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O velho institucionalismo: a propriedade enquanto relação interpessoal e a definição de direitos e deveres

No documento Economia, direito de propriedade e agricultura (páginas 139-148)

Problemática e enquadramento teórico

3. Contributos da leitura institucionalista

3.4. Da propriedade aos direitos de propriedade

3.4.1. O velho institucionalismo: a propriedade enquanto relação interpessoal e a definição de direitos e deveres

Iniciamos esta apresentação da concepção da propriedade no âmbito do velho institucionalismo com uma referência breve ao trabalho desenvolvido por Ely, precursor da Economia da Terra (“Land Economics”) e um dos velhos institucionalistas que tiveram contacto directo com as ideias da Escola Histórica.

A oposição às ideias neoclássicas a propósito das reformas da política fundiária americana na década de 80 do séc. XIX por parte de um grupo de economistas teve um dos seus momentos marcantes com o estabelecimento da Associação Económica Americana em 1885. Ely fazia parte daquele grupo juntamente com N.

Patten e E. J. James. Segundo Salter (1948), as relações directas entre a perspectiva alternativa da Economia e o debate sobre as políticas fundiárias consistiram essencialmente na formulação das medidas dirigidas à floresta uma vez que “(…) the leaders in american forestry were German or German-trained and that the upstart economists took advanced work in Germany (Salter, 1948: 7). De uma forma mais indirecta, o mesmo autor refere a perspectiva de “economia política” destes economistas “alemães” em substituição da “private, managerial approach” (ibid).

O trabalho desenvolvido por estes “insurgents economists” sobre as questões da política fundiária é, para Salter, perfeitamente compreensível uma vez que se adequa às suas opções de análise económica, que o autor sistematiza da seguinte forma:

“(1) the historical or evolutionary aspects of economic behavior, (2) the relationship between law and economics in social institutions, and (3) the importance of current questions of public policy. It is not surprising, therefore, that some of the economists with training in this tradition, at the turn of the century in this country, directed attention to land policy questions“(Salter, 1948: 7).

A coincidência entre os primórdios do velho institucionalismo e a emergência da Economia da Terra deve ser salientada. Para Salter:

“It is of original importance to stress the fact of this German background, for it made possible the development of an interest in land economics and affected the approach which land economists took in their work” (Salter, 1948: 7-8).

Em 1892, Ely mudou-se da Universidade de John Hopkins para a Universidade de Wisconsin onde estabeleceu um departamento que se caracterizava por uma articulação entre as ciências sociais, os interesses académicos e públicos. A influência do trabalho desenvolvido nesta Universidade na formulação de políticas fundiárias está bem patente nesta sua afirmação durante um curso sobre Economia Florestal (1896):

“The teaching of conservation at the University of Wisconsin influenced and paved the way for Roosevelt’s great conservation movement and the widespread land programs of the present day…I am confident that very soon after I came to Wisconsin in 1892 we began a systematic treatment of what is now called land economics. I treated the whole subject under the awkward title, Landed Property and the Rent of Land” (Salter, op cit: 8).

Para além da análise aplicada ao caso da terra, o tema da propriedade, no sentido mais abrangente do termo, é central no trabalho dos velhos institucionalistas. Em “The limitations of marginal utility” (1909), Veblen refere que na “abordagem hedonista” (neoclássica), a propriedade é um dado adquirido e não sujeito a discussão:

“So the institution of ownership is taken into the inquiry not as a factor of growth or an element subject to change, but as one of the primordial and immutable facts of the order of nature, underlying the hedonistic calculus. Property, ownership, is presumed as the basis of hedonistic discrimination and it is conceived to be given in its finished (nineteenth- century) scope and force” (Veblen, 1909: 6).

O estudo da conduta humana na relação com os meios materiais, que é, segundo Veblen, o que define a Economia, deve, pelo contrário, procurar explicar os hábitos e as normas sociais, a sua origem, a sua transformação em instituições, a sua natureza e mutação. A propriedade está entre as instituições a explicar. Trata-se, segundo Veblen, de uma convenção, uma instituição fundamental (a “instituição primária”) para a orientação da conduta humana, “estandardizando, colorindo, mitigando ou desviando” o calculador hedonista, interpondo-se entre o “impulso e a sua realização” (ibid).

Em “The beginning of ownership” (1898-9), Veblen situa as origens da propriedade num período muito remoto da história da humanidade - “in the early stages of barbarism” - coincidente com a transição para uma forma predatória de vida. As pessoas foram, segundo Veblen, o primeiro alvo de apropriação privada, sobretudo as mulheres (“ownership marriage”): “the women are more useful, as well as more easily controlled, in the primitive group” (Veblen, 1898-9: 7).

Para além da separação entre propriedade e gestão, Veblen dá conta de outra transformação desta instituição na sociedade do seu tempo: a afirmação e importância crescente da propriedade intangível. Para este autor, a ideia de propriedade corpórea passou a ser uma ideia de senso comum.

Esta transformação da noção de propriedade é revolucionária para Commons e teve em Veblen um dos precursores da sua identificação e estudo. De acordo com a análise de Commons, a construção do conceito moderno de propriedade intangível por Veblen levou-o praticamente a abandonar a ideia de propriedade corpórea da “sociedade primitiva e dos clássicos, de Marx e dos economistas hedonistas” assim como “a propriedade incorpórea das dívidas de MacLeod’s” conservando apenas “o conceito de propriedade intangível enquanto o valor presente do poder negocial futuro dos capitalistas” (Commons, 1934, 2003: 651).

A descoberta de Veblen não foi, de acordo com Commons, bem sucedida. Para este insucesso contribuiu o tipo de fontes de informação que aquele utilizou: o testemunho dos “magnatas industriais e financeiros”. Veblen não investigou as decisões do Supremo Tribunal, abrindo espaço para a associação entre propriedade intangível e exploração na acepção marxiana. Para Commons, a análise da propriedade intangível de Veblen peca pela ausência do conceito de “propósito” (“public purpose”), pela ausência de uma investigação das decisões dos tribunais. Este procedimento ilustra, para Commons, a concepção de ciência em Veblen:

“Veblen concept of a science was the traditional concept of the physical sciences which rejected all purpose in the investigation of the facts. The court’s concept of a science was an institutional concept wherein the investigation must start with a public purpose as a primary principle of the science itself. It is the difference between physical science and the social science” (id: 654).

Esta crítica deixa transparecer o que, no entender de Commons, deveria ser o método adequado na análise sobre a propriedade. Para além da informação que recolheu a partir da sua participação na “acção colectiva”, Commons estudou as decisões do Supremo Tribunal e chegou àquilo que designa por uma teoria do “reasonable value” dos tribunais a respeito da propriedade.

Os casos apresentados por Commons envolvem o conflito em torno da avaliação patrimonial de empresas, que decorre da intervenção do Estado no sentido da definição de preços cobrados por estas ou de impostos que as mesmas deveriam pagar. Em qualquer caso, aquele conflito envolve concepções distintas de propriedade: propriedade corpórea vs. propriedade intangível. É a tendência registada por Commons no sentido de uma avaliação do valor das empresas a partir desta última concepção que o levam a apresentar o ano de 1890 como aquele em que foi dado o primeiro passo no sentido da alteração do conceito de propriedade (id: 652).

Na essência da propriedade intangível está a noção de transacção uma vez que o que importa não é o valor de uso das coisas mas o seu valor de troca, de mercado, ou seja, o que os indivíduos podem fazer (transacções) com as coisas que possuem. Afinal, e como vimos, serão as transacções, ou seja as relações interpessoais, que constituem a unidade de investigação da Economia e não a relação do homem com a natureza da Economia Clássica e Neoclássica:

“In the field of economics the units had been, first, Locke’s and Ricardo’s material commodities owned and the individuals who owned the commodities, while the ‘energy’ was human labor. Next, the units continued to be the same or similar physical commodities and the ‘energy’ became those who consumed commodities and the ‘energy’ became stimuli of wants, depending upon the quantitative and kind of commodity wanted” (Commons, 1934, 2003: 56).

A adopção da transacção como unidade de investigação da Economia Institucionalista inscreve-se justamente no processo de descoberta e de construção da noção de propriedade intangível por parte de Commons. A propriedade traduz a relação entre as faculdades dos indivíduos (força de trabalho, capacidades físicas, mentais e de organização) e as oportunidades (p.e. o emprego ou a posição ocupada pelos indivíduos num determinado “going business”) à sua disposição: “property (…) becomes human faculties in preparation for, or in occupation of, opportunities” (Commons, 1924, 1957: 156).

Ou seja, a palavra “propriedade” só pode ser percebida através da definição de todas as actividades que os indivíduos e a comunidade podem ou não desenvolver relativamente ao objecto dessa propriedade (“direitos de propriedade”). Estas actividades correspondem, de acordo com Commons, aos três tipos de transacção (“negociação”, “gestão” e “distribuição”) que são governadas por “regras operativas” (“working rules”). A existência destas regras, por sua vez, deriva da escassez dos recursos.

Para Commons, Hume foi o primeiro autor a associar o conflito de interesses à escassez. Mas, para Hume, à semelhança do que sucede com os autores clássicos, a escassez seria a base da cooperação entre os indivíduos. A visão da harmonia de interesses e dos equilíbrios espontâneos é, segundo Commons, dominante entre aqueles autores.

A leitura das obras de alguns precursores e clássicos (“mecanicistas”, segundo Commons) e marginalistas (“hedonistas”, segundo o mesmo autor) permitiu-nos retirar conclusões diferentes das suas sobre a natureza e o funcionamento da economia e, em particular, sobre a concepção da propriedade.

Em primeiro lugar, e entre os aspectos comuns da reflexão daqueles autores em torno desta instituição, está a referência à necessidade de implementação de reformas uma vez que a consideram imperfeita na procura de convergência entre o interesse privado e o interesse público. Ou seja, e no que diz respeito à propriedade, os mesmos não defendem uma harmonia “espontânea” mas sim uma harmonia “provocada” através, nomeadamente, da alteração das normas legais (p.e. herança) que governam esta instituição.

Em segundo lugar, a noção de interdependência que para Commons caracteriza a propriedade está presente nalguns das obras consultadas. A visão utilitarista da propriedade é acompanhada por uma noção de responsabilidade e meritocracia relativamente a esta instituição no sentido do progresso económico mas também da justiça e da equidade social. Para além disso, a noção de interdependência encontra-se presente na referência à legitimidade social que deve acompanhar esta instituição. É pelo menos esta a nossa interpretação da seguinte passagem da obra de Say:

“Ce n’est pas le propriétaire qui permet à la nation de vivre, de marcher et de respirer sur ses terres: c’est la nation qui permet qu propriétaire de cultiver les parties du sol dont elle le reconnaît possesseur, et qui d’ailleurs se réserve et ne concède à personne exclusivement la jouissance des lieux publics, des grandes routes, des lacs et de rivières ” (Say, 1852, 1972: 532).

A noção segundo a qual o essencial da propriedade reside nas relações interindividuais encontra-se também explícita na obra de Walras para quem a “teoria da propriedade” consistia numa “teoria moral”:

“Le droit de propriété d’une personne sur une chose est le droit, pour cette personne d’appliquer cette chose à la satisfaction d’un besoin, même en la consommant. Tout droit est un rapport moral entre personnes auquel correspond une obligation morale pour certaines autres personnes. La personne investie du droit de propriété sur une chose aura le pouvoir moral d’appliquer cette chose à satisfaire le besoin qu’elle en éprouve, et les autres personnes auront l’obligation morale de respecter le droit des premières ” (Walras, 1896, 1936 : 206).

Defendemos, portanto, que a propriedade concebida como relação interpessoal está presente nalguns autores clássicos e marginalistas. No entanto, e como tivemos oportunidade de referir, não é no domínio da relação interpessoal que se irá erguer o edifício neoclássico. O trabalho de fundamentação da Economia em bases rigorosas empreendido pelos marginalistas relegou aquele domínio para segundo plano. Commons colocou-o no centro da análise económica.

Neste contexto de alteração, Commons empreende o esclarecimento das regras associadas à propriedade que, segundo o autor, deve ser feito à luz do alargamento Constitucional que estabelece a sua associação com o conceito de “direitos”:

“The changes in the meaning of the economic equivalent of property as assets and liabilities have made necessary a deeper analysis of the meaning of the term ‘rights’ as used in jurisprudence” (Commons, 1934, 2003: 77).

Para esta análise, Commons recorre ao trabalho de Hohfeld (1913), da Yale School, sobre as “relações legais”. Para Hohfeld, “(T)he term ‘rights’ tends to be used indiscriminately to cover what in a given case may be a privilege, a power, or an immunity, rather than a rights in the strictest sense” (Hohfeld citado em Cole e Grossman, 2002: 318).

A adaptação do trabalho de Hohfeld sobre as relações jurídicas ao âmbito da Economia Institucionalista de Commons envolveu a alteração da designação de alguns termos e a introdução de elementos centrais daquela perspectiva, nomeadamente, a unidade de investigação privilegiada pelo autor (a transacção), a leitura das transacções num registo económico, jurídico e ético e a operacionalização do princípio explicativo por excelência - a acção colectiva no controlo da acção individual.

O resultado final desta adaptação consiste num esquema que isola as componentes de uma transacção. Este é apresentado em duas versões distintas: uma na Legal

Foundations… e outra na Institutional Economics. Reproduzimos aqui parte da

primeira versão por considerarmos que é mais clara e por integrar elementos explicativos fundamentais (“correlatives” e “limits”) que Commons torna implícitos na segunda versão. (a) At a given time correlatives RIGHT DUTY limits EXPOSURE LIBERTY

Adaptado de Gonce (1976), “The new property rights approach and Commons Legal Foundations of Capitalism”, in Journal of Economic Issues, vol. X, Nº4

O esquema reproduz a posição das duas partes envolvidas numa transacção num determinado momento. Aqui, o conceito central é o de “direito” ao qual corresponde um “dever” da outra parte. Ou seja, “a specified right of one party is identical with the duty of another party” e “a correlative duty supports, even creates, one’s rights”

(Commons citado em Gonce, 1976: 771). A leitura na vertical revela os “limites” desses direitos e deveres uma vez que “all rights and duties are relative” (ibid).

A concepção da transacção como uma realidade que envolve “ganhos” e “perdas” para as partes envolvidas deve ser sublinhada na análise que Commons faz no sentido do esclarecimento do conceito de direitos associados à propriedade:

“(…) property is inseparable from the right of property. The term ‘rights’ (…) cannot be defined except as reciprocal rights, duties, liberties and exposures. Every so-called right implies all these dimensions” (Commons, 1924, 1957: 157).

Em Commons, a noção de “limite” está associada à ideia de “reciprocidade”. Os limites dos direitos traduzem-se em deveres recíprocos (a outra face dos direitos). Assim, os deveres emergem numa lógica de correlatividade (eficácia dos direitos), definindo a relação dos titulares dos direitos com os “outros”, e numa lógica de reciprocidade, delimitando a esfera de acção individual através da incorporação dos direitos dos “outros”.

A correlatividade garante um direito na medida em que este não pode existir sem um dever correspondente. A reciprocidade, por sua vez, subtrai esse direito na medida em que diminui a liberdade do sujeito titular:

Para o autor, a relação entre direitos e deveres coloca-se de forma distinta para a correlatividade e para a reciprocidade:

“An authorized right cannot be defined without going in the circle of defining its correlative (corresponding) and exactly equivalent duty of others. One is the ‘I’ side, the other is the ‘you’ side, one the beneficial, the other the burdensome side of the identical transactions” (Commons, 1934, 2003: 131).

“There is no equality of one’s own rights and duties, but there is an equality, that is, correspondence, of one’s rights and other’s duties” (ibid).

“But at the same time, a right cannot exist without some deduction, however great or small, by virtue of a reciprocal duty clinging to it and diminishing its possible benefits” (ibid).

A definição da reciprocidade está dependente daquilo que num determinado momento e num dado contexto social são os valores associados à exploração dos recursos:

“The valuation of interests consists in weighing their relative importance. It is a matter of relative human values within a community of interests where the burdens and benefits of limits of limited resources must be shared, and these cannot be shared by rules of logic; they are shared according to feelings of value, that is, of relative importance of reciprocity” (Commons, 1934, 2003: 133).

Os conceitos de correlatividade e de reciprocidade apresentam potencialidades analíticas que procuraremos explorar neste trabalho. São conceitos que nos remetem para a natureza interindividual da propriedade no sentido da sua legitimidade - garantia e definição da esfera de acção dos indivíduos a propósito do uso dos recursos.

A natureza interindividual da propriedade caracteriza também a perspectiva do novo institucionalismo que tem em Coase um dos seus fundadores. O próximo ponto é dedicado à apresentação desta perspectiva.

3.4.2. O novo institucionalismo: as externalidades e a concepção instrumental

No documento Economia, direito de propriedade e agricultura (páginas 139-148)