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CAPÍTULO I O DIREITO, O PROCESSO E ALGUNS INSTITUTOS

3.3 Personificação Societária

3.3.2 A Pessoa Jurídica e o Direito de Propriedade

No campo do direito privado, a funcionalização atingiu com maior rigor exatamente àquele que se reputava o mais absoluto dos direitos subjetivos: o

136

JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1987, p. 24.

direito de propriedade. Considerado como a mais perfeita emanação da personalidade, o direito de propriedade foi conceituado como a possibilidade de gozar e de fruir de uma coisa da maneira mais plena e absoluta. Mas a história dos séculos XIX e XX é a narrativa do reconhecimento da funcionalidade do direito de propriedade, assegurado na medida exata em que se destaca sua função social, como, inclusive prevê a Constituição.137

Os reflexos desse fenômeno de funcionalização e da socialização do direito não podiam deixar de operar-se também sobre a pessoa jurídica. Mas a repercussão é ainda mais intensa por outro motivo. É que existe íntima vinculação entre o direito de propriedade e a pessoa jurídica de direito privado, orientada à realização de atividades econômicas. Tem-se notado que a personificação societária corresponderia - senão juridicamente, ao menos econômica e filosoficamente - a uma modalidade especial de exercício do direito de propriedade.138

Tendo o proprietário, contudo, participado de uma sociedade personificada e entregue a ela um bem até então de propriedade pessoal, o fenômeno não corresponde exatamente à alienação. A alienação significa a impossibilidade de o então proprietário fruir, direta ou indiretamente, do bem alienado. O direito de fruir, inerente ao direito de propriedade, é transferido por decorrência da alienação.

Na personificação societária em que ocorra a transferência de bens para integralização de seu capital, o proprietário não recebe, em contrapartida, um valor econômico monetário, recebe ações (ou cotas) e não perde a possibilidade de fruir dos resultados propiciados pelo uso do bem - formalmente pertencente a outro sujeito, inconfundível com o sócio.

A personificação societária assegura essa dissociação entre propriedade e controle, especialmente porque o sócio, embora não proprietário, mantém o controle sobre os bens e a atividade empresarial desempenhada através da pessoa jurídica. A função social e jurídica reconhecida para a propriedade não é eliminada por decorrência da constituição da sociedade e de sua personificação. A grande peculiaridade da personificação societária reside exatamente aí. Inexistindo pessoa jurídica, concentram-se sobre a mesma pessoa a propriedade e o controle. Com o surgimento da pessoa jurídica, a propriedade e o controle tornam-se

137

SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1968, p. 485. 138

COMPARATO, Fabio Konder. S/A – O poder de controle na sociedade anônima. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 81 e ss.

distinguíveis.139 Portanto, devem incidir sobre o titular do poder de controle140, todos os mesmos deveres que forem visualizados relativamente à propriedade - exatamente porque esses deveres e essa funcionalização não apanharam o direito de propriedade, exclusivamente enquanto tal, mas também o fenômeno sob o ângulo do controle.

Para Ascarelli não, existem em Direito, interesses e relações que não digam respeito unicamente aos homens. Por conseguinte, toda a disciplina jurídica concernente às pessoas jurídicas reduz-se, finalmente, a uma disciplina de interesses dos homens que as compõem (uomini nati da ventre di donna), como enfatizava. O chamado interesse social não pode deixar de ser o dos sócios e somente deles. Toda e qualquer abstração ou ficção, aí, é de rejeitar-se. A esse respeito Ascareli relembra a sua conhecida interpretação da sociedade como um contrato plurilateral e afirma que as ações, em que se divide o capital de uma sociedade anônima, nada mais são do que "bens de segundo grau".141

Vale dizer, a funcionalização de todo o direito e, especialmente, do direito de propriedade, não é aspecto isolável da questão da personificação. Muito pelo contrário, a funcionalização atinge também a pessoa jurídica.

Até meados do presente século, não se estabelecia um vínculo imediato sobre a questão da função ( e da relatividade) dos direitos e a da função ( e da relatividade) da pessoa jurídica. E se mantinha a impostação do século passado. Em suma, sobreviveu o tão criticado enfoque absolutista da pessoa jurídica, inobstante tivessem sido arquivadas todas as concepções acerca do absolutismo dos direitos subjetivos.

Para Justen Filho, a explicação mais plausível para tal fenômeno é a ontologização da pessoa jurídica e sua identificação com a idéia de "pessoa física". Ao que supõe, estenderam-se à "pessoa jurídica" os atributos de ser humano. Daí o cunho absoluto do ser humano, conquistado como valor inafastável da civilização humana, haver sido transplantado para a pessoa jurídica.

139

JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1987, p. 44.

140

COMPARATO, Fabio Konder. S/A – O poder de controle na sociedade anônima. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 258. “Tudo isso demonstra que a expressão "pessoa jurídica" designa apenas um complexo de normas jurídicas com um mesmo centro de imputação. Ela nada mais é do que a expressão abreviada desse conjunto de normas. O que não significa - acrescenta - negar, mas, ao contrário, acentuar o valor instrumental dessa noção enquanto indicação de situações subjetivas, ditadas para os homens que compõem essas pessoas jurídicas”.

141

Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo, Saraiva, 1945 (obra esgotada) Apud Comparato, op. cit., p. 236.

Concluindo, afirma o referido autor que, por considerar-se, contudo, que a pessoa jurídica é conceito relativo, histórico e funcionalizado, torna-se viável (senão obrigatório) reconhecer que o regime jurídico aplicável não é idêntico àquele previsto para pessoa física e que os poderes jurídicos atribuídos a tal "pessoa jurídica" têm extensão e conteúdo que não são nem necessária nem ontológicamente idênticos - quer quanto à pessoa física, quer quanto às diversas situações usualmente agrupadas como "pessoas jurídicas". A pessoa jurídica é e só pode ser um instrumento para a obtenção de resultados proveitosos para toda a sociedade. A personificação societária afigura-se como funcionalmente envolvida na consecução de valores e não se encerra em si mesma.142

3.3.3 A Personalização da Pessoa Jurídica como Atividade Promocional do