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Capítulo 2: A Pesquisa Participante como Metodologia de Trabalho

2.2 A pesquisa etnográfica

No diálogo com a antropologia, apropriamo-nos da etnografia como metodologia para nossa pesquisa de campo e procuramos, a partir de uma bricolagem, realizar as tessituras entre a pesquisa etnográfica e as narrativas dos educandos, educandas e educadoras da EJA do acampamento Elizabeth Teixeira, de modo a compor, na forma de texto, a pesquisa realizada. Para isso, fez-se necessário entendermos, do ponto de vista antropológico, a etnografia.

Com a publicação de Os Argonautas do Pacífico Ocidental, em 1922, Bronislaw Malinowski procedeu a uma verdadeira revolução na literatura antropológica, apontando críticas à antropologia clássica, trazendo novas formulações aos problemas teóricos. A fundamental crítica — apontada por ele e por demais antropólogos funcionalistas17 dessa época — à antropologia clássica

refere-se à arbitrariedade das categorias utilizadas.

A comparação entre sociedades diversas é feita através de um desmembramento inicial da realidade em itens culturais tomados como elementos autônomos; com os fragmentos assim obtidos os autores procedem a um rearranjo arbitrário, agrupando-os de acordo com categorias tomadas de sua própria cultura e fabricando com isso instituições, complexos culturais e estágios evolutivos que não encontram correspondência em qualquer sociedade real. (MALINOWSKI, 1978, p. X)

Essas preocupações estavam aparentes em demais obras de Malinowski e tinham como maior princípio “reconhecer e preservar a especificidade e particularidade de cada cultura”

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Influenciados por Durkheim, que forneceu a formulação inicial dos conceitos de função e de integração funcional, essa nova geração de antropólogos procurou construir um método próprio e chegar a uma nova teoria antropológica. (MALINOWSKI, 1978).

(MALINOWSKI, 1978, p. X). Para os funcionalistas, cabe aos pesquisadores descobrirem e não manipularem, compondo, arbitrariamente, os elementos de uma cultura que não é deles.

De forma a buscar compreensão qualitativa dos dados de pesquisa e compreensão do universo amplo das culturas, Malinowski contribuiu para uma “abordagem metodológica na qual a observação participante tornou-se elemento central” (SILVA, 2006, p.13). As práticas de pesquisas que anteriormente eram realizadas com visitas de curta duração dos pesquisadores às comunidades pesquisadas, com aplicação de questionários aplicados com auxílio de tradutores foram alteradas radicalmente, pois Malinowski passou a viver permanentemente na aldeia que estudava, ficando afastado de outros homens brancos e aprendendo a língua nativa. Ele adotou a convivência diária e procurou capacitar-se de forma a entender o que estava sendo dito, participando das conversas e dos acontecimentos da vida da aldeia18. Dessa forma, uma nova relação foi imposta, e o antropólogo

passou a olhar a pesquisa desde dentro, tornando-se também um instrumento dela.

Nos anos 70, os antropólogos, desconfiados da capacidade explicativa dos modelos clássicos das representações holísticas fechadas do “outro”, criaram a antropologia interpretativa, desenvolvida principalmente por Clifford Geertez, que procurou ver a cultura como um texto elaborado socialmente pelos homens. “A interpretação antropológica, configuraria, assim, uma leitura de segunda ou terceira mão feita “por sobre os ombros do nativo” que faz a leitura de primeira mão de sua cultura” (SILVA, 2006, p.14).

Em antropologia ou, de qualquer forma, em antropologia social, o que os praticantes fazem é a etnografia. E é justamente ao compreender o que é a etnografia, ou mais exatamente, o que é a prática da etnografia, é que se pode começar a entender o que representa a análise antropológica como forma de conhecimento. Devemos frisar, no entanto, que essa não é uma questão de métodos. Segundo a opinião dos livros-textos, praticar a etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por diante. Mas não são essas coisas, as técnicas e os processos determinados, que definem o empreendimento. O que o define é o tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma "descrição densa", tomando emprestada uma noção de Gilbert Ryle. (GEERTZ, 1989, p.4)

No início dos anos 80, incomodados com “a visão da pesquisa antropológica como uma atividade mais observadora e menos interpretativa do que ela realmente é” (GEERTZ, 1989, p.7), alguns antropólogos passaram a questionar as dimensões da intersubjetividade e as relações de poder estabelecidas entre pesquisador e pesquisado, a inserção do antropólogo no campo e as consequências que seu discurso científico tem sobre suas práticas sociais, além de diversas outras

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Os princípios fundamentais dessa prática e o desenvolvimento dessa experiência estão minuciosamente relatados na introdução dos Argonautas do Pacífico Ocidental. (MALINOWSKI, 1976)

questões levantadas e pensadas por eles (SILVA, 2006).

Dessa maneira, a atividade etnográfica de desvelar o sistema ordenado de significados e símbolos por meio dos quais os indivíduos definem seus mundos e fazem seus julgamentos começou a problematizar o lugar do antropólogo na interpretação do conhecimento local.

Uma série de novas tentativas de escritas foi inventada, tentando, a todo modo, inserir na produção da etnografia o próprio nativo pesquisado, seja através de extensas falas ao longo do texto, seja, até, dividindo a autoria final com eles. De qualquer forma, a definição interpretativista da cultura como texto — que prometia alçar o conhecimento local ao mesmo estatuto do conhecimento acadêmico — e todas as metodologias desenvolvidas para retirar das mãos do etnógrafo o poder da análise não conseguiram desfazer uma relação de poder existente no próprio momento da produção do conhecimento compartilhado.

No entanto, a posição externa do pesquisador no campo e a posição desigual entre ele e os pesquisados também se constituem numa relação reveladora. A externalidade da figura do etnógrafo produz situações em que significados e simbologias são compartilhados por aqueles que os vivenciam, saem de seu acordo tácito e são explicitados. Desse modo, a relação desigual que impossibilita a escrita etnográfica conjunta, antes de ser um problema incontornável, explicita relações sociais do campo com o seu exterior, fazendo uso dessa situação em sua análise.

Sendo assim, a pesquisa etnográfica busca reconstruir o universo do campo pesquisado a partir do trabalho de olhar, ouvir e escrever. O pesquisador deve descrever com rigor: detalhes, descobertas, caminhos possíveis, decisões, intuições etc. Esses detalhes devem ser expressos em um texto, com dimensões reduzidas de todo aquele universo experimentado pelo pesquisador — sendo isso uma tarefa árdua, pois o pesquisador necessita levar para a complexidade da academia, na forma de um texto acadêmico (OLIVEIRA, 2006), todo o processo por ele experimentado e vivido.

O texto etnográfico, como representação do campo e das relações que nele se dão, pode ser, portanto, menos o resultado “final” de uma pesquisa, e mais um meio para a melhor compreensão dos valores do outro, considerando o fato de que estes valores são interpretados por alguém que também não se despe de seus próprios valores e subjetividades, e fala para terceiros, desconhecidos, de modo generalizante, ainda que “cuidadosamente”. Quem escreve, sobre o quê, e para quem, são os principais elementos de uma etnografia que considera os aspectos visíveis e invisíveis do trabalho antropológico e seu papel de crítica cultural. (SILVA, 2006, p. 183-184)

No Brasil, as pesquisas educacionais mostraram bastante interesse pela etnografia a partir do final dos anos 1970, motivadas pelos estudos da sala de aula e da avaliação curricular (ANDRÉ, 1997). Através de suas pesquisas, Marli André nos mostra o universo das pesquisas

educacionais anteriores ao final dos anos 70, com base nos instrumentos de observação que objetivavam o registro e análise do comportamento de professores e alunos em situações de interação. A partir da análise das obras de diversos autores, André (1997) afirma que a alternativa para diversos problemas apontados nas pesquisas educacionais com base na observação seria a abordagem antropológica.

Justificam tal proposição dizendo que as interações de sala de aula ocorrem sempre num contexto permeado por uma multiplicidade de significados que, por sua vez, fazem parte de um universo cultural que deve ser estudado pelo pesquisador. Para entender e descrever esse universo, o pesquisador deve fazer uso da observação participante, que envolve observação, anotações de campo, entrevistas, análises de documentos, fotografias, gravações. Os dados são considerados sempre inacabados. O observador não pretende comprovar teorias nem fazer generalizações estatísticas. O que busca, sim, é compreender e descrever a situação, revelar seus múltiplos significados, deixando que o leitor decida se as interpretações podem ou não ser generalizáveis, com base em sua sustentação teórica e em sua plausibilidade. (ANDRÉ, 1997, p. s/n)

Apontando para as pesquisas educacionais hoje, com enfoque na etnografia, André (1997) ressalta a importância dos pesquisadores se aterem às questões culturais, éticas e de valores dos sujeitos ou das comunidades pesquisadas, buscando romper estruturas e relações de poder que possam ainda estar impostas entre pesquisador e pesquisado.

Neste trabalho, utilizamos da pesquisa etnográfica participante, registrando o cotidiano da EJA no acampamento Elizabeth Teixeira em cadernos de campo e fotografias que serão apresentados no Capítulo 3 deste trabalho.