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O Tempo no Espaço Doméstico e Familiar

4.10 Tempos de rutura: tempo (para) da televisão

Os meios de comunicação de massa encontram-se em debate permanente. Para os autores da escola de Frankfurt e seus discípulos, as formas mediatizadas de cultura são maneiras de instrumentalização e de dominação sustentadas pelos sistemas políticos que visam permanecer no poder e conquistar reconhecimento e legitimação. Nesta esteira, o tempo quotidiano surge definível como um tempo manipulado, penetrado pela ideologia que visa conformar os indivíduos a diversas formas de formatação. As classes mais desprovidas de capital cultural. Mas, a literatura sobre os usos da televisão tem vindo a enunciar variações desses modelos de entendimento (Alasuutari, 1999; Biltereyst e Meers, 2001). As apropriações da televisão são hoje percebidas de forma extraordinariamente complexa. A importância profunda do medium e a sua naturalização no quadro das rotinas sociais mantém-se. Em poucas palavras, Roger Silverstone traduz essa força:

“The palpable integration of television into our daily lives: its emotional significance, both as a disturber and comforter; its cognitive significance, both as an informer and misinformer; its spatial and temporal significance, ingrained as it is into the routines of daily life; its visibility, not just as an object, the box in the corner, but in a multitude of texts – journals, magazines, newspapers, hoardings, books like this one; its impact, both remembered and forgotten; its political significance as a core institution of the modern state; this integration is both complete and fundamental” (Silverstone 1994: 3).

Tal como apreciado no capítulo 3, no inquérito que realizámos no âmbito do nosso estudo, 92,5 % dos inquiridos afirma ver televisão todos os dias, não havendo a assinalar, estaticamente, relações significativas entre o visionamento da televisão, sexo, idade ou existência de crianças. O que importa ressaltar é que a televisão aparece referenciada como algo que possibilita um tempo de rutura e de invenção do quotidiano.

Os casais entrevistados dispõem, por norma, de várias televisões em espaço doméstico, incluindo sala, cozinha e quarto. Evidencia-se a inexorável

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presença da televisão no espaço-tempo quotidiano. Nuns casos com o propósito real de satisfazer uma necessidade de lazer. Noutros como uma possibilidade natural que compõe o quadro da vida quotidiana. A televisão é sinalizada por todos os indivíduos como um dos principais mecanismos mobilizados de “conseguir” tempo livre. Apresenta-se como “algo que está sempre ali”. Algo que acompanha o indivíduo em grande parte dos afazeres e tarefas domésticas, incluindo o cuidado dos filhos, a alimentação e a higiene. A televisão acaba por “ajudar a passar o tempo”. Percebemos nas histórias a presença “amiga” da televisão no tempo quotidiano, em especial em todo aquele tempo que cobre o espaço-tempo doméstico, do lar. A televisão está presente em todos os períodos do final do dia e ao fim de semana, sobretudo ao sábado e ao domingo à tarde e noite.

Os conteúdos escolhidos pelos homens tendem a ser mais frequentemente relacionados com notícias, desporto e outros conteúdos de índole política e social. Os conteúdos escolhidos pelas mulheres tendem a rodar sobre o entretinimento, as tramas e os argumentos. As preferências são também diferentes, conforme a idade.

Tais variações de género e de idade estão marcadas por influências da classe e do habitus. São produto de modelos de socialização cada vez mais diversificados, mas que continuam a receber influências diretas dos esquemas culturais destilados pelo posicionamento social.

A conclusão conduz-nos ao facto de a televisão surgir como a possibilidade de gozo do tempo livre mais acertada no contexto em que os quotidianos, nas sua diversidade e dinâmica, se apresentarem como repetitivos e monótonos. A televisão encaixa-se assaz muito bem numa orientação temporal constrita, muito dependente da concretização de tarefas que circunstanciam à casa e ao lar e que, tal como já propusemos, prega os indivíduos a rotinas que longe de serem fruto da autonomia do sujeito, são socialmente determinadas e vigiadas. Só por alguma razão extraordinária (como a formação e mesmo assim, com esforço), as mulheres que entrevistamos, sobretudo as mães, deixarão de estar em casa ao fim da tarde, à mesma hora, fazendo mais ou menos o mesmo e respondendo às necessidades que o espaço requer. Não há

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grande possibilidade para elas de localizar neste tempo atividades de desporto ou outras.

Mesmo quando o cônjuge “ajuda”, o ritmo socialmente constrangedor leva-as a responder a esta necessidade, sob o risco da culpa. Por isso, a televisão e a combinação que ela pode fazer com estiramento no sofá ou na cama representa um dos expoentes máximos do seu tempo livre. Contudo, precisemos um dado importante: só nestes momentos de exclusão (que passam pelo sentar ou deitar) é que estaremos a falar da rutura da mesmidade do quotidiano, até porque pode não haver oportunidade para ter o mesmo tempo, no dia seguinte.

Durante grande parte do tempo, em particular durante o horário nobre, a televisão produz um contratempo porque este mesmo período ser extremamente exigente em tarefas (higiene, alimentação, arrumação).

E, se para as mulheres a televisão pode estar ali, a compor o quotidiano, mas sem as fixar ao sofá ou à cama, para os filhos e para o homem essa condição é bem mais frequente. Ao mesmo tempo e à mesma hora (sendo que esta hora pode ser bem mais variável no caso dos homens, pois socialmente não são esperados terem de estar em casa, a cuidar dos filhos e alimentá-los), os homens escapam justamente nos interstícios do tempo quotidiano, dispostos de ciclos e de zonas diversas de fuga, justamente à presença do quotidiano, nas suas múltiplas tarefas. As compras, o desporto, os encontros inesperados de trabalho e o tomar conta dos filhos (que conjugam com encontro com amigos e outras) assemelham-se a zonas opacas de garantia da fuga aos bastidores do quotidiano.

A televisão é um verdadeiro mestre de cerimónia, pois permite que eles façam quase tudo o que é possível para ajudar a cônjuge, sem largarem a atenção da televisão. Há duas tarefas preferidas no horário nobre que, uma vez assumidas, se tomam como projetos inabaláveis pelos homens, excluindo aqueles que procuram trabalhar fora de casa, no quintal ou em redor do carro: a cozinhar com os olhos postos na televisão, ou tomar conta dos filhos em frente ao computador ou na sala, no horário do telejornal, ou de outro programa de entretenimento cujo gosto coincida com os dos filhos.

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A presença da televisão não integra propriamente o quotidiano na sua vertente repetitiva, mas dinâmica. Mostra a presença avassaladora do quotidiano na vida dos sujeitos, mas revela-se como ponto de fuga a essa mesma repetição, embora de uma forma temporalmente bastante silenciosa, isto é, sem criar ruturas expressas no tempo, algo que acontece mais nitidamente a partir das 22 horas, ou ao domingo à tarde, dado que nessa altura estaremos em presença de um tempo aceite como tempo de escolha.