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Problemática: Tempo, Tecnologia e Género

1.2.3. Tempo na gestão do lar: uma questão de género

O feminismo que ressurgiu no mundo ocidental nos anos 60 do século XX impulsionou, num primeiro momento, o estudo do uso do tempo no contexto doméstico, com o objetivo de demonstrar que era no espaço e no tempo domésticos que se configurava uma das maiores desvantagens sociais das mulheres, em comparação com os homens. Os conceitos entretanto desenvolvidos, como “tempo genderizado” (gendered time) e “tempo

3 Projeto realizado no Instituto de Ciências Sociais (ICS) entre 2008 e 2011, coordenado por

Karin Wall, Sofia Aboim e Vanessa Cunha cujo objetivo consiste em compreender a inter- relação entre trajetórias familiares e redes sociais. Ver também Cunha 2007.

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público” e “tempo privado”, formam uma chave para um melhor entendimento das desigualdades de género na sociedade nas suas diversas dimensões. Com efeito, o movimento feminista acompanhou a reivindicação da valorização das tarefas normalmente executadas pela mulher. Mais genericamente, foi proposto um debate sobre a importância das lides de casa e dos cuidados prestados em família. Durante alguns anos, existia um debate aceso sobre uma eventual remuneração do trabalho das mulheres domésticas (Dalla Costa e James 1972; Bruyn-Hundt 2003; Folbre 1994; Folbre 1995). Mas o busílis da questão, para o movimento feminista, era debater e concertar formas para se atingir uma partilha mais igualitária do trabalho doméstico entre homens e mulheres. A um outro nível, prestava-se atenção às normas e às representações que podiam, eventualmente, explicar por que razões as mulheres, em geral, aceitavam uma situação que era tão desvantajosa para elas e não a consideravam injusta, mostrando, inclusivamente, gratidão ou chegando a pedir desculpa aos homens que as “ajudavam” nas lides domésticas (Afonso 2003; Torres et al. 2000; Amâncio 2004). Os homens, tal como as mulheres, tinham, neste contexto, a tendência de “naturalizar”, ou seja, de assumir a existência de capacidades e inclinações supostamente inatas e distintas para cada um dos sexos. E para as mulheres tais capacidades e tarefas incluíam, supostamente, um talento especial para o cuidado do lar e dos seus habitantes.

A responsabilidade das mulheres pela vida doméstica não deve ser equiparada a “poder”. Alguns estudos sugerem que as mulheres não deixam prevalecer as suas preferências no decorrer da vida doméstica e em família, mas que dão prioridade aos desejos do marido e dos filhos, nomeadamente no que diz respeito à ementa e ao lazer (Cockburn e Omrod 1993: 134; Kaufmann 2005). Recordemos, a este respeito, que o célebre livro de Betty Friedan, The

feminine mystique (1963), salientara a grande diferença de papéis entre

mulheres e homens em famílias da classe média americana, podendo ser lido como um estudo crítico do uso diferenciado do tempo. Através das entrevistas realizadas, a autora concluiu que esta genderização tinha consequências graves ao nível de saúde física e mental de muitas das mulheres que se dedicavam a tempo completo ao trabalho doméstico.

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Foi neste espírito que feministas como Delphy (1970), Dalla Costa e James (1972) e Oakley (1976) se detiveram sobre a importância do trabalho caseiro, descrevendo os modos como as mulheres com quem se cruzavam nas suas investigações passavam o seu tempo. Afinal, era um tempo que quase nunca despendiam “com elas próprias”, mas que estava colonizado pelas lógicas patriarcal e capitalista. Em particular, destacava-se o impedimento que essa própria colonização significava para o desenvolvimento dos interesses e ambições extra-domésticas das mulheres. A “falta de tempo” era apontada nos debates sobre a participação das mulheres na vida pública como um dos grandes obstáculos para o seu envolvimento na vida política, e o progresso na sua carreira. Desde então, a atenção especial dedicada ao uso do tempo tem sido (implicita ou explicitamente) uma constante em estudos e discursos feministas.

A literatura, inclusive os resultados de inquéritos sobre o tempo (ver capítulo 2), diz-nos que nos casais, hoje em dia, muitos homens participam, de uma forma ou de outra, nas tarefas domésticas, havendo, porém, diferenças na duração, na frequência e no tipo da sua participação. O homem pode dar “uma ajuda” à mulher numa tarefa, considerando isso já como uma participação. Mas, de acordo com estudos sobre a divisão das tarefas do casal e o tempo despendido nelas, os homens não participam de uma forma regular e ainda participam menos nas tarefas rotineiras, ou nas tarefas que ambos os elementos do casal consideram como pouco agradáveis. Cabem, em geral, às mulheres as time-dependent tasks, ou seja, aquelas tarefas que não podem esperar, enquanto os homens fazem trabalhos domésticos menos urgentes, às horas que lhes são convenientes (Perista 2002; Perista e Chagas Lopes 1999; Sullivan 1997; Santos 2006: 233). Segundo estes e outros estudos, há certas tarefas em que os homens se envolvem mais do que noutras, como por exemplo, as administrativas, enquanto o tratamento da roupa (a lavagem, o passar a ferro, os consertos da roupa e a arrumação) em muitos agregados domésticos é domínio exclusivo das mulheres.

Contudo, há que ter em conta que as normas para a execução e os resultados do trabalho doméstico, inclusive de tarefas familiares, se têm alterado ao longo do tempo. Para além do já referido maior investimento no

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acompanhamento e na educação dos filhos, as exigências quanto à higiene (da casa, da roupa, e do corpo) têm sido reforçadas (Elias 1989-1990; Denèfle 1995; Ashenburg 2007; Van Dijk 2011: 1-20).

Ainda assim, no mundo ocidental existem meios para aliviar a pressão de tempo provocada pelas normas que regulam a gestão de um lar. Verifica-se que atividades, tais como a costura, a confeção de doces e conservas e até o fabrico do pão, antigamente atribuídas à dona de casa, passaram para o mercado (Segalen 1981: 278). Quem tem recursos financeiros à sua disposição pode contratar serviços de um(a) empregado(a) doméstico(a) (quase sempre uma mulher, facto que contribui para a reprodução dos papéis de género), ou recorrer a vários serviços no exterior. Com efeito, o setor de prestação de atividades e serviços domésticos tem registado um desenvolvimento muito intenso nos últimos anos, o que se atribuí a mudanças nos estilos de vida e transformações na organização dos tempos de trabalho, mas também ao papel ativo da mulher no mercado de trabalho formal. A literatura sobre a taxa de penetração deste setor é escassa em Portugal, inclusive para destrinçar as quantias despendidas pelas famílias neste tipo de serviços.