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Problemática: Tempo, Tecnologia e Género

1.3.2 Tecnologia e género

Como já foi referido, e segundo a teoria de mutual shaping, o desenvolvimento, a aceitação e o uso de novas tecnologias depende em parte do contexto social. Neste, as normas de género têm grande importância. São muitos os casos em que as novas tecnologias destinadas ao apoio no trabalho doméstico não foram logo bem aceites e não só por motivos financeiros mas, também, por não se enquadrarem nas normas vigentes, principalmente acerca do papel da mulher. A máquina de lavar roupa era (e é) encarada em certos

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círculos sociais com uma certa desconfiança. As objeções têm sido várias: dúvidas quanto ao resultado, em termos de limpeza aceitável, desse processo mecânico; a convicção de que lavar a roupa à mão faz simplesmente parte do papel da mulher; e ainda, de modo mais incisivo, a ideia de que as máquinas de lavar a roupa “produzem mulheres preguiçosas” (Meintjes 2001; Van Dorst 2007)10. A aceitação (parcial) de novas normas sobre a execução das lides domésticas parece ter sido uma variável necessária ao uso de tecnologias mas também à externalização de tarefas (Bobrow-Strain 2012).

As máquinas e a tecnologia estão associadas, em geral, aos homens. Em conformidade com a proposta clássica de Shelley Ortner (1974), na qual as mulheres aparecem associadas à natureza e os homens à cultura, os homens apropriaram-se da tecnologia, procurando dominar, assim, a natureza – o domínio tradicional das mulheres. A conjugação entre homens e tecnologias corresponde a, e reforça, a constelação patriarcal.

Tal como exposto nas abordagens históricas de autores como Simonton (1998) e Sullerot (1968), em várias atividades profissionais, a introdução de tecnologias mais avançadas levou a que os homens assumissem o trabalho, e que, por seu lado, as mulheres fossem relegadas para atividades com menor prestígio e remuneração.

Não apenas o uso e o consumo da tecnologia são genderizados, mas também a sua conceção e produção, sendo os homens considerados os seus inventores e construtores: “Man the Machine-Maker”, tal como formulou John Staudenmaier (apud Bray 2007: 39). No entanto, convém registar que na antropologia cultural é largamente assumida a probabilidade de que, ao longo da história humana, muitas das técnicas básicas tenham sido desenvolvidas por mulheres. Apontam- se, por exemplo, as aptidões e os equipamentos que se dirigem à preparação de

10 O artigo de Meintjes (2001), com o título “Washing machines make lazy women”, refere-se

a um township na África do Sul, mas em países europeus tem existido o mesmo tipo de resistência (Van Dorst 2007). Na Holanda, nos meados do século XX, as mulheres que reduziam o seu trabalho de lavagem à mão, recorrendo a serviços de lavandaria, também estavam sujeitas a acusações de “desleixo” (Van Dorst 2007: 153).

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alimentos e ao fabrico de roupa. Assumindo que as mulheres têm sido quase sempre as primeiras responsáveis pelo ambiente doméstico, será plausível que elas tenham desenvolvido instrumentos e equipamentos importantes para a gestão da casa, para além das técnicas relativamente à preparação e à conservação de alimentos (Oldenziel 1999: 26-27; Goody 1998). Com a revolução industrial, que implicou uma crescente complexidade das tecnologias aplicadas, os homens intensificaram a sua ligação com elas, ao nível tanto da produção como do uso. Ao longo do processo da industrialização foram os homens que, tal como demonstra Oldenziel (1999), desempenharam os papéis mais percetíveis na conceção, na inovação e no uso das tecnologias. Nas indústrias, também as mulheres manuseavam as máquinas, e nas primeiras décadas de existência das grandes fábricas elas encontravam-se em maior número do que os homens, como Friedrich Engels atesta no seu relatório sobre a classe operária na Inglaterra, nos anos 40 do século XX (Engels 1958). Todavia, estas operárias ocupavam posições subalternas e recebiam um salário mais baixo, embora as suas tarefas frequentemente se revelassem mais pesadas ou mais delicadas (Deane 1965; Simonton 1998; Sullerot 1968).

Segundo Oldenziel (1999), o processo de profissionalização na área do desenvolvimento e do uso da tecnologia foi tendo um efeito de exclusão para as mulheres. A profissão cada vez mais relevante de engenheiro tem-se vindo a afirmar, no mundo ocidental, como sendo distintamente masculina. A autora refere, para os Estados Unidos, a “masculinização” do próprio conceito de tecnologia, cada vez mais associada à engenharia. A profissão de engenheiro, no início do século XX, encaixava-se nitidamente na masculinidade hegemónica caraterística da época (Layne 2009: 120).

Mas também noutras posições, os homens tinham a tendência de ansiosamente vigiar o privilégio de lidar com as tecnologias consideradas mais difíceis. As estratégias dos homens para preservar este monopólio são o tema central do livro Brothers de Cynthia Cockburn (1983), reconhecido como um marco importante nos estudos feministas sobre a tecnologia, neste caso na área da tipografia. Os tipógrafos, uma categoria de trabalhadores considerados “de elite”, desde os finais do século XIX colocaram obstáculos às

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mulheres que pretendiam trabalhar com as tecnologias mais prestigiantes. Manifestaram uma intensa solidariedade masculina, em oposição às mulheres e em prol da preservação do seu monopólio na execução dessas tarefas, e do seu sentido de masculinidade.

Sensivelmente no período entre 1880 e 1910, novas mudanças tecnológicas derivaram de desenvolvimentos na ciência e implicaram o aparecimento de ítens que tinham a potencialidade de mudar profundamente a vida quotidiana, e especialmente a doméstica. Estas novidades (incluindo o telefone, a luz elétrica, o gramofone, o cinema e o carro) começaram por ser aplicadas em esferas como na indústria e no comércio, mas também no lazer. Como acontecia várias vezes, as tecnologias desenvolvidas para a indústria e a vida comercial só depois de muitos anos foram adaptadas para finalidades domésticas. Por exemplo, o telefone foi primeiro destinado à vida comercial (Lohan 2011). A introdução deste aparelho em residências privadas tinha em vista a facilitação do contacto dos homens de negócios com colegas, a partir do seu lar. Contudo, não demorou muito para que as suas esposas se tornassem as utilizadoras principais (Frissen 1994; Faulkner 2000: 8). O telefone revelou-se uma ajuda preciosa no bom desempenho do seu papel de donas-de-casa, que abrange não só o contacto com o mundo exterior (familiares e demais significant others) como também a gestão de tarefas, atividades e deslocações dos membros da família (ver Bourdieu 1998: 104- 105). Assim, se por um lado o uso do telefone pode ter tornado a vida um pouco mais fácil para as mulheres com responsabilidades pelo lar, por outro, esta nova tecnologia reforçava o seu papel tradicional. Rakow (in Michelfelder 2009: 253–254) e Moyal (1992) caraterizaram (ainda antes da introdução do telemóvel) o uso do telefone, por parte das mulheres, como um trabalho que pertencia, em grande medida, às tarefas de cuidar. Ao contrário de estereótipos veiculados por homens, que pensam que se trata apenas de mexericos e tagarelice, a conversa telefónica de donas de casa pode ter uma função de apoio emocional e social para os interlocutores e o seu grupo familiar.

Uma outra invenção com impacto profundo foi o carro. Virginia Scharff (1991) fornece-nos um estudo aprofundado e, ao mesmo tempo, cativante, sobre o

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género e o carro nas primeiras décadas da sua existência, nos Estados Unidos. O seu uso por mulheres, tidas por frágeis e caprichosas, era considerado fora da questão pelos homens. Depois da primeira Guerra Mundial, no entanto, a condução por mulheres começou a ser um fenómeno mais comum e, deste modo, em teoria, essas motoristas no feminino ganhavam mais liberdade. Georgine Clarsen (2008) descreve a história mais recente e a uma escala global, da relação entre mulheres e o automóvel e os preconceitos dos quais elas eram e continuam a ser alvo.

Uma mulher ao volante poderá parecer um ícone da “emancipação”, mas na realidade, tal noção contrasta frequentemente com o papel que a condutora na realidade assume. Como Scharff (1991: 173) indica, a condução por mulheres tem servido em grande parte para a confirmação do seu papel de mães e de esposas. Com o carro, ela pode transportar os membros da família, ir às compras, sobrando mais tempo para o trabalho doméstico, o que era importante, principalmente no caso das mulheres com trabalho remunerado no exterior. O estudo de Dowling (2000) sobre a Austrália permite-nos concluir que esta situação se mantém até hoje: a condução do carro da família é considerada pelas mães como um “ingrediente” de good mothering e de uma boa gestão de assuntos familiares, em particular o transporte dos filhos para as suas atividades escolares, extra-curriculares e de lazer11.

Assim, a obtenção do acesso a uma tecnologia inicialmente considerada masculina por excelência, o carro, não mudou a diferenciação de papéis entre homens e mulheres. Tal como aconteceu com o telefone nos seus primeiros tempos, o efeito desta máquina conduziu mais a um reforço das distinções entre os géneros do que a uma aproximação. É mais um exemplo de que não é a tecnologia, per si, que produz a mudança. O significado dos equipamentos é diferente para homens e para mulheres, tal dependendo do uso diferenciado que deles se faz. Os equipamentos intencionalmente destinados para as lides domésticas, ou seja, os eletrodomésticos (e alguns outros aparelhos mecânicos, cujo funcionamento não é dependente da eletricidade), têm sido

11 O número de quilómetros que as mães percorrem com as crianças serve às vezes, no seu

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subalternizados nos tempos de rápida expansão da tecnologia. Razões prováveis para a falta de interesse que a indústria e o mercado manifestaram relativamente ao ambiente doméstico são o seu reduzido prestígio e o fraco valor monetário do trabalho nesse contexto. Contudo, ao longo do século XX, um grande leque desses equipamentos foi sendo desenvolvido. Também neste aspeto, as diferenças sociais e culturais refletiram-se nas diferenças de ritmo a que os equipamentos foram sendo aceite em vários países. Numa época (a seguir à Segunda Guerra Mundial) em que nos EUA a maior parte dos agregados domésticos ligados à rede elétrica já tinham uma máquina de lavar roupa semi-automática, no Canadá, as famílias continuavam a preferir modelos mais simples (Parr 1997). E, quanto à Holanda, tal como Van Dorst (2007: 81-98) constata, a aquisição de máquinas, mesmo as mais simples, ocorreu num ritmo muito lento, devido ao lobby e aos interesses económicos das empresas de lavandaria e das empresas fornecedoras de energia.