• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO I O DIREITO, O PROCESSO E ALGUNS INSTITUTOS

3.3 Personificação Societária

3.3.3 A Personalização da Pessoa Jurídica como Atividade Promocional

Com o normativismo, restou ao Estado aplicar as devidas sanções pelo descumprimento às normas postas, denominada tal atividade como “função repressiva”. Trata-se de um “mal”, cominado hipoteticamente como decorrência imposta a certas condutas tidas como socialmente indesejáveis – o que corresponde à noção de pena. É bastante eficiente a idéia de sanção negativa, de “mal” cominado à atuação comissiva. Trata-se de obter a inação, para o que o mais eficaz é ameaçar agressivamente a ação.

O termo “sanção positiva” foi trazido à dogmática jurídica através de Norberto Bobbio143 que, segundo sua proposição, corresponde ao vocábulo “pessoa jurídica”. Com grande sensibilidade, enunciou a fundamental dicotomia quanto à função e à análise do direito. Trouxe à luz novas perspectivas do direito. O conceito de “sanção positiva” insere-se dentro de um contexto intelectual mais amplo.

Em síntese, o Estado busca evitar a adoção de certas condutas através da ameaça. Intenta-se coagir os cidadãos a certos comportamentos através do expediente de sancionar a conduta oposta. Em contraposição à função repressiva do Estado, a função intervencionista ativa corresponde a uma função promocional do direito. Ao invés de o direito intentar a omissão, o ordenamento tenta

142

JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1987, p. 45.

143

BOBBIO, Norberto. Dalla strutura alla funzione. Milão, Ed. Di Comunità, 1977, p. 79. Bobbio afigura-se como o grande nome da filosofia do direito após a segunda metade do séc. XX. Depois de uma vinculação inicial ao pensamento kelseniano, adotou posicionamento renovador e original. Reunidos em Dalla strutura alla funzione encontram-se esses estudos mais recentes (trad. livre).

impelir à ação. Enquanto o Estado passivo e o direito repressivo querem o indivíduo inerte, o Estado intervencionista e o direito promocional querem o indivíduo atuante, praticando as condutas necessárias ao resultado modificador e novo que se visualiza como desejável.144

Para o direito promocional é totalmente ineficaz a noção de sanção como “mal”. A solução é oferecer recompensas e benefícios. Ao invés de reprimir (punir quem adota o comportamento indesejado na esfera negocial), a proposta é o incentivo (premiar quem adota o comportamento desejado).

Enfatiza Bobbio145 que, “partindo de uma situação jurídica em que a atividade empresarial é qualificada como atividade lícita, a incentivação tende a induzir certos empresários a mudar a situação existente, a desincentivação tende a induzir certos outros empresários à inércia”. Para ele, essa distinção corresponde uma duplicidade de enfoques no campo dogmático. Sublinha que a “consideração” quanto aos fins do direito produz um enfoque “funcionalista”, inconfundível com o enfoque estruturalista tradicional.

Tanto para o estruturalismo como para o funcionalismo, o direito se identifica frente a outros fenômenos por se tratar de instrumento de controle social.146 A abordagem em face do funcionalismo dá-se em outro nível, já que o fundamental é o fim do direito e o que o identifica é um alargamento dos seus fins. O direito é tomado como instrumento de controle social - mas, enquanto o estruturalismo adotava controle em sentido de "fiscalização", o funcionalismo acata a acepção de controle como direcionamento de política social.

A conjugação de esforços entre indivíduos e a concentração das riquezas afigura-se um resultado desejável não em si mesmo, mas como meio de atingir outros valores e ideais comunitários. O desenvolvimento cultural e econômico propiciado pela união e pela soma de esforços humanos interessa não apenas aos particulares, mas ao próprio Estado.

144

BOBBIO, Norberto. Dalla strutura alla funzione. Milão, Ed. Di Comunità, 1977, p. 80. Como observa Bobbio, “o fenômeno do direito promocional revela a passagem do Estado que, quando intervém na esfera econômica, limita-se a proteger esta ou aquela atividade produtiva; ao Estado que se propõe também a dirigir a atividade econômica de um país, em seu complexo, em direção a este ou aquele objetivo; a passagem do Estado somente protecionista ao Estado programador”.

145

Op. Cit, p. 31, (trad. livre). 146

COMPARATO, Fabio Konder. S/A – O poder de controle na sociedade anônima. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 12. Embora o mestre paulista trate especificamente à respeito da sociedade anônima, o seu pensamento remete à utilização do direito como instrumento de controle social pelo Estado e da manipulação desse instrumento (ou seja, do controle do controle).

É que o fenômeno associativo produz resultados que nem o próprio Estado poderia atingir por si só. O desenvolvimento da atividade econômica, especificamente, sob forma associativa, permite a multiplicação da riqueza privada e pública, com repercussão sobre terceiros (empregados, comunidade etc.). A associação é meio de obtenção de benefícios não só para seus integrantes como para a generalidade do grupo humano.147 Eis a função da pessoa jurídica em face da qual deve a mesma ser “considerada”.

Para estimular a realização dessas associações e incentivar os seres humanos à concentração de recursos e esforços, o Estado vale-se da "personificação societária". A atribuição de personalidade jurídica corresponde, assim, a uma sanção positiva ou premial, no sentido de um benefício assegurado pelo direito a quem adotar a conduta desejada. 148 Em razão dessa política fiscal o Estado desenvolve um regime jurídico peculiarmente benéfico para o exercício associativo da atividade econômica. Por conseqüência, torna-se juridicamente mais compensadora e atraente a conjugação de esforços e recursos para o exercício da atividade econômica.

Institui-se uma conseqüência jurídica para a adoção da conduta escolhida. E o regime mais favorável consiste justamente em tal consequência jurídica. O aspecto favorável do regime reside, fundamentalmente, em afastar as regras jurídicas que seriam aplicáveis caso a atividade fosse exercida isoladamente, individualmente.

A previsão de regime mais benéfico significa fundamentalmente: a) a não atribuição à pessoa dos sócios das condutas praticadas societariamente; b) a não atribuição à pessoa dos sócios dos direitos e poderes envolvidos na atividade societária e c) a não atribuição à pessoa dos sócios dos deveres envolvidos na atividade societária.

Para Justen Filho, para melhor adequar os termos às práticas do Estado, o conceito de privilégio, porém, pode ser substituído por outro, que melhor revela a fenomenologia ocorrente. Trata-se, como visto, da idéia de “incentivo”. Dentro dessa concepção, visualiza-se a personificação societária como envolvida na atividade promocional do Estado.149

147

JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1987, p. 49.

148

Op. Cit., p. 49. 149

Por final, importa ressaltar, que as condutas lícita ou ilícita da pessoa jurídica, no campo “premial”, são vistas de forma diferente do pensamento de Kelsen, porquanto se identifica a ilicitude por uma qualidade inerentemente indesejável (portanto, desconsiderável) da conduta e não por ser pressuposto de uma sanção. Assim, enquanto em um sistema repressivo o esquema corresponde a “ato ilícito – sanção” e “ato lícito - irrelevância”, no caso de sistema promocional o esquema é “ato ilícito – irrelevância” (desconsidera-o) e “ato lícito – prêmio”.150

A utilização das prerrogativas do artigo 45 (existência autônoma das pessoas jurídicas) do Código Civil, na verdade é um prêmio conferido aos empreendedores que fizerem uso da sociedade de acordo com as funções a ela previstas pelo legislador.

4 O ABUSO (NO EXERCÍCIO) DO DIREITO

A questão central que dirige a pesquisa sobre o abuso dos direitos diz respeito à existência de “limites” à atuação daqueles que, em tese, agem em conformidade com a norma legal. O abuso do direito é um problema bem conhecido na ciência jurídica e reconhecido pela sociedade como algo a coibir. Desde já, porém, é imperioso notar que no direito privado

o abuso do direito entrou, no último meio século, em decadência progressiva. Enquadrado nos parâmetros contrapostos franceses e alemães, exigia, para a sua sobrevivência evolutiva uma síntese que não surgiria. O fenômeno tem passado desapercebido, apesar da multiplicidade de sinais que o atestam; tem porém, uma importância que transcende o

150 Essa concepção do caráter de privilégio é a que se vislumbra na obra de Federico Castro y Bravo, La persona..., cit., p. 25 e ss. e que pudemos abstrair, (trad. livre).

problema do abuso, estendendo-se a áreas largas da ciência do direito. Há, pois, que determiná-lo, explicá-lo e valorá-lo151.