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A perspectiva neoclássica e o âmbito disciplinar da Economia de produção agrícola

No documento Economia, direito de propriedade e agricultura (páginas 113-121)

Problemática e enquadramento teórico

2. A terra, a propriedade e a Economia: das análises precursoras à ortodoxia

2.6. A perspectiva neoclássica e o âmbito disciplinar da Economia de produção agrícola

Os autores marginalistas lançaram, em finais do séc. XIX, os fundamentos da abordagem neoclássica da economia. Para além de Walras, que citámos no ponto anterior, a “revolução marginalista” foi empreendida também por Menger e por Jevons. As Noções Básicas e Teoria Económica e a Teoria de Economia

Política da autoria destes dois autores, respectivamente, foram editadas pela

primeira vez em 1871. Em 1874 surgiu a obra Elementos de Economia Política

Pura de Walras.

A “revolução” encontra a sua razão de ser no descontentamento destes autores relativamente à Economia Política clássica que consideram pouco rigorosa. A ruptura que operam dá-se em dois aspectos fundamentais: por um lado, a substituição da teoria do valor-trabalho pela teoria do valor-utilidade e a formulação do princípio da utilidade marginal; por outro, a introdução da linguagem matemática

como a linguagem por excelência da Economia, transformando-a numa “disciplina científica”.

A seguinte citação de Jevons permite perceber as intenções destes autores:

“It is clear that Economics, if it is to be a science at all, must be a mathematical science. There exists much prejudice against attempts to introduce the methods and language of mathematics into any branch of the moral sciences. (...) to me it seems that our science must be mathematical,

simply because it deals with quantities. Wherever the things treated are

capable of being greater or less, there the laws and relations must be mathematical. If, then, in Economics, we have to deal with quantitaties and complicated relations of quantitaties, we must reason mathematically; we do not render the science less mathematical by avoiding the symbols of algebra - we refuse to employ, in a very imperfect science, much needing every kind of assistance, that apparatus of appropriate signs which is found indispensable in other sciences” (Jevons, 1871, 1969: 2-3, 5).

A referência à perspectiva neoclássica com o objectivo de identificar a concepção da terra e da propriedade será feita no âmbito disciplinar que, dentro da Economia, se ocupa da problemática agrícola - a Economia Agrícola.

Apresentam-se de seguida algumas definições desta disciplina:

“Agricultural economics is an applied social science that deals with how producers, consumers, and societies use scarce resources in the production, processing, marketing and consumption of food and fibber products” (Penrson et al., 2002: 10).

“Agricultural economics may be defined as an applied social science dealing with how humans choose to use technical knowledge and scarce productive resources such as land, labour, capital, and management to produce food and fiber and to distribute it for consumption to various members of society over time. Like economics, agricultural economics seek to discover cause- effect relationships. It uses the scientific method and economic theory to find answers to problems in agriculture and agribusiness” (Cramer et al., 1997: 7).

Para Heady, os aspectos centrais da Economia de Produção Agrícola (teoria da empresa e princípios relativos à afectação de recursos) correspondem aos mais desenvolvidos da economia geral:

“Em nenhum outro campo da economia pura tantos princípios foram estabelecidos como ‘leis’. A economia da produção é ‘mais exacta’ que outros ramos da economia por causa disto, e também porque a investigação pode ser desenvolvida de um modo controlado, paralelo ao das ciências físicas” (Heady, 1952, citado em Cordovil, 1991: 34).

É no ambiente ideal da concorrência perfeita que são resolvidos os problemas da afectação de recursos escassos entre usos alternativos, como é o caso da terra. Esta surge-nos como um dos inputs da produção agrícola que, através da “função de produção”, é relacionada com o nível de produto - output.

A terra é definida da seguinte forma no âmbito dos manuais acima citados:

“Land includes not only the land forms associated with the earth’s crust but also resources such as minerals, forests, groundwater, and other resources given by nature. Such resources are classified as either renewable (e.g. forests), or nonrenewable resources (e.g. minerals)” (Penson et al, 2002: 143).

“In the land group we put everything you ordinary see in viewing the earth’s surface. But there’s more than this to our economic concept of land. We include not just the soil itself, but all its physical characteristics and all the natural environment that may influence the ability of land to yield a product” (Cramer et al., 1997: 79).

A (difícil) distinção entre os elementos naturais e os elementos acrescentados pelo trabalho humano no caso da terra está presente também na obra Economia da

Empresa Agrícola (1972)17 da autoria de Barros e Estácio. Para estes, a “terra comporta-se como um capital” e estabelecem a distinção do “capital fundiário” em duas categorias distintas - o “capital fundiário terra”, “ou seja, o solo nu, totalmente

17

Para Cordovil, “esta obra marca o ensino da economia agrícola até aos anos 80. Sucede-lhe em 1988 a obra Análise dos projectos Agrícolas no contexto da Política Agrícola Comum, de Avillez, Estácio e Neves” (Cordovil, 1991)

desprovido de beneficiações, aquilo a que, nalguns locais, é uso chamar ‘casco da propriedade’” e as “benfeitorias”, ou seja “aquelas obras graças às quais as condições de rendibilidade do capital fundiário ficam perpetuamente ou por longo tempo incrementadas e melhoradas” (Barros e Estácio, 1972: 160-161). Segundo os autores, estas últimas podem ser de três tipos:

• melhoramentos fundiários • plantações

• construções

Num dos manuais acima citados, é estabelecida a distinção entre “recursos de fluxo” e “recursos de stock”:

“Even the soil itself, although viewed most frequently as a fund resource, also has some of the characteristics of a flow resource. Management practices may have the deliberate objective of reducing, maintaining, or improving the level of plant nutrients held in the soil, depending on whether current practices use those nutrients at a greater, equal, or lesser rate than their inflow to the soil” (Cramer et al., 1997: 350).

No quadro de análise neoclássico, a combinação da terra, do trabalho, do capital e da gestão, enquanto inputs da produção agrícola, tem como objectivo a maximização do lucro e resulta de um sistema descentralizado caracterizado pela apropriação privada dos recursos.

No trabalho de compreensão do papel coordenador dos preços, a Economia neoclássica não prestou muita atenção aos sistemas de apropriação. Em vez disso, assumiu implicitamente a existência de um sistema perfeito de propriedade (Demsetz, 2002: 654).

Esta naturalização da propriedade tem vindo a dar lugar a uma referência explícita no âmbito da Economia Agrícola por intermédio da incorporação dos contributos da Nova Economia Institucionalista.

O Handbook of Agricultural Economics, por exemplo (Gardner e Rausser, 2001), integra um capítulo sobre “Land institutions and land markets”. O manual

Economia e Políticas Agrícolas (Pinheiro e Carvalho, 1999) refere as vantagens e

desvantagens associadas a diferentes formas jurídicas de exploração da terra (conta própria, arrendamento e parceria).

Na primeira das obras referidas, os autores chamam a atenção para a importância económica da definição clara e da segurança da propriedade. A definição dos “property rights” é feita num “ambiente ideal e sem distorções” e traduz uma resposta endógena à crescente escassez de terra. A análise do funcionamento do mercado fundiário, por sua vez, considera como factores explicativos, entre outros, as características do processo produtivo agrícola, o acesso ao crédito e os custos de transacção (Deininger e Feder citados em Gardner e Rausser, 2001: 289).

A segurança dos direitos individuais sobre a terra constitui para estes autores um aspecto decisivo em termos das decisões de investimento. A par dos objectivos produtivos subjacentes à afectação do recurso terra, os autores consideram ainda a promoção do “bem-estar” que poderá estar associada a sistemas alternativos de exploração como é o caso da propriedade comunitária:

“(…), in many cases, traditional systems are associated with a wide range of equity benefits, not all of which normally can be preserved in a system characterized by private land ownership. Research aiming to understand not only the existence and magnitude of productivity benefits arising from the transition from traditional to private property rights, but also the types of welfare benefits provided by different forms of communal arrangements, their magnitude, and possible alternative mechanisms to generate similar effects, would be very useful” (id: 322).

Este processo de evolução temática e conceptual tem sido marcado também por leituras críticas a aspectos centrais da Economia de Produção de inspiração neoclássica, nomeadamente, os que dizem respeito ao processo de tomada de decisão dos agricultores com implicações ao nível da análise da afectação da terra.

Em Portugal, e como tivemos já oportunidade de referir (vd. capítulo 1, ponto 1.3.3.) o trabalho desenvolvido por alguns agrónomos na década de 80 (Carvalho, 1984; Barros, 1989; Fragata; 1989) questiona o quadro conceptual dominante através do estudo de casos relativos à agricultura portuguesa. Para além da crítica às concepções que presidiram ao desenvolvimento da agricultura em determinados períodos, estes trabalhos chamam a atenção para “a diversidade dos sistemas família-exploração” e para a “diversidade e racionalidade” dos agricultores que inquiriram no âmbito da sua investigação.

A crítica à premissa do lucro máximo e da autonomia conceptual da unidade produtiva está presente também na obra de Heady, segundo Cordovil. Sobre o primeiro aspecto, Heady admite que existem outros factores importantes que presidem à decisão de afectação dos recursos; sobre o segundo, assiste-se ao reconhecimento da importância da unidade família-exploração.

A combinação desta dupla ruptura leva Cordovil a referir que “a maximização da satisfação ou utilidade (bem-estar) da família transforma-se no objectivo e os indicadores de escolha devem alterar-se em concordância” (Cordovil, 1991: 44). Consequentemente,

“O complexo família-exploração é importante não só para a definição da organização dos recursos e das actividades da família que maximizarão a utilidade num determinado momento, mas também para ajudar a explicar as precauções face à incerteza, a acumulação de capital, a conservação do solo, e outras decisões de produção e de consumo que se relacionam com o tempo” (id: 45).

Ou seja, este “complexo” adquire uma importância fundamental na explicação da decisão de afectação dos recursos entre os quais está a terra.

Como vimos (vd. capítulo 1, ponto 1.3.3.), o trabalho de Cordovil que temos vindo a citar inscreve-se também numa linha de procura de alternativas à visão dominante sobre a Economia de Produção Agrícola que envolve, nomeadamente, a “análise compreensiva” das “estratégias produtivas”.

Tivemos também já oportunidade de referir que o quadro conceptual relativo ao “processo de decisão estratégica ao nível da exploração agrícola” proposto pelo autor integra algumas componentes que nos parecem importantes no âmbito da compreensão da afectação dos recursos, nomeadamente porque, e do nosso ponto de vista, são passíveis de integrar elementos de natureza institucional como é o caso da propriedade.

A discussão do processo de tomada de decisão e do conceito de racionalidade no contexto da Economia Agrícola tem ocupado outros autores. Larrere e Vermersh, por exemplo, propõem o alargamento da concepção de “racionalidade instrumental” através da superação do utilitarismo, por um lado, e da substituição da noção de “egoísta racional” pela de “universalista racional” ou “colectivista racional”, por outro.

A propósito da superação da visão utilitarista referem que:

“il s’agit de prendre en compte, dans les situations consécutives à une action, non seulement les variations de bien être, mais aussi la satisfaction des aspirations esthétiques, spirituelles ou éthiques des individus ” (Larrere e Vermersh, 2000: 11).

Relativamente à proposta de substituição de conceitos esclarecem que se devem considerar:

“Les intérêts actuels et a venir des groups sociaux auxquels ils appartiennent, ou auxquels ils s’identifient. On peut remarquer que cette extension de la rationalité instrumentale introduit une conception holiste de la société, via la notion de patrimoine et de gestion patrimoniale ” (ibid).

As leituras críticas da Economia Agrícola de inspiração neoclássica têm dado lugar a outras inovações conceptuais e temáticas no âmbito desta disciplina. O balanço da evolução da Economia Agrícola e Rural feito num número temático da Économie

Rurale, em 1990, permite-nos identificar algumas dessas áreas de inovação.

Simantov, por exemplo, considera que a disciplina tem evoluído no sentido da consideração do “conjunto das preocupações da sociedade” e especifica:

“On assiste (…) à des analyses scientifiques visant à montrer que l’apport de l’agriculture et du monde rural est essentiel à la survie de certaines régions ou à l’équilibre démographique, économique et social d’un pays, mais on assiste également à une meilleure prise en compte du coût de l’agriculture, aussi bien pour les finances publiques que pour la qualité de l’environnement du point de vue biologique et physique ” (Simantov, 1990 : 26).

Parece-nos que um dos indicadores desta inovação temática diz respeito à integração de capítulos sobre “ambiente e recursos naturais” e sobre “desenvolvimento” nalguns manuais de Economia Agrícola. Deve, no entanto, referir- -se que, em certos casos, a abordagem a estes “novos” temas apresenta um registo essencialmente descritivo que contrasta com o nível de formalização e análise (visão neoclássica) adoptado nos capítulos sobre a produção.

Ainda de acordo com Simantov, a evolução mais importante da Economia Agrícola diz respeito à inserção da fileira agro-alimentar na macroeconomia, em termos económicos e políticos (ibid).

Alguns autores vêm neste processo de inserção um terreno privilegiado de aplicação do programa de investigação neo-institucionalista. É o caso de Ménard que justifica a sua proposta com duas razões fundamentais:

“La première raison tient au fait qu’on trouve dans l’agroalimentaire une palette exceptionnellement riche de divers ‘modes organisationnels’ structurant l’activité économique (…). La deuxième raison vient de ce que dans tous les pays, il y a très forte interaction entre les institutions et l’organisation du secteur agricole, en particulier par le biais de l’intervention de l’État, qui prend des formes multiples, depuis l’élaboration de contraintes réglementaires jusqu’au développement des infrastructures (…) en passant par les subventions ” (Ménard, 2000 : 186).

Este programa surge assim como um terreno privilegiado de renovação da disciplina uma vez que, e como vimos, tem sido também aplicado ao estudo da propriedade,

reflectindo a crescente preocupação com as questões ambientais e a valorização das amenidades associadas à produção agrícola.

Embora a actual visibilidade do tema da propriedade se deva sobretudo à operacionalização da perspectiva neo-institucionalista, estamos perante um dos temas centrais do “velho institucionalismo”, contemporâneo da emergência da visão neoclássica. Como veremos, o desenvolvimento das ideias precursoras do “velho institucionalismo” foi feito no terreno da Land Economics.

2.7. Dos precursores à visão actual: síntese da concepção da terra e da

No documento Economia, direito de propriedade e agricultura (páginas 113-121)