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CAPÍTULO I O DIREITO, O PROCESSO E ALGUNS INSTITUTOS

4.1 Histórico

A vedação dos atos emulativos, ou seja, aos atos praticados com intenção de prejudicar, sem utilidade pessoal ou com utilidade mínima, mostra-se como simples afirmações feitas por antigos autores, de decisões judiciais ou de formulações doutrinárias, com as quais se buscam mitigar o jus abutendi.152 Os textos que promovem a proibição dos atos emulativos surgem a partir do séc. II do Império, com lastro em considerações éticas e humanitárias.

A doutrina mesma do abuso do direito não encontra fundamento no direito romano, na aemulatio, embora existam ali alguns casos de vedação da prática de “atos lesivos sem utilidade própria, mas antes com interesse de lesar”.153 Segundo Luiz Sergio Fernandes de Souza, somente se pode falar de uma teoria do abuso do direito no contexto histórico-social do liberalismo capitalista da segunda metade do séc. XX, que coincide com a derrocada do formalismo jurídico.154

No Código Civil da Prússia (1794), Primeira Parte, Título VI, §§ 36 e 37, também é possível encontrar dispositivos genéricos acerca dos atos emulativos: “o que exerce seu direito dentro dos limites próprios, não é obrigado a reparar o dano que causa a outrem, mas deve repará-lo, quando resulta claramente das circunstâncias que, entre algumas maneiras possíveis de exercícios de seu direito, foi escolhida a que é prejudicial a outrem, com intenção de lhe acarretar dano”.155

No campo da construção do conceito de abuso do direito, aumenta a percepção, ainda na Idade Média, da existência de limites no exercício dos direitos, que é conseqüência das novas relações de vizinhança. Assim, ao lado da teoria da emulação, de viés subjetivista, surge uma nova concepção, de natureza objetivista, que não leva em conta a intenção de lesar, mas sim o efetivo resultado lesivo. Trata- se da teoria das imissões, entendida esta última expressão como penetração de ruídos, calor, fumaça, odores, enfim, de toda sorte de incômodos que extrapolem o

151

MENEZES CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e. A boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1984. v.2, p. 697. 152

SESSAREGO. Carlos Fernández, Abuso del derecho, Buenos Aires, Editorial Astrea, 1992, p. 96, (trad. livre). 153

ROTONDI. Mario, Instituiciones de Derecho Privado, Arcelona, Labor S.A, 1953, p. 99; Fernandéz Sessarego (op. Cit., op. 97) e Pontes de Miranda, Tratado, Tomo LIII, Rio de Janeiro, Borsoi, 1966, p. 66.

154

SOUZA, Luiz Sergio Fernandes de. Abuso de Direito Processual: Uma teoria pragmática. São Paulo: Ed. RT, 2005. p. 22. 155

limite da normalidade e da utilidade. Com isso, a idéia de ilicitude vai-se alargando e a noção de responsabilidade também.156

A despeito mesmo da concepção individualista e idealista do Código Civil napoleônico, que supunha não deixar nada ao arbítrio do intérprete, é interessante perceber como essa concepção mais elástica da figura do abuso do direito foi, pouco a pouco, ganhando corpo. Foi exatamente esse espírito individualista que gestou a concepção moderna do abuso do direito, como forma de temperar, mantida a aparência de legalidade, o excessivo egoísmo liberal-burguês, por mais paradoxal que possa parecer.

Segundo Luiz Sergio Fernandes de Souza157, Charmont já afirmava no início do século passado, que o interesse pela doutrina do abuso do direito ressurgira, havia então quinze anos, na base do caso concreto. Ela é o repositório das expectativas de uma sociedade em ebulição, de mudanças que interferem na maneira de ser e de viver dos povos, influenciando o campo das ciências culturais, particularmente a concepção do direito.

Os romanos diziam que aquele que exercia um direito não agia com culpa, tampouco poderia incorrer em responsabilidade – neminem laedit qui iure suo utitur. Essa também era a concepção que prevaleceu por alguns anos após o Código de Napoleão – até o momento em que os Tribunais Franceses começaram a aceitar a teoria do abuso do direito. Nessa época, o direito era visto como ciência objetiva, tendo os direitos subjetivos como paradigma máximo. O direito de propriedade e o direito de crédito tinham um caráter rígido e absoluto, podiam ser exercidos ilimitadamente, sem se discutir se causavam prejuízos aos outros ou se eram exercidos com o intuito de causar danos. Não importava, os direitos subjetivos levavam em si mesmos e em seus titulares a sua finalidade.

Nos ideais da Revolução Francesa, a propriedade foi reconhecida como um atributo natural e inviolável, quase sagrado, da personalidade humana. No Código Civil francês, a propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas da maneira mais absoluta. Irrestritamente. Assim era a concepção de direito subjetivo na época em que surgiu com a jurisprudência francesa a teoria do abuso de direito,

156

ROTONDI, Mario. Instituciones de derecho privado. Traduccion por Francisco F. Vilavicencio. Barcelona, Ed. Labor. 1953 , p 99, (trad. livre).

157

ou da “relatividade dos direitos”.158 Em outras palavras, o exercício de um direito excluiria a responsabilidade.

O exercício ilimitado de um direito subjetivo poderia causar danos e prejuízos que, diante da concepção posta, o causador do dano estaria isento do dever de indenizar. As circunstâncias, contudo, exigiam mudanças e flexibilizações. Os tribunais franceses, em terreno propício, semearam as idéias do abuso do direito, posteriormente adotadas no mundo inteiro.

Segundo Menezes Cordeiro, em reprimenda ao exercício imotivado da propriedade, causador de prejuízos a terceiros, são proferidos os primeiros julgamentos. Verifica-se, a partir de então, que legisladores e operadores do direito esforçaram-se para reprimir o exercício do direito de propriedade que havia nascido com uma força indefinida. As primeiras decisões datam logo da vigência do Código de Napoleão; em 1808, foi condenado o dono de uma fábrica de chapéus que emitia gases com odores desagradáveis nas vizinhanças; em 1822, foi condenado o construtor de um forno que, por carência de precauções, prejudicava um vizinho.159

De todas as decisões, a mais famosa, que na verdade demonstra o surgimento da “teoria” condena o proprietário que deliberadamente – com a intenção de causar dano – constrói uma imensa chaminé falsa somente para escurecer a propriedade vizinha. A Corte de Colmar condenou o proprietário a derrubar a chaminé em 1855, pois fora construída sem interesse sério e legítimo.

Procurou-se assemelhar as situações a hipóteses de Direito Romano, para desenvolver a teoria do abuso de direito. Assim, em pesquisa histórica os juristas tomaram por base brocardos como summun ius summa iniuria, non omne quod licet honestum est e matiis non est indulgendum. Essas fórmulas serviriam para justificar que, desde Roma, o exercício abusivo do direito subjetivo enseja a responsabilização de seu titular pelos danos causados. Vários são os autores que se utilizam desses “princípios gerais” do Direito Romano para justificar a teoria. Menezes Cordeiro160, diversamente, entende que a origem do instituto não está no Direito Romano, pois “os trechos citados em seu apoio ganham relevo geral porque desinseridos dos contextos onde se encontram; acresce que, normalmente, têm, nas fontes, uma presença esporádica”.

158

JOSSERAND, Louis. Relatividad y abuso delos derechos: del abuso de los derechos y otros ensayos. Colômbia: Editorial Temis, 1999. p. 8, (trad. livre).

159

MENEZES CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1984, V. 2, p. 671. 160

Tentou-se, ainda, a conexão com institutos específicos, como a aemulatio, a exceptio doli e a regulação das relações de vizinhança. A aemulatio é o exercício de um direito sem utilidade própria e com a intenção de prejudicar a outrem. A base textual é fraca e não permite dizer que houve uma teoria dos atos emulativos no Direito Romano. No direito medieval, contudo, houve alargamento dos atos emulativos, especialmente no que diz respeito ao direito de vizinhança. Tal se deve, principalmente, ao espírito humanista-cristão da época, que reprova esse tipo de conduta, fazendo incidir a responsabilidade e a reparação dos danos causados. A exceptio doli, como forma de defesa, permitia interromper uma actio manifestamente injusta. Não havia, contudo, o exercício generalizado ou institucionalizado da exceção como forma de coibir o abuso no Direito Romano.161

Para Brunela Vieira de Vincenzi162, as relações de vizinhança são, na verdade – desde o Direito Romano - limitações expressas ao direito de propriedade. Tanto em Roma como no direito civil do século XIX, tratou-se de limitar o uso da propriedade para possibilitar a convivência pacífica nas cidades que cresciam em número de habitantes sem um proporcional aumento de seu tamanho, considerando as circunstâncias políticas e sociais de cada época.

Para Menezes Cordeiro, as relações de vizinhança, ao contrário de constituir uma teoria autônoma, são circunstâncias negativadoras dos direitos reais que as suportam, os quais, em face de outros direitos reais, relativizam-se. Mesmo que se quisesse utilizar a expressão abuso de direito, nessas situações não se faria necessário, pois se trata de violação a norma previamente estabelecida, ficando sua aplicação em aberto somente para casos não expressos. Em suma: “a idéia de que, no exercício dos direitos, deve ser tida em conta a posição das outras pessoas, não era estranha ao direito romano, como demonstram as relações de vizinhança. O que contudo não coincide com o abuso de direito”.163

Pode-se concluir que o instituto, pragmática e cientificamente, surgiu na França, diante de casos concretos tutelados pelos tribunais e posteriormente estruturados pela doutrina, espalhando-se de diferentes formas pelo mundo.

4.2 O Abuso do Direito na França

161

VINCENZI. Brunela Vieira De, A boa-fé no processo civil, São Paulo: Atlas, 2003, p. 144. 162

Op. cit. p. 145 163