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Capítulo 3: O acampamento Elizabeth Teixeira: o protagonismo da EJA nas

3.6 Percepções sobre a sala multisseriada da EJA

Segundo dados do Inep, relativos ao Censo Escolar de 2002, no Brasil cerca de metade das escolas que se encontram no campo ainda possuem apenas uma sala de aula e dessas, 64% são multisseriadas (HAGE, 2006). De acordo com o mesmo censo, a maior parte dos educadores que estão nessas salas de aula não possuem formação adequada e apenas 9% possuem ensino superior (idem). A falta de formação adequada, de informação e de atenção à formação continuada dos educadores e educadoras, seguidos geralmente de uma sobrecarga de trabalho, como já apresentaram Leonela e Iveline, se agravam ainda mais quando as educadoras são colocadas dentro de uma sala multisseriada, como pode ser observado a partir da narrativa de Leonela,

Tenho dificuldade em sala, com os educandos, que é a questão de cada um estar em um nível diferente e a gente tem que lidar com essa diferença na mesma aula e com o mesmo tema. Então, isso é uma dificuldade que a gente tem, pois uns são mais rápidos, outros demoram mais para entender e isso é uma dificuldade. (Leonela)

No caso da escola do acampamento Elizabeth Teixeira, Leonela tem a ajuda diária de Iveli- ne, que tem a consciência de que Leonela não daria conta sozinha de tanto trabalho. O planejamento de aula para uma sala multisseriada, por mais que os educandos aqui entrevistados já tenham sinali- zado uma preocupação e respeito ao tempo de aprendizado dos demais alfabetizandos, as educado- ras acabam tendo dificuldade em realizar o planejamento de aulas, que é até hoje acompanhado no acampamento Elizabeth Teixeira pelo Coletivo Universidade Popular. A educadora Iveline, por tra- balhar fora do acampamento e ter poucos horários disponíveis, acaba sendo prejudicada quanto ao planejamento, pois ela infelizmente não consegue participar. Durante o planejamento, também são pensados momentos de formação para a educadora. O grupo está ainda se organizando para conse- guir que Iveline participe semanalmente dos planejamentos. De forma a garantir que ela acompanhe e se integre às aulas, ela nos conta qual a dinâmica que estabelece com Leonela,

Então, temos essa dificuldade, por que geralmente eu chego e a Leonela já apron - tou a aula. Então ela me explica o que pensou e fazemos juntas. No início a gente estava se encontrando, mas aí começaram umas dificuldades, por que de sábado ela tem compromisso, no domingo ela faz a feira, então é sempre meio difícil. A gente conversa por mensagem de celular ou por e-mail, mas não é sempre que montamos a aula juntas. As vezes eu vou com uma ideia e falo para ela, aí combi - namos melhor e fazemos na próxima aula. As vezes a gente conversa na própria aula sobre isso. Realmente estamos um pouco desorganizadas nessa parte também, mas nem sempre dá toda semana, o que seria o certo! O sábado é o único dia que eu tenho para ir na cidade e pagar contas, por exemplo. Mas a gente é assim, eu sempre gosto do que ela prepara e dou opinião, a gente se dá muito bem! Muitas vezes a gente conversa por whatssap e fica montando a aula, na hora do meu al- moço no trabalho. A gente sempre conversa sobre as aulas, eu por exemplo fico responsável pelas aulas de matemática, por que eu adoro e ela deixa para mim. Aí vou lá, faço muitas contas e eles até falam “nossa professora, está inspirada heim?”, mas não são tantas, a gente vai fazendo juntos, é bem legal! Eles falam isso, mas também eu passo e em cinco minutos eles terminam. A formação com o pessoal do coletivo é boa, por que é importante opiniões e ajuda de quem está de

fora, trazem novas ideias, é sempre bom pra gente! (Iveline)

A sobrecarga de trabalho das educadoras fica evidente na narrativa de Iveline, ela trabalha em uma fábrica a semana toda e poderia participar da formação e do planejamento das aulas aos sá- bados, o que ela indica que é muito importante, porém o sábado é o único dia que ela consegue cui - dar das coisas pessoais, que só podem ser feitas na cidade, que é distante do acampamento. Leonela também é uma educadora sobrecarregada para além das atividades da escola, ela cuida de sua roça, de sua casa, faz feira, participa da cooperativa de mulheres entre outras atividades e deixa expressa sua dificuldade em como trabalhar em uma sala em que “cada um está em um nível diferente”, como ela mesma cita.

Assim, concordamos com as conclusões de Hage (2006), que ele traz de sua pesquisa reali- zada com populações camponesas da região Norte do Brasil,

As escolas multisseriadas são espaços marcados predominantemente pela heterogeneidade, ao reunir grupos com diferenças de série, de sexo, de idade, de interesses, de domínio de conhecimentos, de níveis de aproveitamento, etc. Essa heterogeneidade inerente ao processo educativo da multissérie, articulada a particularidades identitárias relacionadas a fatores geográficos, ambientais, produtivos, culturais, etc., são elementos imprescindíveis na composição das políticas e práticas educativas a serem elaboradas para a Região Norte e para o País. Essa prerrogativa referencia nossa intencionalidade de pensar a educação do lugar dos sujeitos do campo, o que significa que, se temos por pretensão elaborar políticas e práticas educativas includentes para as escolas do campo, é fundamental reconhecer e legitimar as diferenças existentes entre os sujeitos, entre os ecossistemas e entre os processos culturais, produtivos e ambientais cultivados pelos seres humanos nos diversos espaços sociais em que se inserem. Não obstante, não podemos desconsiderar a visão dos sujeitos envolvidos com a multissérie, que consideram toda essa heterogeneidade mencionada como um fator que dificulta o trabalho pedagógico, fundamentalmente porque se tem generalizado na sociedade que as "classes homogêneas" são o parâmetro de melhor aproveitamento escolar e, consequentemente, de educação de qualidade. Contudo, os fundamentos teóricos que orientaram a realização da pesquisa apontaram justamente o contrário, indicando ser a heterogeneidade um elemento potencializador da aprendizagem e que poderia ser mais bem aproveitado na experiência educativa que se efetiva na multissérie, carecendo, no entanto, de muitos estudos e investigações sobre a organização do trabalho pedagógico, sobre o planejamento e a construção do currículo e de metodologias adequadas às peculiaridades de vida e de trabalho das populações do campo, o que de forma nenhuma significa a perpetuação da experiência precarizada de educação que se efetiva nas escolas multisseriadas tal qual identificamos nesse estudo. (HAGE, 2006, p. 311)

Gostaríamos de destacar que, o fato da sala da EJA no acampamento Elizabeth Teixeira ser uma sala multisseriada não é avaliado como negativo pelos educandos e educandas, ao contrário, eles e elas se preocupam com o aprendizado dos companheiros e companheiras, tanto que parecem não medirem esforços para contribuírem com esse processo, o que já foi visto em narrativas anteriores.

Porém, a questão que se coloca aqui está imbricada na formação das educadoras, que não foram devidamente preparadas para lidarem com essa particularidade da sala de aula, o que resulta em sobrecarga de trabalho e questionamentos das suas práticas. O acompanhamento pedagógico e a formação continuada, quando não realizada pelos órgãos responsáveis acabam por ficar a cargo de apoiadores, como ocorre na EJA do acampamento Elizabeth Teixeira, mas que muitas vezes também não dão conta de lidar com tantas demandas.