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Cantillon e Quesnay: a terra como fundamento económico da sociedade e o campo como espaço de virtude

Problemática e enquadramento teórico

2. A terra, a propriedade e a Economia: das análises precursoras à ortodoxia

2.2. Os precursores: a propriedade como direito natural e a terra (dádiva de Deus) como fundamento da ordem económica da sociedade

2.2.2. Cantillon e Quesnay: a terra como fundamento económico da sociedade e o campo como espaço de virtude

É já em pleno Iluminismo que surge o primeiro sistema económico completo, através da fisiocracia cujo triunfo se deu em França entre 1758 e 1770. O contexto de afirmação desta escola teve lugar durante a segunda metade do século XVIII.

Tratou-se de uma afirmação difícil, de acordo as notas introdutórias ao Tableau

Économique cuja primeira edição é de 1758. Em 1767 surge pela primeira vez a

palavra “fisiocracia”, como título de uma recolha organizada por Dupont de Nemours, um dos discípulos de Quesnay11.

A palavra “fisiocracia” significa “governo da natureza” e o sistema de ideias que sobre ele reflecte tem como designação “filosofia da ordem natural” segundo a qual a missão do homem no mundo consiste em descobrir essa ordem natural e em submeter-se-lhe.

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Entre os fisiocratas estão também o Marquês de Mirabeau, Mercier de la Rivière, Le Trosne e Baudeau.

A visão dos fisiocratas sobre a terra como única fonte de riqueza inspira a construção do sistema económico apresentado por Quesnay através do conceito central de “produto líquido”. O “produto líquido”, isto é, o excedente do rendimento sobre os custos de produção, era, para Quesnay, exclusivo da agricultura. E é enquanto única actividade económica geradora de “produto líquido” que a agricultura surge como a única fonte de riqueza. Esta visão é demonstrada através da análise do circuito económico (o “Tableau”) constituído por agricultores, proprietários fundiários e artesãos. No exercício da sua actividade económica, estes três grupos vão repartindo o produto líquido com origem no trabalho da “classe produtiva” (agricultores) pelas outras duas classes denominadas “estéreis”.

A visão da economia sob a forma de circuito e a presença de uma noção de equilíbrio geral que resulta do seu funcionamento são aspectos centrais do pensamento económico de Quesnay. No entanto, é Cantillon quem define pela primeira vez a noção de equilíbrio a longo prazo através da identificação de fluxos de rendimento. Não sendo francês, este autor teve uma influência decisiva nos economistas franceses através do único livro que escreveu e que começou a circular em manuscrito em 1730 - Ensaio sobre a Natureza do Comércio em Geral. Segundo Sedas Nunes, a “obra de Cantillon deriva da de Petty e prepara a de

Quesnay, o chefe da escola fisiocrática” (Sedas Nunes, 1992: 115).

Para Jevons aquela obra constitui “o primeiro tratado de economia” pois, em sua opinião:

“The Essai is far more than a mere essay or even a collection of disconnected essays like those of Hume. It is a systematic and connected treatise, going over a concise manner nearly the whole field of economics, with the exception of taxation. It is thus more than any other book I know,

the first treatise on economics…Cantillon’s essay is, more emphatically

than any other single work, ‘the Cradle of Political Economy” (Jevons, 1881).

A concepção da terra como única fonte de valor deu origem à formulação de uma “land theory of value” por parte de Cantillon:

“The land is the source or matter from whence all wealth is produced. The labour of man is the form which produces it: and wealth in itself is nothing but the maintenance, conveniences, and superfluities of life” (Cantillon, 1755:1).

O modelo de distribuição territorial dos diferentes tipos de aglomerados populacionais concebido por este autor apresenta uma estrutura hierárquica (“villages”, “market towns”, “cities”, “capital cities”) definida em função das necessidades associadas ao trabalho da terra. A importância económica deste recurso, “única fonte de riqueza”, explicará assim a forma de organização territorial e social.

Esta importância e a concentração da propriedade da terra nas mãos de alguns (“the prince and the proprietors of land”), que foi na sua origem adquirida “on violence and conquest”12, dão lugar a uma relação de dependência entre os proprietários e os trabalhadores: os primeiros precisam dos trabalhadores para adquirir riqueza; os segundos precisam dos primeiros para sobreviver. É, no entanto, sobre os proprietários que recai a responsabilidade sobre a boa utilização da terra:

“The land belongs to the proprietors but would be useless to them if it were not cultivated. The more labour is expended on it, other things being equal, the more it produces; and the more its products are worked up, other things being equal, the more value they have as merchandise. Hence the proprietors have need of the inhabitants as these have of the proprietors; but in this economy it is for the proprietors, who have the disposition and the direction of the landed capital, to give the most advantageous turn and movement to the whole. Also everything in a state depends on the fancy, methods, and fashions of life of the proprietors of land in special (…)” (id: 12).

A preocupação com a boa afectação da terra está também presente nos autores fisiocratas. A ideia do “laissez faire” fisiocrata surge como o ideal de funcionamento

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Para Cantillon a desigualdade na distribuição da propriedade da terra é obra dos homens e não da Providência: “It does not appear that Providence has given the right of the possession of land to one man preferably to another: the most ancient titles are founded on violence and conquest. The land of Mexico now belong to the Spaniards and those at Jerusalem to the Turks. But howsoever people come to the property and possession of land we have already observed that it always falls into the hands of a few in proportion to the total inhabitants” (id).

da economia e da sociedade para estes autores. Nas notas introdutórias à primeira edição do Tableau que consultámos está presente a ideia segundo a qual a defesa da liberdade se justifica pela sua importância na reabilitação da agricultura:

“Se é certo que Quesnay pugnava por uma redução drástica da intervenção estatal na vida económica, defendendo nomeadamente a abolição dos monopólios e a liberdade de comércio tanto internos como externos, não é menos certo que ele defendia que o Estado deveria actuar com maior firmeza para criar as condições necessárias para que as leis naturais pudessem impor-se” (notas introdutórias ao Tableau Économique, 1966: 53).

É o caso da garantia da propriedade, “fundamento essencial da ordem económica e social”, que só o Estado estava em condições de assegurar:

“(A) SEGURANÇA DA PROPRIEDADE É O FUNDAMENTO ESSENCIAL DA ORDEM ECONÓMICA DA SOCIEDADE13. Sem a garantia da propriedade, o território ficaria inculto. Não haveria proprietários nem rendeiros dispostos a fazer as despesas necessárias para o valorizar e cultivar, se a posse dos fundos nele empregados e dos seus produtos não fosse assegurada àqueles que fazem os adiantamentos para essas despesas. É a garantia da posse continuada que incentiva o emprego do trabalho e das riquezas na beneficiação e no cultivo das terras, e nos empreendimentos comerciais e industriais. Somente o poder soberano, que garante a propriedade aos seus súbditos, tem um direito originário a partilhar dos frutos da terra, única fonte de riquezas” (Quesnay, 176314, 1966: 142-143).

Não podemos deixar de relacionar as preocupações de Quesnay com a situação de profunda crise da agricultura francesa na época. Uma das causas desta crise seria, segundo este autor, o sistema de propriedade dominante: terra dividida em minúsculas parcelas que pertenciam a camponeses extremamente pobres e cujo rendimento anual mal chegava para pagar os encargos que sobre eles pesavam,

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As maiúsculas são do autor.

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A autoria desta obra é atribuída a Mirabeau, à excepção do cap. VII aqui citado, redigido por Quesnay.

tanto sob a forma de impostos lançados pelo rei, como de direitos senhoriais, restos do sistema feudal, à data ainda parcialmente em vigor em França (id: 48).

Quesnay insurgiu-se contra este sistema e contra as políticas industrialistas de Colbert, condenando igualmente o absentismo dos proprietários e as poupanças estéreis que subtrairiam à circulação e à distribuição uma parte do rendimento da nação. Em vários pontos do “Tableau” e no “Extracto das economias reais de M. Sully” (integrado na 3ª edição da obra datada de 1767) o autor é bastante severo relativamente ao sistema de impostos e à “pobreza forçada” dos camponeses franceses:

“A pobreza forçada (dos camponeses) não é, (...), o meio de tornar os camponeses trabalhadores: só a propriedade e a fruição assegurada dos seus ganhos lhes podem dar coragem e torná-los activos. Os ministros, guiados por sentimentos de humanidade, por uma educação superior, e por vistas mais largas, rejeitam com indignação as máximas odiosas e destrutivas que só tendem à devastação dos campos. Porque eles não ignoram que são as riquezas dos habitantes dos campos que fazem renascer as riquezas da nação. POBRES CAMPONESES, POBRE REINO15” (Quesnay, 1767, 1966: 120).

Quesnay defendia um sistema de grande propriedade, “grandes herdades exploradas por ricos lavradores”. Os argumentos apresentados para a defesa desta posição radicam nas despesas de manutenção e reparação dos edifícios e na dimensão do produto líquido, muito maior nas grandes empresas agrícolas do que nas pequenas.

Em edições diferentes, o autor avança também com o que poderemos designar por um modelo de desenvolvimento agrícola e rural, principal factor, se não único, de enriquecimento da Nação: evitar poupanças estéreis por parte dos proprietários; promover a fixação dos filhos dos agricultores nos campos porque o êxodo para as cidades leva as riquezas dos seus pais até aí empregues no cultivo (embora acrescente que “são menos os homens que as riquezas o que é necessário atrair para os campos”); defender a liberdade de cultivo em função dos interesses, dos

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recursos e da natureza do terreno de forma a maximizar o produto; evitar monopólios no cultivo dos bens de raiz.

Um bom cultivo supõe ainda adiantamentos suficientes para a exploração, um lucro assegurado para o empresário e ainda gastos com a melhoria das terras deficientes, gastos que devem ser assegurados pelo proprietário (classe sobre a qual deveriam recair os impostos porque é ela que recebe o “produto líquido”).

Quesnay defende ainda a aplicação da ciência à agricultura congratulando-se com a decisão do governo que envolveu a fundação de “academias de agricultura” em diferentes “províncias”. O êxito das “diversas despesas exigidas pelas diferentes qualidades de terra” dependia, segundo o autor, da combinação (a adoptar por aquelas academias) entre a investigação, os ensaios, as experiências e os conhecimentos da Economia.

2.3. As origens liberais clássicas: da terra que trabalha16 à terra como factor