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Divisão e distinção dos usos do tempo entre homens e mulheres

O Tempo no Espaço Doméstico e Familiar

4.3 Divisão e distinção dos usos do tempo entre homens e mulheres

São vários os vértices do processo de reprodução das ordens que instituem diferentes papéis e expetativas da parte dos homens e da parte das mulheres em relação a:

(i) Orientação temporal para objetivos; (ii) Graus de autonomia na gestão do tempo;

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(iv) Grau de nitidez na definição de metas ou mesmo os graus de densidade temporal e preparação para o inesperado e imprevisível.

No fundo, intercruzam diversas modalidades de socialização histórica, geracional, institucional e familiar que “ensinam” as mulheres e os homens a entender, gerir e perspetivar o tempo, a duração e a temporalidade de formas distintas, apesar de justificadas como complementares. Existem diversas formas de caraterizar os usos e as representações do tempo. Embora se possam registar algumas variações, os usos do tempo são produto das estruturas sociais e normativas. Mas, estas influenciam a alteração e o surgimento de usos que podem ser “novos” ou meramente diferentes. No projeto que efetuamos estamos a falar também, e predominantemente, de tempos quotidianos, da forma como os indivíduos alocam o tempo no dia a dia, o pensam e valorizam e se relacionam com as suas sinalizações mais estruturantes, tais como os dias, as horas, as semanas, os meses. Tal como foi assinalado em capítulos anteriores, o objetivo principal do estudo consistiu em questionar os efeitos da variável sexo sobre os usos e as representações do tempo, em situações em que os indivíduos vivem numa relação familiar com a presença, ou não, de filhos.

Os usos, as representações e as construções do tempo também são condicionados pelos efeitos do uso da tecnologia, cujas utilizações estão, igualmente, inscritas em expetativas e papéis distintos em termos de homens e de mulheres.

Desde a reflexão de Kristeva (1979) e, mais tarde, Leccardi e Rampazi (1993), os estudos têm vindo a reiterar a pertinência explicativa do sexo nos usos do tempo quotidiano. Em causa estão as expetativas e as aspirações que marcam a trajetória de homens e mulheres. Estas, em resultado do processo de socialização, demonstram maior capacidade para esperar e, ao mesmo tempo, antecipar, o que lhes vale a identificação com o tempo cíclico e repetitivo. Os homens revelam mais atributos para definir e seguir planos estritos, valendo- lhe a identificação com o tempo linear (Araújo, Fontes e Domingues, 2012).

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Tal como temos vindo a frisar, existem múltiplas abordagens sobre os usos do tempo em função do sexo. A maior parte insiste na análise dos tempos e das temporalidades no feminino. A principal explicação para esta ênfase reside na situação histórica de dominação das mulheres e no interesse, especial da Sociologia, pela categoria analítica dos “dominados” (seguindo a abordagem epistemológica de Bourdieu). Em rigor, são precisos mais estudos sobre a vivência das temporalidades no masculino. A literatura específica sobre o tempo dos homens e sobre o sexo, na dupla perspetiva – feminina e masculina- é ainda escassa. Não se construiu para este projeto, um quadro de análise especialmente dirigido ao estudo dos homens, dos seus tempos e temporalidades, mas procurou-se prezar alguma comparabilidade entre os homens e mulheres, atendendo a outras variáveis diferenciadoras, tais como a idade, a profissão e o nível de habilitações e também a situação perante o emprego (empregado ou desempregado).

As principais conclusões que vale a pena assinalar podem ser agrupadas em dois grandes tipos:

(a) Usos do tempo quotidiano e formas diferentes de relacionamento com o tempo;

(b) Mudanças nas sociedades contemporâneas influentes sobre os usos do tempo doméstico e familiar.

Na primeira tipologia agregamos estudos cujos resultados indicam a continuidade dos fenómenos de dominação das mulheres no espaço doméstico. Aqueles ficam expressos no facto de elas, não só dedicarem mais tempo em quantidade a todas as atribuições domésticas e familiares, como a cederem aos seus interesses e desejos, muito especialmente o tempo livre e o tempo de lazer, em favor dos tempos do cônjuge ou dos filhos. Os estudos relacionados com os orçamentos do tempo, ou que partem dos orçamentos do tempo, tendem a frisar esta conclusão, a qual se mantém válida para qualquer estrato social e faixa etária, embora mais pronunciada nas classes com menos capitais económico e cultural.

Tal como foi oportunamente anotado no capítulo 3, para as classes populares em que ambos os cônjuges trabalham ou em que um dos cônjuges está

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desempregado, a situação é mais difícil para as mulheres. Tal deve-se à falta de dinheiro para externalizar qualquer atividade, o que as faz arcar com mais afazeres e responsabilidades diárias. Adicionalmente têm de gerir mais dificuldades no acesso a transportes e a outros serviços que se juntam à propensão para gerirem horários de trabalho instáveis e em regime noturno ou por turnos, como podia ser concluído dos dados do inquérito e das entrevistas efetuadas. Em qualquer caso, não obstante a influência atribuída ao Estado e às políticas públicas e às situações sociais mais ou menos decisivas sobre os modos de vida, os estudos tendem a explicar a sobrecarga temporal das mulheres pelos padrões e expetativas sociais e culturais que ainda recaem sobre elas, particularmente os associados ao papel de esposa e de mãe e que, em graus diferenciados, atravessam a estrutura social. Além disso, trata-se de uma conclusão que vem sendo reiterada, não só no contexto nacional, mas também europeu.

Fora da Europa a situação descreve-se com palavras semelhantes, sendo demonstrada a frágil situação das mulheres em tudo o que se relaciona com a manutenção das atividades de reprodução, acumuladas, na larga maioria dos casos, com atividades de produção.

Um dos mais recentes relatórios da EU, de 2011, sobre organização do tempo de trabalho e medidas de articulação dá conta de que o modelo predominante de organização do tempo para Portugal segue o modelo masculino de ganha- pão, caracterizado por reduzida flexibilidade horária, inexistência de trabalho em (e a partir de) casa e regimes de trabalho a tempo inteiro marcados por cargas horárias extensas.

Na sua grande parte, estas pesquisas corroboram a interiorização dos padrões bem explicitados no estruturo-funcionalismo de Parsons, ao pronunciar-se sobre a estrutura da família e o modo como a organização profissional condiciona as respostas aos papéis de género (Parsons 1971).

Os estudos que salientam a subordinação do tempo das mulheres a todos os outros tempos familiares tendem a frisar a importância que ainda hoje adquire a conotação da mulher com o desempenho de funções de reprodução e de procriação e que exigem emoção e carinho. Além disso, atividades que

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fazem da mulher um elemento estruturante na manutenção da família, portanto, alguém espácio-temporalmente “fixado” e profundamente invisível. Na segunda tipologia, agregamos os estudos que mostram algumas mudanças substantivas nos usos e perceções do tempo, tanto das mulheres, como dos homens, relativamente aos papéis e expetativas sociais. A entrada massiva da mulher no ensino superior e na vida profissional constituiu um dos principais eixos de mudança da estrutura familiar e do posicionamento da família na sociedade. Nos tempos mais recentes, a crise económica e social, aliada ao nível de escolaridade crescente das mulheres, tem trazido mudanças sociologicamente significativas à família, não só porque se propõe a necessidade de maior partilha de tarefas entre homens e mulheres, como pelo facto de a mulher representar, em muitos casos, a fonte de rendimento mais elevada da família. Estes estudos enfatizam, assim, a emergência de novos padrões relativamente à estrutura da família e de outros valores relativamente aos papéis masculinos desejáveis, sobretudo ao nível da parentalidade.

No que respeita à partilha de tarefas domésticas e familiares, a literatura produzida em contexto dos países nórdicos acentua a crescente preocupação com a necessidade de os homens-pais atribuírem mais importância às atividades com os filhos e ao tempo despendido com eles. O movimento que conduz a estas mudanças é de ordem política e impulsionado pelas feministas liberais, para quem as mudanças legislativas representam sempre um primeiro passo para mudanças mais profundas.

A partilha das atividades domésticas e familiares por parte dos homens é interpretada, não só a partir da assunção sobre a emancipação feminina e a forma como os homens se adaptam e respondem a novas situações familiares em que as mulheres se auto-percecionam como estando em relações simétricas, mas também a partir da ideia de que os homens têm ganho mais interesse pela família, sobretudo pelos seus papéis junto aos filhos, como educadores. Tal como se observou no capítulo 1, as crianças adquiriram desde o início do século XX, um estatuto muito especial no seio das sociedades modernas, atraindo sobre si uma enorme centralidade de cuidados materiais e

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emocionais (Schouten e Lourenço 2012). No espaço doméstico e familiar elas representam diferentes modos de estar por parte dos pais, especialmente do pai que, desfazendo-se da expetativa de ser “cabeça de casal”, se apresenta no papel mais tradicionalmente adstrito à mãe, envolvido nas atividades de jogo, lazer e cuidado dos filhos. Estas mudanças, observadas com mais consistência em homens com níveis de escolaridade mais elevados e também mais jovens, acompanham mutações a que se assiste nos padrões culturais e que têm proposto novos modelos de masculinidade e feminilidade. Trata-se, no entanto, de processos ainda sob análise exploratória, designadamente no contexto dos países do sul da Europa.