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CAPÍTULO I O DIREITO, O PROCESSO E ALGUNS INSTITUTOS

4.3 Na Alemanha

Os traços marcantes do desenvolvimento da teoria do abuso na Alemanha, segundo Luiz Sergio Fernandes de Souza, são o imperativo e a ação coercitiva que asseguram o respeito à norma. A força e o direito acabam por se confundir. Já a Inglaterra dá maior importância ao aspecto utilitário, a Itália impõe a obediência ao princípio da boa-fé, enquanto que na França procura-se o fundamento na idéia de liberdade 175

Segundo relato de Patrícia Carla de Deus Lima, entre os países que se posicionaram expressamente contra o abuso, estão a Suíça e a Alemanha, que, no entanto, seguiram caminhos diversos para identificar os elementos caracterizadores do abuso de direito por seu titular. Na Suíça existe a previsão legal no sentido de que o titular do direito deve agir de acordo com o princípio de boa-fé, não sendo tutelado pela lei o “manifesto abuso” do próprio direito. No ordenamento alemão, outro foi o critério adotado para identificar e coibir o abuso. Preferiu o legislador tedesco tutelar as hipóteses nas quais o exercício do direito tem por escopo único provocar danos a outrem.176

Relata Brunela Vieira De Vincenzi177 que, na Alemanha, não havia, como no direito francês, uma tão arraigada concepção jussubjetivista. Os influxos franceses sobre o abuso do direito fizeram-se sentir somente a partir da década de 30 do século XIX. O ambiente diverso não permitiu adoção do sistema francês;

173

VINCENZI. Brunela Vieira De, A boa-fé no processo civil, São Paulo: Atlas, 2003, p. 148-149. 174

“Tendem a fazer do abuso uma dependência da responsabilidade civil: o abuso do direito é a falta no exercício dos direitos”, (trad. livre).

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Op. cit., p. 27. 176

LIMA. Patrícia Carla de Deus, O abuso do direito de defesa no processo civil: reflexões sobre o tema no direito e na doutrina italiana, Revista de Processo, nº 122, São Paulo: RT, 2005, p. 98-99.

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observou-se no modelo alemão de abuso uma teoria nova, com características marcadamente próprias tendentes para o objetivismo germânico.

Segundo a autora, além das concepções filosóficas diferentes que não permitiram a simples migração da teoria do abuso do direito para a Alemanha, algumas das hipóteses identificadas na França como abuso do direito eram naquele país enquadradas basicamente em dois institutos, a exceptio doli e a chicana. A exceptio doli é usada no direito alemão para impedir o exercício de um direito perante o judiciário, o qual infrinja por alguma circunstância a boa-fé e por isso não pode ser admitido. Com exceção, na verdade, a exceptio doli somente impede o exercício de uma ação judicial, sem maiores conseqüências na relação jurídico- material.

Assevera Brunela que, no direito alemão, existiam para as mesmas situações verificadas pela jurisprudência francesa válvulas de escape (institutos tópicos) que permitiam aos tribunais sancionar os atos abusivos. Assim, além da exceptio doli, as relações de vizinhança eram reguladas de forma mais genérica, abarcando grande número de casos que no direito francês – para o qual a propriedade originariamente era direito absoluto – seriam tidos como abuso do direito. Por tais razões, sucintamente expostas, o Código Civil Alemão (BGB) – fruto de um novo momento histórico-filosófico, chamado de segunda codificação – para coibir a prática abusiva de direitos tutelou especificadamente a chicana em sentido restrito. Destarte, o BGB, em seu § 226, estabelece que “o exercício é inadmissível quando ele só possa ter por escopo infringir um dano a outrem”.178

A concepção restritiva da chicana era tecnicamente perfeita: incluída na parte geral do Código, permitia sua aplicação “a todo o direito privado libertando o problema, em definitivo da propriedade e dos conflitos de vizinhança”, dispensando, ainda, qualquer pesquisa sobre a culpa do agente ou outro critério subjetivo. Contudo, verificou-se um grave problema, ao indicar que o exercício só pudesse ter o fim de prejudicar alguém, ou seja, somente o fim de causar danos a outrem, restringia por demais seu campo de aplicação. Afinal, ao exercer um direito, vários são os escopos de seu titular, alguns justificáveis outros não. A proibição da chicana falhou. Como medida tópica que era, por demais restritiva, não possibilitou sua aplicação sistemática para todo o direito privado; o pensamento sistemático da época tinha outros interesses.

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Segundo Brunela, buscou-se a partir de então vedar o exercício inadmissível de direitos pela cláusula dos bons costumes contida no § 826 do BGB: “Aquele que, de uma forma que atente contra os bons costumes, inflija dolosamente um dano a outrem, fica obrigado à indenização do dano”. A aplicação do parágrafo em questão também não foi bem-sucedida. Dessa maneira, exigia-se a comprovação do dolo, ficando sem tutela uma série de situações praticadas culposamente. Por outro lado, a sanção expressamente predeterminada para a prática do abuso, qual seja a indenização do dano, não permitia a cessão do abuso, em outras palavras, a execução específica da tutela jurídica. Diante dessas circunstâncias, foi preciso apelar para a cláusula geral da boa-fé contida no § 242 do BGB: “O devedor está obrigado a executar a prestação tal como o exige a boa-fé, com consideração dos costumes do tráfego”. A boa-fé possibilitaria o controle do exercício abusivo em todos os setores do direito, indicava um dever positivo de conduta e possibilitava reprimir o exercício inadmissível de posições jurídicas antes que ocorressem danos, e não somente a indenização pelos prejuízos causados.179

Sobre a evolução da teoria do abuso do direito na Alemanha, conclui Menezes Cordeiro que

a condenação jurídica do exercício inadmissível dos direitos derivou, inicialmente, da ponderação pontual de casos concretos, à luz de normas e princípios jurídicos. Presente uma série de decisões, em prática jurisprudencial consagrada, pôde passar-se à elaboração duma teoria do abuso. A vida percorrida é, com clareza, a da Ciência do direito. Opõe-se, metodologicamente, a uma outra, traduzida no pensar do abuso a partir de considerações gerais, políticas ou sociais como ocorreu na França. Neste sentido, a evolução do abuso do direito na doutrina da segunda codificação, conduziu à cientificação do conceito180.