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CAPÍTULO I O DIREITO, O PROCESSO E ALGUNS INSTITUTOS

4.6 O Abuso do Direito no Brasil

Coube ao Ministro Alfredo Valladão, a propósito do Projeto de Clóvis Beviláqua, que se discutia no Senado, levantar o problema do abuso do direito. Em artigo publicado no Jornal do Commercio, de 04 de fevereiro de 1912, o Ministro chamava a atenção para o tema, que já se inscrevera nos códigos da Alemanha e da Suíça. Noticiando a viva polêmica travada entre Saleilles e Josserand, de um lado, Planiol e Esmein de outro, Alfredo Valladão sustentava que não existem direitos absolutos, concepção que deveria orientar o Código brasileiro, sob pena de a legislação já nascer ultrapassada. Dizia no artigo – “o absoluto do direito caracteriza-se pela anormalidade de seu exercício, pelo seu exercício anti-social. Esta há de ser apreciada objetivamente, embora, em muitos casos, a apreciação objetiva envolva a necessidade de se conhecer o elemento psicológico”.188

Mas a inserção do abuso do direito nos limites da teoria geral dos atos ilícitos também é objeto de muita controvérsia. Há aqueles que consideram o ato abusivo um simples ilícito, categoria não autônoma, com repercussões no campo da responsabilidade civil.

Clóvis Beviláqua, Plinio Barreto e Carvalho Santos praticamente identificam os conceitos de “abuso do direito e ilícito”, contudo, isto implicaria praticamente a negação do abuso do direito como conceito ou doutrina autônoma, segundo reconhece Alvino Lima.189

187

CUNHA DE SÁ. Abuso do direito. Coimbra: Livraria Almedina, 1997, p. 70., entretanto, escrevendo antes do fim do império soviético, chama a atenção para o fato de que, o dispositivo acha-se praticamente em desuso, por reconhecer-se que o caráter provisório do direito na construção de uma sociedade socialista tornaria a proibição supérflua.

188

Alfredo Valladão, O abuso do direito, RT, São Paulo, p. 330-338. Apud Haroldo Valladão, Condenação do abuso de direito in Arquivo do Ministério da Justiça, Rio de Janeiro: ano XXVI, setembro de 1968, vol. 107, p. 12.

189

LIMA. Alvino. “não fossem distintos os campos do abuso do direito e da responsabilidade civil, bastaria o preceito do artigo 159 do Código de 1916” in Abuso do direito. Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, Rio de Janeiro: Borsoi, 1947, vol. I, p. 346. Veja-se, com redação um pouco diversa, o artigo 186 do Código Civil vigente.

Pontes de Miranda, inspirando-se em Charmont, diz que o direito não cessa onde o abuso começa; o que dá ensejo à reparação é a existência de dano.190 Segundo Pontes de Miranda, “exercendo o meu direito, posso lesar a outro, ainda se não saio do meu direito, isto é, da linha imaginária que é o meu direito”. Por isso, “o estudo do abuso do direito é a pesquisa dos encontros, dos ferimentos que os direitos fazem”.191

No Brasil, o instituto vem sendo utilizado constantemente na doutrina e jurisprudência, que se valem do abuso do direito como uma espécie de princípio geral, aplicando a teoria a vários ramos do direito, o que acontece com as figuras do abuso do poder econômico e a concorrência desleal, as relações de vizinhança, as práticas e cláusulas abusivas contra o consumidor, o abuso de posições jurídicas processuais e o dano processual, os crimes cometidos com o abuso de poder, o peculato e o abuso de autoridade.

Ocorre que para a configuração de cada um desses institutos, além do próprio “abuso do direito”, há de estar presente um elemento subjetivo do agente, ou seja, deve ter ele agido com dolo ou culpa, causando um dano a alguém. Esse alguém que teve seu patrimônio ou sua esfera moral violados exige do direito a reparação dos prejuízos sofridos e a punição do causador do dano. Em suma, equipara-se o abuso, como aconteceu na França, à responsabilidade civil. Aplica-se o art. 927 do Código Civil, ou, em caso de dolo, o ato praticado é anulado e a parte prejudicada, indenizada.

Tal tendência transparece nos tratados dos juristas mais respeitados do país. Pontes de Miranda, apesar de nomear o critério do art. 160, I, de objetivo, e subjetivo o alemão (referindo-se ao § 226 do BGB), demonstra a tentativa de conduzir a idéia de abuso à responsabilidade civil, dependente da verificação da culpa (ou da vontade de alguma forma manifestada) e da ocorrência de dano quando comenta que, “no direito civil brasileiro, não se precisa indagar do propósito único de lesar; basta que lese com culpa”.192

Caio Mário da Silva Pereira, ao comentar o instituto do abuso do direito, noticia que

190

Idem, p. 62 191

PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado, vol. LIII, Rio de Janeiro, Ed. Borsoi, 1966, p. 67-68. 192

é comum situar a teoria do abuso de direito no campo do ato ilícito, pela similitude de efeitos, e, não encontrando outra localização adequada, procura-se partir de que, se o abuso de direito gera para o agente o dever de reparar o dano, da mesma forma que o ato ilícito, a aproximação dos efeitos leva a justificar a inclusão de uma na doutrina legal do outro.193

A jurisprudênca parece aplicar a tese do abuso do direito às mais diversas situações da vida, determinando sempre a indenização ao sujeito que tenha causado dano no exercício abusivo. De qualquer sorte, quando é aplicada a teoria, o fundamento jurídico nunca é somente o abuso do direito; os julgadores procuram assimilar o abuso à responsabilidade civil, aplicando a regra do art. 927 do Código Civil, ou combinar como abuso uma norma expressa, seja ela legal seja contratual, como se fosse uma forma de limitar a incidência do “sobre-princípio”. Ou, na verdade trata-se de uma espécie de temor em aplicar a teoria do abuso de direito, diante de seus critérios e limites tão rarefeitos e difíceis de identificar.

A redação final do novo Código Civil, Lei nº 10.406/2002, estabelece em seu art. 187 que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê- lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Tentou, assim, o legislador aproximar institutos inconciliáveis: de um lado, a assimilação do abuso à responsabilidade civil, como fazem a doutrina e jurisprudência francesa, e, de outro lado, utiliza a regra da boa-fé como limite ao exercício abusivo, proveniente do modelo alemão, o que, possivelmente, tornará difícil sua aplicação prática, o que, afinal, já acontece hoje.