações de género que lhe estão subjacentes. Procura-se, ainda, perceber como participam essas tecnologias na construção de uma identidade de género, masculina e feminina. A terceira secção (5.3) é dedicada à análise das tecnologias de informação e de comunicação (TIC), sendo discutidas as dimensões da posse, do acesso e uso, e da sua genderização. Num último ponto, são apresentadas algumas considerações finais relativas a ambas as tecnologias – brancas e pretas – no espaço doméstico.

5.1 Mudança tecnológica e mudança social – pressupostos teóricos norteadores

Face à diversidade de perspetivas teóricas sobre a mudança social e tecnológica, que põem, inevitavelmente, perguntas diferentes à realidade em estudo, importa explicitar qual se considerou ter maior valor heurístico para esta investigação. A perspetiva adoptada é a que Simões (1995, 2005, 2006) denominou por “condicionamento recíproco” – próxima da que é designada

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por outros autores por mutual shaping -, em que se parte da rejeição de uma relação unidirecional entre tecnologia e sociedade em qualquer dos sentidos, o que implica que se abandonem as relações monocausais entre ambas e a preocupação de se determinar se é a tecnologia ou a sociedade que tem prioridade causal31.

Ao considerar-se que a tecnologia é um processo social ter-se-á em conta que é criada e adotada (ou não) pela ação humana, o que implica que a escolha, a criação, o design, o desenvolvimento das tecnologias e os seus usos abarcarão um leque mais alargado de fatores sociais do que o usado nas perspetivas teóricas essencialistas, como o determinismo tecnológico e o determinismo social estruturalista (Lyon 1992; Simões, 1995, 2005, 2006).

É certo que a tecnologia tem origens sociais e que a sua moldagem é conseguida, em grande parte, através da intervenção de grupos de interesse que exercem uma influência decisiva no seu desenvolvimento (Lyon 1992; Burns e Flam 2000); mas outros fatores sociais moldam as tecnologias, desde a sua criação, passando pelo seu desenvolvimento e até ao seu uso. É incontornável ter em conta, na análise, as tendências das sociedades capitalistas atuais, as quais poderão mesmo ser ampliadas pelas novas tecnologias (nomeadamente a posição subalterna das mulheres numa sociedade ainda com forte pendor patriarcal), assim como os valores, as desigualdades sociais e de poder e os contextos sociais, políticos e culturais (Fischer 1985; Lyon 1992; Simões 1995, 2005).

A perspetiva teórica utilizada distingue-se das mais essencialistas como também, em alguma medida, das que se agrupam em torno das denominações

Social Shaping of Tecnology (SST) ou Social Construction of Technology

(SCOT), no sentido em que, como a sua própria designação sugere – condicionamento recíproco - não se subestima o condicionamento tecnológico: cada artefacto tecnológico pode condicionar a nossa ação numa

31 Só em termos analíticos é possível fazer esta distinção entre tecnologia e sociedade. Mas

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direção específica, abrindo determinados caminhos e fechando outros, embora de modo inter-relacionado com fatores de escolha social.

A perspetiva do condicionamento recíproco tem como quadro de referência as teorias que se convencionou designar de síntese, ou seja, as que tentam superar a dualidade ação/estrutura. Mencionemos, em particular, a teoria dos sistemas de regras sociais de Burns e Flam (2000). Para estes autores, a tecnologia é uma componente ou parte integrante da ação social e um fator significante na estruturação e organização das sociedades modernas. Se a atividade humana é, em grande parte, e nas suas mais variadas formas (na cultura, economia, política, entre outras), governada por regras e sistemas de regras (que compõem a estrutura social), para a criação, desenvolvimento e uso das tecnologias, os atores sociais também elaboram e aplicam regras (Burns e Flam 2000).

Mas as estruturas não são encaradas apenas como constrangimentos à ação social, elas oferecem também oportunidades para que os atores sociais possam agir, coordenadamente ou não, com o fim de defenderem os seus interesses e tomarem decisões, ou seja, a possibilidade de os homens e/ou as mulheres poderem "fazer de modo diferente" (Burns e Flam 2000: xii).

O esboço do quadro de análise referido comporta, pois, níveis concetuais e analíticos que permitem explicar quer a reprodução, quer a transformação social no que respeita à criação, desenvolvimento e uso das tecnologias, nas diversas áreas da atividade social; o que remete para problemáticas sociológicas como o poder, a conformidade, a resistência e o conflito, a agência e a interação social.

Faulkner (2001: 80) parece partilhar a perspetiva adotada quando defende que “tanto a tecnologia como o género são compreendidos como socialmente moldáveis e, por esse facto, potencialmente remoldáveis”.

Tendo como background a teoria dos sistemas de regras sociais acima referida, as mulheres não são só vítimas. Muitas vezes, elas próprias subvalorizam o seu trabalho e, de um modo mais lato, a sua própria condição, não se tornando agentes que, através da reflexibilidade interpretativa (termo