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CAPÍTULO IV – A DESENCRIPTAÇÃO DE SMARTPHONES PARA

OBTENÇÃO DE PROVA E A SUA ARTICULAÇÃO COM O PRINCÍPIO DA

3. A sujeição a perícias, exames e diligências de prova e a sua articulação com o

princípio nemo tenetur se ipsum accusare

Como já tivemos oportunidade de enfatizar anteriormente, o facto de o arguido ser considerado um sujeito do processo penal, não significa que não possa, em determinados termos demarcados pela lei por forma estrita e expressa, constituir ele próprio um meio de prova. Desta forma, sobre o arguido recai o dever de se sujeitar a diligências de prova especificadas na lei e ordenadas e efectuadas por entidade competente (al. d) do n.º 3 do artigo 61.º do CPP), considerando-se como tais as diligências de prova que não forem proibidas por lei e que sejam necessárias para a descoberta da verdade e a realização da justiça301.

Não obstante este dever de sujeição que recai sobre o arguido, o mesmo não significa que o arguido não se possa opor à realização dessas diligências quando forem manifestamente ilegais, v.g., por atentatórias de direitos fundamentais, e de nessa medida recorrer aos meios que a lei lhe confere, nomeadamente o de recurso judicial. O que a alínea d) do n.º 3 do artigo 61.º do Código de Processo Penal prevê é que, pressupondo que o meio de prova seja legal, o arguido deve sujeitar-se à diligência302. Assim, a obrigação que

impende sobre o arguido de se sujeitar a diligências de prova tem de ser temperada com o direito fundamental da não-autoincriminação, porque ele não pode ser objecto de prova, instrumento abusivo da sua própria condenação ou de qualquer forma obrigado a contribuir para estabelecer a sua própria culpabilidade303.

A sujeição coerciva do arguido a diligências de prova tem carácter excepcional, na estrita medida em que se mostrem ineficazes outros meios de prova, devendo observar-se quanto

301 Garrett, 2007: 15.

302 Monte, 2006: 254-255. 303 Garrett, 2007: 17.

à sua utilização os mesmos princípios que regem a aplicação da medida de coacção da prisão preventiva304.

Algumas diligências de prova a que o arguido pode ser sujeito estão expressamente previstas no Código de Processo Penal, nomeadamente, a perícia (artigo 151.º e seguintes do CPP) e o exame (artigo 171.º e seguintes do CPP).

O Código de Processo Penal enquadrou a perícia no âmbito dos meios de prova, referindo no seu artigo 151.º que “a prova pericial tem lugar quando a percepção ou apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos”. A perícia surge, assim, como um meio de prova auxiliar, facultando à entidade responsável pela decisão a proferir, elementos de que esta careça e que sejam necessários à percepção ou apreciação dos factos305.

No que à doutrina diz respeito, no entender de Germano Marques da Silva, “a qualificação que melhor cabe à perícia é efectivamente a de meio de prova pessoal”, sendo o seu objecto “a percepção dos factos ou a sua valoração”, uma vez que “o perito pode descobrir meios de prova, recorrendo a métodos científicos únicos a permitirem a sua apreensão ou pode exigir-se ao perito não a descoberta dos factos probatórios, mas apenas a sua apreciação”306. Na mesma esteira, Manuel Andrade defende a ideia de que a perícia

“traduz-se na percepção, por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos científicos ou técnicos especiais, ou por motivos de decoro ou de respeito pela sensibilidade (legítima susceptibilidade) das pessoas em quem se verificam tais factos; ou na apreciação de quaisquer factos (na determinação das ilações que deles se possam tirar acerca doutros factos), caso dependa de conhecimentos daquela ordem, isto é, de regras de experiência que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, como na generalidade das pessoas instruídas e experimentadas”307.

304 Monte, 2006: 252. Garrett, 2007: 16.

305 Cf. Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, P000642006, de 2 de Novembro de 2006, disponível em: http://www.ministeriopublico.pt/iframe/pareceres-do-conselho- consultivo-da-pgr [consultado em 23.01.2017].

306 Marques da Silva, 2011: 197-198. 307 Andrade, 1979: 261.

Em sentido inverso, o exame é um meio de obtenção de prova (e não um meio de prova, como a perícia) destinado a recolher vestígios materiais de factos com relevância penal, em ordem à determinação das circunstâncias da prática e da respectiva autoria308.

No mesmo sentido vai a lei quando aponta que os exames têm por finalidade inspeccionar “os vestígios que possa ter deixado o crime, e todos os indícios relativos ao modo e ao lugar onde foi praticado, às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido” (n.º 1 do artigo 171.º do CPP)309.

O exame visa a detecção de vestígios, a perícia visa a avaliação desses mesmos vestígios (v.g. dactiloscopia310).

Um ponto fundamental a ter em consideração em matéria de sujeição a exames tem que ver com a sua obrigatoriedade (n.º 1 do artigo 172.º do CPP). Este princípio expressa-se na possibilidade de a autoridade judiciária competente compelir o arguido à observância de tais obrigações, ainda que condicionadas (no caso de exame susceptível de ofender o pudor das pessoas) ao respeito pela intimidade e dignidade da pessoa a examinar, não se permitindo assistentes, além da própria autoridade judiciária ou de pessoa de confiança do visado que este venha a indicar (n.º 3 do artigo 172.º do CPP).

Contrariamente às perícias, os exames não supõem a existência de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos. No entanto, a mera detecção (e não avaliação) de vestígios que exija especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos é ainda um exame. Assim também, a avaliação de vestígios que não exija especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, isto é, que apenas exija conhecimentos comuns, não é uma perícia, mas um exame311.

Figueiredo Dias fala aqui de uma dupla natureza dos exames, visto que são “[…] por um lado, meios de prova, enquanto neles se faça avultar o juízo que se emite sobre as qualidades ou características de uma pessoa, i.e., enquanto neles se tenha primacialmente em vista a sua mais ou menos acentuada natureza de inspecção ou perícia; na medida,

308 Simas Santos/Leal-Henriques/Simas Santos, 2010: 226-227.

309 Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 3 de Março de 2016, disponível em:

http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/36f34b50b321b89980257f6f004d5fc6? OpenDocument [consultado em 23.01.2017].

310 A dactiloscopia assenta na comparação das marcas digitais colhidas directamente dos objectos por técnicas cada vez mais apuradas, com as impressões digitais constantes dos ficheiros policiais, para o estabelecimento da coincidência (match) das respectivas formas, as quais são absolutamente originais em cada ser humano. Cf. Oliveira, 2008: 134-135.

porém, em que o objecto do exame seja uma pessoa, que assim se vê constrangida a sofrer ou a suportar uma actividade de investigação sobre si mesma, o exame constitui um verdadeiro meio de coacção processual”312.

Depois de analisadas as figuras da diligência de prova, perícia e exame, podemos concluir que a recolha de impressões digitais313 é um exame314. Isto porque a sua detecção e avaliação não supõe a existência de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, sendo apenas exigíveis conhecimentos comuns ao nível da anatomia humana. Não obstante o que foi dito até agora sobre diligências de prova, perícias e exames e, nomeadamente, sobre o facto de a recolha de impressões digitais ser um exame, surge- nos a questão: em caso de necessidade de desencriptação por impressão digital de um smartphone (no caso concreto da marca Apple), seria esta recolha de impressões digitais (exame) suficiente para o seu desbloqueio?

A esta pergunta teremos de responder negativamente. Tal como deixamos claro no Capítulo III do presente estudo, e atendendo ao caso concreto do iPhone, a tecnologia usada no fabrico do Touch ID é uma das formas mais avançadas de hardware e software alguma vez implementada num smartphone. O sensor consegue captar uma imagem de alta resolução das camadas subepidérmicas da pele localizadas em pequenas secções da impressão digital, impossibilitando assim que uma réplica da impressão digital do arguido seja eficaz para a sua desencriptação.

Desta forma, a única maneira eficiente de desencriptar o smartphone seria através da coacção do arguido no sentido de colocar o seu dedo no sensor. Mas, neste caso, estaremos perante uma perícia ou um exame?

Ora, o acto (compelido) de colocar o dedo no sensor de um smartphone não pode ser considerado, pelo que analisámos anteriormente, nem uma perícia, nem um exame, nem uma declaração verbal (v.g. fornecimento da palavra-passe), mas sim uma outra diligência

312 Figueiredo Dias, 2004: 438-439.

313 As impressões digitais são consideradas como um vestígio morfológico. Neste sentido, cf. Ferreira, 2014: 81. “Os vestígios que podem ser detectados ou até mesmo avaliados em sede de exame podem ser classificados como físicos ou materiais (materialmente individualizáveis) ou psíquicos ou imateriais (condutas comportamentais, psíquicas ou de personalidade). Os vestígios físicos podem ser divididos em: orgânicos ou biológicos (saliva, sémen, sangue, urina, secreções, unhas, plantas, insectos, estupefacientes, entre outros); não orgânicos ou não biológicos (instrumentos, fragmentos, solos, tintas, vidros, gases, explosivos, venenos, papel, documentos, entre outros); morfológicos (impressões digitais, palmares e plantares, pegadas, rastos, marcas de objectos, vestígios balísticos, entre outros)”.

de prova (al. d) do n.º 3 do artigo 61.º do CPP)315, relativamente à qual não cabe invocar o direito ao silêncio (al. d) do n.º 1 do artigo 61.º do CPP).

Chegados a este ponto, resta-nos concluir que, ao passo que o fornecimento da palavra- passe para a desencriptação de smartphone se reconduz a um acto comunicativo ou declarativo (al. d) do n.º 1 do artigo 61.º do CPP), a desencriptação do smartphone através da colocação do dedo no sensor para a leitura da impressão digital será uma diligência de prova (al. d) do n.º 3 do artigo 61.º do CPP). E, como já deixamos claro nas páginas anteriores, a área de abrangência do princípio nemo tenetur se ipsum accusare não se restringe às declarações orais – nomeadamente ao fornecimento de palavra-passe - proferidas pelo arguido.

No entanto, conforme assinala Costa Andrade, importa reconhecer que existe uma “zona de fronteira e concorrência entre o estatuto do arguido como sujeito processual e o seu estatuto como objecto de medidas de coacção ou meios de prova. Nesta zona cinzenta deparam-se, não raramente, situações em que não é fácil decidir: quando se está ainda no âmbito […]” de uma diligência de prova admissível mesmo se coactivamente imposta; “[…] ou quando, inversamente, se invade já o campo da inadmissível autoincriminação coerciva”316. Assim, a legitimidade destas diligências depende da questão de saber se a

sua realização ainda é compatível com o estatuto de sujeito processual do arguido ou se traduz antes uma degradação deste à condição de objecto do processo317.

É ainda de ressalvar que, atendendo ao facto de que o próprio direito ao silêncio, conferido ao arguido em sede de processo criminal, não é absoluto, ou seja, pode ser limitado, podemos afirmar também que o próprio fornecimento de palavra-passe (declaração) para a desencriptação de smartphone pode gerar algumas dúvidas, nomeadamente quanto à questão de saber até que ponto está ou não violado o princípio contra a autoincriminação nesta situação.

Por conseguinte, coloca-se a pergunta: de que critério ou critérios deve, então, o intérprete socorrer-se para aquilatar se a revelação da palavra-passe ou a desencriptação por leitura

315 Em sentido semelhante, mas relativamente à recolha de autógrafos, Cruz Bucho afirma que “[…] num caso de recolha de autógrafos não estamos perante declarações verbais do arguido, mas sim perante uma diligência de prova relativamente à qual não cabe invocar o direito ao silêncio”. Cf. Cruz Bucho, 2013: 34. 316 Costa Andrade, 1992: 127.

da impressão digital do arguido se encontram ou não abrangidos pelo princípio nemo tenetur se ipsum accusare?

Para respondermos a esta questão, analisaremos no próximo ponto os critérios apresentados pela doutrina e jurisprudência nacionais e internacionais.