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CAPÍTULO IV – A DESENCRIPTAÇÃO DE SMARTPHONES PARA

OBTENÇÃO DE PROVA E A SUA ARTICULAÇÃO COM O PRINCÍPIO DA

4. Critérios para a determinação de violação do princípio nemo tenetur se ipsum

4.3. Critério da ponderação de bens

4.3.2. A ponderação enquanto critério de resolução de conflitos entre

direitos fundamentais

Sendo o princípio nemo tenetur sujeito a restrições, não causa estranheza afirmar que o processo penal é foco permanente de tensões entre o dever de eficácia que é exigido aos responsáveis pela investigação criminal e as garantias de defesa que cabem a todos os arguidos. É, assim, neste âmbito, que assume relevância a ponderação deste amplo direito dos arguidos em não colaborar para a autoincriminação, quando em confronto com outros valores como a eficácia da investigação criminal e a tutela efectiva da justiça382.

Augusto Silva Dias e Vânia Costa Ramos são dois Autores que perfilham este critério como sendo o correcto para a delimitação entre a coacção permitida e a coacção proibida. Segundo os Autores, “sempre que o suspeito (ou arguido) seja induzido ou coagido, por forma mais ou menos activa ou mais ou menos intelectualmente elaborada, a colaborar

379 Alexy, 2008: 70.

380 Alexy, 2014: 819. Contra este entendimento vai Vieira de Andrade, ao defender que “[…] a limitação de direitos fundamentais, associada ao método da ponderação e da harmonização, toma um sentido muito amplo, que tende a consumir na colisão de direitos ou de direitos e valores, além dos casos de harmonização, a declaração de limites imanentes e a restrição legislativa”. Cf. Vieira de Andrade, 2016: 266-267. 381 Reis Novais, 2010: 339.

na sua inculpação, cai-se na esfera de protecção do nemo tenetur”383. No entanto, estando- se perante um princípio de natureza não absoluta, existe a necessidade de encontrar um ponto de equilíbrio entre as garantias de defesa do arguido e os interesses da investigação. Com efeito, a descoberta da verdade e a correcta realização da justiça criminal ficariam seriamente comprometidas caso fossem eliminadas todas as possibilidades de utilização de elementos probatórios provenientes da esfera do arguido ou obtidos com a sua colaboração384. Para os Autores citados, e para a maioria da doutrina nacional385, o referido ponto de equilíbrio é dado pela ideia de concordância prática fundada na ponderação de interesses conflituantes386. “Porque nenhum princípio pode pretender, na sua globalidade, vigência absoluta”, são legítimas as restrições ao nemo tenetur impostas pela necessidade de salvaguarda de um interesse ou direito concretamente prevalecente, como será o da máxima eficácia da administração da justiça na perseguição dos crimes mais graves387.

De facto, ter um direito fundamental significa, na sua dimensão subjectiva, ter uma posição forte de garantia que vincula directamente as entidades públicas, no sentido de que estas não podem dispor ou intervir livremente sobre ela sem que estejam preenchidos requisitos constitucionais escritos388. Porém, dada a necessidade de essas posições serem compatibilizadas com outros bens, a ponderação dos bens em conflito parece ser o melhor procedimento, ao invés de um critério all or nothing389.

Neste caso, quando os poderes constituídos procedem à harmonização ou compatibilização de bens, não procedem à mera declaração de limites já existentes, mas determinam, de uma maneira geral constitutivamente, de entre várias hipóteses de solução ao seu dispor, o se, o como e o quanto da eventual cedência (restrição) dos direitos

383 Silva Dias/Ramos, 2009: 29. 384 Oliveira Silva, 2015: 617.

385 “A doutrina portuguesa vem aceitando a concepção de Dworkin e de Alexy segundo a qual o Dasein dos princípios é em colisão com outros e o modo de dirimir essa colisão é, não através de um critério all or nothing, mas por meio de uma compatibilização ou concordância prática que visa aplicar todos os princípios colidentes, harmonizando-os entre si na situação concreta”. Cf. Silva Dias/Ramos, 2009: 23.

386 Neste sentido Gomes Canotilho e Vital Moreira defendem que “a restrição de direitos fundamentais implica necessariamente uma relação de conciliação com outros direitos ou interesses constitucionais e exige necessariamente uma tarefa de ponderação ou de concordância prática dos direitos ou interesses em conflito”. Cf. Canotilho/Moreira, 1991: 134.

387 Silva Dias/Ramos, 2009: 34. “O grau dessa restrição depende da importância constitucional dos direitos ou interesses públicos colidentes, mas nunca pode ir ao ponto de aniquilar o conteúdo essencial de qualquer deles (v. n.º 3 do artigo 18.º da CRP)”. Cf. Silva Dias, 2010: 246.

388 Reis Novais, 2010: 570. 389 Silva Dias/Ramos, 2009: 23.

fundamentais390. Desta forma, não devemos falar aqui, contrariamente ao defendido pela teoria interna dos limites dos direitos fundamentais, em limites imanentes. Os direitos de terceiros ou outros bens constitucionais que colidam com os direitos fundamentais não são os seus limites, ou seja, não excluem, a priori, qualquer exercício de direito fundamental que eventualmente afecte esses bens. O que se passa, como bem defende Jorge Reis Novais, é que, “tendo os direitos fundamentais uma validade condicionada à cedência perante valores que apresentem, no caso concreto, um maior peso, pode acontecer que, por força da sua colisão com esses bens, os interesses […] jusfundamentalmente protegidos tenham que ceder”391. Efectivamente, quando um

princípio, direito ou garantia, é superior a outro de acordo com critérios de relevância constitucional e não é possível na situação concreta salvaguardar alguns aspectos do princípio inferior, nesse caso, é permitido o sacrifício deste último392.

Sem embargo, cumpre deixar claro que a colisão dos mesmos bens num outro caso concreto pode ser resolvida num sentido ou numa medida de restrição completamente diferentes, seja pela novidade das circunstâncias envolventes seja pela diversidade das específicas modalidades, áreas ou recortes dos interesses e dos bens em colisão.

No fundo, como já referimos anteriormente, todo o problema dos limites dos direitos fundamentais em Estado de Direito gira em torno de duas exigências de sentido potencialmente divergente: de um lado, as necessidades de protecção privilegiada e qualidade das liberdades individuais e, de outro, a satisfação, por parte do Estado, das necessidades de vida em comunidade politicamente organizada e, em particular, a garantia dos direitos fundamentais dos outros e a realização dos bens constitucionais.