• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO I O DIREITO, O PROCESSO E ALGUNS INSTITUTOS

4.2 O Abuso do Direito na França

aemulatio, a exceptio doli e a regulação das relações de vizinhança. A aemulatio é o exercício de um direito sem utilidade própria e com a intenção de prejudicar a outrem. A base textual é fraca e não permite dizer que houve uma teoria dos atos emulativos no Direito Romano. No direito medieval, contudo, houve alargamento dos atos emulativos, especialmente no que diz respeito ao direito de vizinhança. Tal se deve, principalmente, ao espírito humanista-cristão da época, que reprova esse tipo de conduta, fazendo incidir a responsabilidade e a reparação dos danos causados. A exceptio doli, como forma de defesa, permitia interromper uma actio manifestamente injusta. Não havia, contudo, o exercício generalizado ou institucionalizado da exceção como forma de coibir o abuso no Direito Romano.161

Para Brunela Vieira de Vincenzi162, as relações de vizinhança são, na verdade – desde o Direito Romano - limitações expressas ao direito de propriedade. Tanto em Roma como no direito civil do século XIX, tratou-se de limitar o uso da propriedade para possibilitar a convivência pacífica nas cidades que cresciam em número de habitantes sem um proporcional aumento de seu tamanho, considerando as circunstâncias políticas e sociais de cada época.

Para Menezes Cordeiro, as relações de vizinhança, ao contrário de constituir uma teoria autônoma, são circunstâncias negativadoras dos direitos reais que as suportam, os quais, em face de outros direitos reais, relativizam-se. Mesmo que se quisesse utilizar a expressão abuso de direito, nessas situações não se faria necessário, pois se trata de violação a norma previamente estabelecida, ficando sua aplicação em aberto somente para casos não expressos. Em suma: “a idéia de que, no exercício dos direitos, deve ser tida em conta a posição das outras pessoas, não era estranha ao direito romano, como demonstram as relações de vizinhança. O que contudo não coincide com o abuso de direito”.163

Pode-se concluir que o instituto, pragmática e cientificamente, surgiu na França, diante de casos concretos tutelados pelos tribunais e posteriormente estruturados pela doutrina, espalhando-se de diferentes formas pelo mundo.

4.2 O Abuso do Direito na França

161

VINCENZI. Brunela Vieira De, A boa-fé no processo civil, São Paulo: Atlas, 2003, p. 144. 162

Op. cit. p. 145 163

Relata Brunela Vieira De Vincenzi164, que o Código de Napoleão não trouxe qualquer limitação ao exercício de direitos. Ao contrário. Por tal motivo, as decisões dos tribunais que acataram a teoria do abuso não mencionavam qualquer norma expressa. As decisões foram baseadas: nos princípios da moral e da eqüidade; na inexistência de utilidade própria no exercício do direito; na utilização do direito com o fim diverso daquele atribuído pela lei; na intenção de prejudicar ou na ocorrência de falta grave.

Ao contrário do que possa parecer, todavia, a aceitação da teoria do abuso do direito não importava na ruptura com o pensamento jussubjetivo. Com isso, era possível limitar o exercício de um direito subjetivo por meio de outro direito, sem quebrar a harmonia sistêmica reinante na época. “A novidade é de entender a nível cultural. Incapaz de, imediatamente, gerar novas sínteses o jussubjetivismo origina, apenas um avanço tímido, por negação: o abuso do direito”165.

O desenvolvimento da teoria segue basicamente por dois caminhos: os negativistas, tendo como maior expoente Planiol, que não aceitam sequer a possibilidade de abuso do direito; e outras tendências e concepções em que se dividiram os que defendiam a teoria. Planiol, o grande crítico da idéia de abuso do direito, dizia que a expressão era uma contradição em termos, logomaquia. É célebre sua expressão: “o direito cessa onde começa o abuso” e, portanto, se se usa o direito, o ato é lícito; se ultrapassado o limite, o ato é ilícito e incide a regra da responsabilidade civil, ensejando a reparação dos prejuízos, demonstrada a culpa do causador do dano.166

Sob a ótica desse formalismo jurídico, ou se exerce um direito, pelo que não se pode cogitar de abuso, ou então se está praticando um ilícito, razão pela qual também não há de se falar em abuso. Nestes termos, a discussão aponta para a dificuldade em separar o direito e a moral, a norma e a aplicação do direito, distinções que surgem somente quando o pensamento jurídico se dá conta do contraste entre o ordenamento normativo e os fatos, esferas que aparecem imbricadas na elaboração dos romanos.

164

Op. Cit., p. 147. 165

Menezes Cordeiro, op. cit., p. 682. 166

Segundo relata Luiz Sergio Fernandes de Souza167, para a Escola de Bentham e de James Mill, o direito não é mais do que um meio de legitimar e satisfazer interesses, vez que a Inglaterra dá maior importância ao aspecto utilitário. Na França, sob a influência da filosofia do século XVIII, procurou-se o fundamento do direito na idéia de liberdade; o direito é, ao mesmo tempo, a consequência e a condição da liberdade; é uma faculdade de agir, uma garantia contra o Estado, inerente à natureza humana.168 Mas, com a crise do liberalismo, percebeu-se a quantas injustiças uma tal idéia de liberdade, de expressão absoluta, rendia ensejo.

De acordo com Luiz Sergio Fernandes de Souza, Saleilles entendia que o abuso do direito é o exercício contrário ao destino econômico ou social do direito subjetivo, aquele reprovado pela consciência pública, já que todo direito, do ponto de vista social, é relativo. Saleilles chama a atenção para uma particular evolução da teoria da responsabilidade civil, delineada pela jurisprudência francesa no terreno dos fatos industriais e no domínio do direito administrativo. Trata-se da teoria do risco, segundo a qual a responsabilidade não está fundada na noção da culpa, derivando do simples exercício de atividade que, pela sua própria natureza, são potencialmente ofensivas, conquanto lícitas. A configuração desta prática pressupõe a intenção de prejudicar: “um ato cujo efeito só pode ser o de prejudicar o outro, sem interesse apreciável e legítimo, não pode nunca constituir exercício lícito de um direito”.169

Reafirmando o reconhecimento da destinação social do direito, o anteprojeto do novo Código Civil francês, no seu art. 147, considera abusivo todo ato ou fato que exceda manifestamente, pela intenção do seu sujeito, pelo seu objeto ou pelas circunstâncias em que é realizado, o exercício normal de um direito. De maneira idêntica, trata o Código Civil espanhol.170

167

SOUZA, Luiz Sergio Fernandes de. Abuso de Direito Processual: Uma teoria pragmática. São Paulo: Ed. RT, 2005. p. 27.

168

Everardo da Cunha Luna, ao lado da referência ao liberalismo econômico inglês e ao idealismo alemão, campo fértil para o absolutismo dos direitos individuais, também faz alusão ao individualismo dos anglo-saxônicos. Diz, entretanto que, para Luiz Legaz y Lacambra, a noção de abuso é devida ao utilitarismo de Bentham (Everardo da Cunha Luna, Abuso do Direito, 2 ed., Rio de Janeiro, Forense, 1980, p. 44 e 90). Em outra passagem, considera que “o equilibrio britânico não poderia deixar-se esvaziar por um individualismo feroz, a ponto de prejudicar as boas relações dos indivíduos típicos, ninguém melhor que ingleses tem a consciência do social. O social, entre britânicos, é uma extensão do individual, e, não como entre latinos, uma pedra no meio do caminho”.

169

SALEILLES. De l` abus de droit – rapport presente a la première sous-commission de la commission de revision du code civil, in Bulletin de la Société D` Études Législatives, Paris, Arthur Rousseau Éditeur, 1905. Apud Luiz Sergio Fernandes de Souza. Abuso de Direito Processual: Uma teoria pragmática. São Paulo: Ed. RT, 2005. p. 30.

170

Assim dispõe o art. 7º, alínea 2, do Código Civil espanhol: “A lei não ampara o abuso do direito ou seu exercício anti- social. Todo ato ou omissão que, pela intenção do seu autor, por seu objeto ou pelas circunstâncias em que se realize, ultrapasse manifestamente os limites normais do exercício de um direito, com dano para terceiro, dará lugar à

Vale ressaltar que a orientação objetivista não se esgota na conformidade do exercício do direito à sua finalidade econômica. Também na elaboração de Saleilles encontra-se outro critério, de inspiração finalista, que tem em conta a conformidade do exercício do direito aos fins para os quais ele foi conferido ao seu titular. Abusa do direito quem o exerce com escopo diverso daquele previsto em lei, ainda que inexista o ânimo de prejudicar.171

Josserand, um dos principais defensores da teoria do abuso do direito, contestando as afirmações de Planiol, esclareceu que

un acto sí puede ser la vez conforme y contrario al derecho, porque la palavra envuelve dos acepciones muy diferentes. El acto abusivo es el que, cumplido en virtud de un derecho determinado, de un derecho subjetivo, como la propriedad, es sim embargo contrario al derecho considerado en conjunto, a la juridicidad (...) del mismo modo que com armas lícitas se puede cometer delitos, y hasta crímenes (...) Pero puede suceder y sucede con frecuencia que un acto sea conforme a determinado derecho y sea, no obstante, ilícito, por ser contrario a la buena fe, a esas reglas que dominan todo el derecho y que constituyen lo que Maurice Hauriou llamaba la superlegalidad.172

Com efeito, Josserand considerava que os direitos têm, assim como a lei, seus motivos e fins próprios. O abuso do direito seria o exercício que não correspondia à função preconcebida, o direito não atendia a seu fim social. O jurista francês coloca o direito subjetivo num contexto muito maior do que o do jusprivatismo da época; pretende colocá-lo em conflito com o sistema social, adequando-o à realidade e ao momento histórico. A princípio, também sustenta uma posição objetiva, filiando-se ao ponto de vista da finalidade social do direito subjetivo. Assim, abusa do seu direito aquele que o exerce em desrespeito à sua finalidade e espírito próprios, em contrariedade às regras sociais.

correspondente indenização e à adoção das medidas judiciais ou administrativas que impeçam a persistência do abuso”, (trad. livre).

171

O Código Civil da Bolívia tem pelo menos dois dispositivos de inspiração nitidamente objetivista: “Art. 107: O proprietário não pode realizar atos com o único propósito de prejudicar ou de molestar outros, e, em geral, não lhe é permitido exercer seu direito de forma contrária ao fim econômico ou social em razão do qual foi conferido; art. 1279: Os direitos se exercem e os deveres se cumprem conforme a sua natureza e conteúdo específico, que resultam das disposições do ordenamento jurídico, das regras de boa-fé e do seu destino econômico-social”.

172

JOSSERAND, Louis. Op. Cit. p. 24. “um ato pode ser, ao mesmo tempo, conforme e contrário ao direito, porque a palavra envolve duas acepções muito diferentes. O ato abusivo é aquele que, cumprido em virtude de um direito determinado, de um direito subjetivo, como o de propriedade, é contrário ao direito considerado em seu conjunto, à juridicidade (...) do mesmo modo que com armas lícitas se pode cometer delitos e até crimes (...) Porém, pode suceder e sucede com frequência que um ato seja conforme a determinado direito e seja, não obstante, ilícito, por ser contrário à boa-fé, e essas regras que dominam todo o direito e que constituem o que Maurice Hauriou chamava de superlegalidade” (trad. livre).

Relata Brunela Vieira De Vincenzi173 que, atualmente, contudo, o que se verifica é que a doutrina e a jurisprudência francesa aproximaram o abuso do direito à falta e à responsabilidade civil. As decisões mais recentes referem-se ao art. 1.382 do Code, tendem a fazer do abuso une dépendance de la responsabilité civile: l´abus des droit c’est la faute dans l’usage dês droit174. A conseqüência, portanto, para a prática de um ilícito é a mesma para o abuso do direito: a indenização dos prejuízos.