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O legado de Coase: a diversidade institucional na resolução dos “harmful effects” e os factores de produção como “direitos”

No documento Economia, direito de propriedade e agricultura (páginas 148-157)

Problemática e enquadramento teórico

3. Contributos da leitura institucionalista

3.4. Da propriedade aos direitos de propriedade

3.4.2. O novo institucionalismo: as externalidades e a concepção instrumental dos direitos de propriedade

3.4.2.1. O legado de Coase: a diversidade institucional na resolução dos “harmful effects” e os factores de produção como “direitos”

O artigo de Coase “The problem of social cost” (1960) constitui o ponto de partida nesta referência à abordagem do novo institucionalismo ao tema da propriedade. Este artigo propõe uma alternativa à visão dominante - pigouviana - no âmbito da Economia Pública a propósito da resolução das externalidades.

De acordo com aquela visão, a superação da diferença entre os custos sociais e os custos privados, presente naquela falha de mercado, passa pela intervenção do Estado através da imposição de taxas ou de subsídios. A esta solução única (intervenção do Estado), Coase contrapõe a diversidade de soluções institucionais dada a especificidade das situações em que têm lugar os “harmful effects”20. A opção deverá ser aquela que maximize o valor da produção (“which maximizes the value of production”).

O critério da maximização da produção não se coaduna, no entender de Coase, com soluções únicas como a que sobrevaloriza o papel do Estado e que domina a Economia considerando o autor que “It is my belief that economists, and policy makers generally, have tended to over estimate the advantages which come from governmental regulation” (Coase, 1960: 18). Muitas vezes, e como refere, a situação que se pretende resolver é já o resultado de uma acção estatal anterior, correndo-se assim o risco de uma intervenção excessiva.

Outra inovação da proposta de Coase reside na concepção recíproca das externalidades e, neste sentido, defende que as sanções a aplicar podem recair sobre o emissor ou sobre o receptor das mesmas. Para Coase, a defesa da referida solução única (intervenção do Estado), que passa pela aplicação da sanção ao emissor do “harmful effect”, resulta, uma vez mais, da ausência de comparação entre custos e benefícios:

“The belief that it is desirable that the business which causes harmful effects should be forced to compensate those who suffer damage (…) is undoubtedly the result of not comparing the total product obtainable with alternative social arrangements. The same fault is to be found in proposals for solving the problem of harmful effects by the use of taxes and bounties” (Coase, 1960: 40).

“The problem of social cost” está dividido em duas partes: na primeira, o autor apresenta o “mundo irreal”, sem “custos de transacção”; na segunda, a posição do autor é desenvolvida no “mundo real”, com “custos de transacção”. Estes custos são definidos da seguinte forma pelo autor:

20

“In order to carry out a market transaction it is necessary to discover who it is that one wishes to deal with, to inform people that one wishes to deal and on what terms, to conduct negotiations leading up to a bargain, to draw up the contract, to undertake the inspection needed to make sure that the terms of the contract are being observed, and so on” (id: 15).

Na ausência deste tipo de custos, a definição inicial dos direitos de propriedade é fundamental uma vez que possibilita a negociação entre as partes envolvidas num dado conflito que envolve externalidades negativas. Não obstante, e neste contexto “irreal”, essa definição não tem interferência no resultado final:

“It is necessary to know whether the damaging business is liable or not for damage caused since without the establishment of this initial delimitation of rights there can be no market transactions to transfer and recombine them. But the ultimate result (which maximizes the value of production) is independent of the legal position if the pricing system is assumed to work without cost” (id: 8).

Coase sustenta a sua tese através da apresentação de casos, uns fictícios outros reais, de conflitos de vizinhança. O mais famoso deles envolve um agricultor e um criador de gado cujas explorações são confinantes e em que o gado destrói parte das colheitas do agricultor. Na visão pigouviana, a solução passará pela intervenção do Estado (taxa, multa ou regulação) que recai sobre a causa (criador de gado) daquele efeito. Em alternativa, Coase defende que as partes podem desenvolver uma negociação em que, e admitindo que os custos de transacção são nulos, o agricultor pode evitar a entrada do gado na sua exploração, e a consequente destruição das colheitas, através da compra de “direitos” ao criador de gado, admitindo que a definição inicial dos direitos confere a este último a possibilidade de provocar destruição (“harmful effect”) sem sofrer uma sanção.

Ou seja, Coase alterou duas das condições implícitas na visão pigouviana: primeiro, a de que existe uma única causa da externalidade; segundo, a de que é necessária a intervenção do Estado para internalizar a externalidade. Para Coase, e no caso anteriormente apresentado, ambas as partes são responsáveis pela externalidade, ou seja, a causa é recíproca no sentido de que o desaparecimento de uma das partes resolve o problema. Por outro lado, a possibilidade de um contrato privado

torna desnecessária a intervenção do Estado para atingir um resultado eficiente. Neste caso, o papel do Estado pode resumir-se à delimitação dos direitos de propriedade e à garantia (“enforcing”) da negociação privada.

A combinação da ausência de custos de transacção com a tese da reciprocidade das externalidades defendida pelo autor deu origem ao “Teorema de Coase”.

Embora a ideia deste Teorema tivesse sido apresentado pela primeira vez na Comissão Federal de Comunicações em 1959, conheceu uma primeira formulação em 1966 quando George Stigler referiu que “The Coase theorem (…) asserts that under perfect competition private and social costs will be equal”. O Teorema está na origem de um intenso debate teórico e tem conhecido várias formulações. Destacamos as seguintes:

“If one assumes rationality, no transaction costs, and no legal impediments to bargaining, all misallocations of resources would be fully cured in the markets by bargains” (Calabresi, 1968).

“If transaction costs are zero the structure of the law does not matter because efficiency will result in any case” (Polinsky, 1974).

“In a world of zero transaction costs, the allocation of resources will be efficient, and invariant with respect to legal rules of liability, income effects aside” (Zerbe, 1980).

“When parties can bargain together and settle their disagreements by cooperation, their behavior will be efficient regardless of the underlying rule of law” (Cooter e Unlen, 1988).

A discussão do Teorema tem incidido sobre diferentes aspectos e dado lugar a explorações da investigação económica em vários sentidos:

• aspectos analíticos e consistência lógica: teoria da competição (“the quasi- competitive framework”) (Arrow, 1969); teoria dos jogos (“the game-theoretic framework”) (Davis e Whinston, 1962; Samuelson, 1985; Aivazian, Callen e Lipnowski, 1987);

• experimentação onde se tenta reproduzir um ambiente sem custos de transacção e identificar os efeitos que decorrem, por exemplo, da informação imperfeita (Hoffman e Spitzer, 1982);

• aplicação empírica: apresentação de casos onde se analisa a capacidade de negociação das partes envolvidas em conflito devido à ocorrência de externalidades: Califórnia Trespass Law 1850-90 (Kenneth Vogel, 1987); Effects of Open vs. Closed-Range Laws (Ellickson, 1986, 1991); Roaming Deer in Scottish Highlands (Hanley e Sumner, 1995); e implicações no âmbito de outras normas legais, nomeadamente, o divórcio (Peters, 1986, 1992), o desemprego (Donohue’s, 1989) e o arrendamento (Cheung, 1969a, 1973).

O principal contributo do Teorema enquanto instrumento de análise, e no contexto da perspectiva que nos interessa, consiste no facto de chamar a atenção para as instituições económicas e jurídicas assim como para os seus impactes.

Se na primeira parte do artigo citado, e como tivemos já oportunidade de referir, Coase apresenta um “mundo irreal” sem custos de transacção, na segunda parte (mais extensa) desenvolve o seu raciocínio no “mundo real” onde aqueles custos existem. Não deixa de ser curioso que a divulgação deste artigo se deva ao Teorema cuja formulação ocorre num mundo irreal. A referência de Coase ao mundo real não mereceu igual atenção. A associação do nome de Coase ao mundo sem custos de transacção levou o autor a afirmar em 1988: “I am not a Coasian” (Coase citado em Lueck e Miceli, 2004: 3). Com efeito, Coase sublinha o papel dos custos de transacção na afectação dos recursos e o papel das instituições, incluindo a lei, na determinação dessa afectação.

Em contexto real, os direitos de propriedade são importantes não apenas para a definição da posição de mercado dos indivíduos mas também para a procura da solução eficiente:

“(…) the delimitation of legal rights does have an effect on the efficiency with which the economic system operates. One arrangement of rights may bring about a greater value of production than any other” (Coase, 1960: 16).

Isto justificaria, segundo o autor, a necessidade de os tribunais (Common Law) terem consciência das consequências económicas da lei e faz de Coase um dos precursores, quer da Economia dos Direitos de Propriedade, quer da Economia do Direito (Lueck e Miceli, 2004: 3-4).

Para Demsetz: “It is not generally appreciated that Coase’s reasoning has legal applications that extend beyond problems of the divergence between social and private cost as these typically are conceived” (Demsetz, 1972: 16).

Finalmente, Randall identifica alguns dos trabalhos onde a herança de Coase relativa aos direitos de propriedade é central: a tradição Coase-Buchanan e a tradição Coase-Posner. Estamos perante perspectivas que exploram a importância da definição e redefinição dos direitos de propriedade enquanto base de negociação numa situação de conflito. A primeira, atribui importância à segurança e protecção daqueles direitos face a “invasões e choques externos”; a segunda, reconhece a assimetria introduzida pelos custos de transacção e, nessa medida, incentiva a procura de soluções a partir de uma análise custo-benefício (Randall, 1983).

Segundo Coase, a existência de custos de transacção justifica a diversidade das soluções institucionais (Estado, mercado, empresa) para os “harmful effects” ou mesmo a ausência de uma acção correctiva.

Em “The nature of the firm” (1937) Coase tinha já apresentado as vantagens da empresa em termos de organização da produção com implicações ao nível da definição dos direitos de propriedade. Essas vantagens prendem-se com a “poupança” em termos de custos de transacção que as empresas permitem realizar:

“Within the firm individual bargains between the various cooperating factors of production are eliminated and for a market transaction is substituted an administrative decision. (…), the firm would acquire the legal rights of all the parties and the rearrangement of activities would not follow on a rearrangement of rights by contract, but as a result of an administrative decision as to how the rights should be used” (Coase, 1960: 16).

A regulação estatal directa corresponde a outra das alternativas apresentadas por Coase:

“Just as the government can conscript or seize property, so it can decree that factors of production should only be used in such-and-such a way. Such authoritarian methods save a lot of trouble (…). Furthermore, the government has at its disposal the police and the other law enforcement agencies to make sure that its regulations are carried on” (id: 17).

Por último, e sempre que os benefícios sejam superiores aos custos, a situação pode dispensar uma acção correctiva.

Na visão de Coase, e como vimos, a maximização do valor da produção justifica assim, quer a diversidade de soluções, quer a partilha dos custos envolvidos nos “harmful effects” dada a natureza recíproca destes. Trata-se, em nosso entender, de uma visão redutora da natureza das relações interpessoais e dificilmente aceitável, por exemplo, no actual contexto da discussão em torno das questões ambientais associadas à utilização dos recursos naturais. O próprio Coase tinha consciência das dificuldades da sua proposta. Algumas passagens do artigo que temos vindo a citar sugerem que o autor tinha presente não só a dificuldade de alcançar uma solução passível de contemplar em toda a amplitude os interesses envolvidos quando os “harmful effects” têm lugar, mas também a multidimensionalidade dos problemas económicos.

Sobre o primeiro aspecto, o autor refere a importância da definição de uma taxa calculada em função do valor da produção “in its widest sense”. Reconhece, no entanto, que aquela definição é difícil de concretizar: “(…) to do so would require a detailed knowledge of individual preferences and I am unable to imagine how the data needed for such a taxation system could be assembled” (id: 41).

Sobre o segundo aspecto (multidimensionalidade dos problemas económicos), Coase afirma que a avaliação das diferentes soluções institucionais (“social arrangements”) dos “harmful effects” é feita através da comparação do valor de produção tal como é medido pelo mercado, “as is usual in this part of economics”. Acrescenta, no entanto, que é necessário proceder a uma avaliação mais completa

de forma a contemplar todas as esferas da vida humana. A este propósito Coase cita Knight: “As Frank H. Knight has so often emphasized, problems of welfare economics must ultimately dissolve into a study of aesthetics and morals” (id: 43).

A percepção da multidimensionalidade dos problemas económicos é reforçada na última parte do artigo quando Coase sintetiza o seu contributo no sentido de uma “change of approach” da Economia a propósito dos “harmful effects”. Assim, e para além da necessidade de comparação do “produto total” das diferentes soluções institucionais e de uma aproximação realista ao caso que está a ser observado (“approximating that which actually exists”), Coase propõe ainda que os factores de produção sejam concebidos não como “entidades físicas” mas sim como “conjunto de direitos” cuja manifestação produz efeitos de sentido diverso para os indivíduos a quem a afectação desses factores/direitos diz respeito:

“A final reason for the failure to develop a theory adequate to handle the problem of harmful effects stems from a faulty concept of a factor of production. This is usually thought of as a physical entity which the businessman acquires and uses (an acre of land, a ton of fertilizer) instead of as a right to perform certain (physical) actions. We may speak of a person owning land and using it as a factor of production but what the land- owner in fact possesses is the right to carry out a circumscribed list of actions. The rights of a land-owner are not unlimited. (…). The cost of exercising a right (or using a factor of production) is always the loss which is suffered elsewhere in consequence of the exercise of that right (…). It would clearly be desirable if the only actions performed were those in which what was gained was worth more than what was lost. But in choosing between social arrangements within the context of which individuals decisions are made, we have to bear in mind that a change in the existing system which will lead to an improvement in some decisions may well lead to a worsening of others” (id: 44).

Parece-nos que a proposta de Coase não constitui propriamente uma novidade na Economia uma vez que antes dele, e como vimos, já Commons tinha referido a natureza interindividual da propriedade (direitos de propriedade).

De qualquer forma, a concepção dos factores de produção como direitos remete-nos para a noção de “bundle of rights” ou “bundle of sticks” que surge frequentemente na Economia da Terra (Land Economics) de expressão anglo-saxónica (vd. Barlowe, 1998).

Pensamos que a utilização da expressão direitos de propriedade (“property rights”) decorre justamente daquela noção e pode envolver uma distinção entre a definição económica e a definição jurídica de propriedade. Em Economic Analysis of

Property Rights, Barzel, por exemplo, estabelece essa distinção:

“(…) The term ‘property rights’ carries two distinct meanings in the economic literature. One, primary developed by Alchian (1965, 1987) and Cheung (1969), is essentially the ability to enjoy a piece of property. The other, much more prevalent and much more older, is essentially what the state assigns to a person. I designate the first ‘economic (property) rights’ and the second ‘legal (property) rights’. Economics are the end (that is, what people ultimately seek), whereas legal rights are the means to achieve the end” (Barzel, 1997: 3).

Este autor utiliza predominantemente a definição económica no seu modelo de direitos de propriedade. Aquela distinção está presente também nos trabalhos de Demsetz e de Munzer.

No artigo “The meaning of property rights: law versus economics?” Cole e Grossman apresentam Barzel como um dos autores que não procede a uma definição rigorosa do conceito “property rights”. Para aqueles autores, a apropriação indevida deste conceito por parte de alguns economistas, que confundem propriedade com “uso”, “privilégio” ou “interesse”, acarreta ausência de rigor conceptual e ineficiências em termos da definição de políticas que envolvam esta instituição cuja especificidade reside justamente na necessidade de legitimidade social:

“Someone can control resources without possessing a right, but to assert a right to control resources is to claim that society, through formal law or informal social norms, will enforce one’s control” (Cole e Grossman, 2002: 322).

O maior conjunto de direitos (“the largest bundle of rights”) susceptível de apropriação privada corresponde ao que no sistema legal inglês se designa por “posse completa” (“complete ownership”) ou posse “in fee simple”: “Fee simple owners hold a bundle of separable property sticks or rights.(…). They have the right to possess, use, and within reason exploit, abuse or even destroy their land resources” (Barlowe, 1998: 331). Mais à frente, o autor reconhece, no entanto, que: “Yet it must be recognized that the fee simple owner holds exclusive, not absolute, rights. Ownership rights are always limited and conditioned by the overall interests of society administered by the state” (id: 332).

A propriedade não pode, como defende Commons, dissociar-se do(s) direito(s) de propriedade na sua acepção jurídica. Assim, e ainda segundo este autor, a legitimidade deste direito está presente não só no respeito, traduzido em deveres, a observar pelos outros membros da sociedade (“correlatividade”) e pelo próprio Estado, mas também na definição das regras (que comportam deveres) a observar pelos titulares dos direitos (“reciprocidade”).

A Escola dos Direitos de Propriedade, à qual dedicaremos o próximo ponto, adoptou como ponto de partida a noção anglo-saxónica de propriedade enquanto um “conjunto de direitos” (“bundle of rights”) a capitalizar em termos económicos, ou seja, “it postulates that a parcel of land is but the carrier of profits seen against a set of duties, changes, fees and restrictions of all kinds” (Oestereich, 2000: 226).

No documento Economia, direito de propriedade e agricultura (páginas 148-157)