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CAPÍTULO V – A RECOLHA DE PROVAS EM VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DE

1. As proibições de prova

1.4. O efeito-à-distância das proibições de prova

Por fim, perante uma prova proibida, coloca-se a questão de saber se a proibição vale só para o meio de prova obtido directamente de modo proibido ou se também afecta outros meios de prova obtidos indirectamente através da prova proibida549 – é a problemática do efeito-à-distância das proibições de prova. De facto, é na consideração da extensão da proibição da valoração da prova obtida com proibição de produção que se colocam muitas das problemáticas que ainda hoje ocupam a doutrina e a jurisprudência550.

O problema do efeito-à-distância suscita-se nos casos em que a obtenção de uma determinada prova torna possível a descoberta de novos meios de prova contra o arguido ou contra terceiro. Nestes casos, cabe questionar se a proibição de valoração que eventualmente inquine a prova primária ou directa se comunica, e em que medida, às provas secundárias ou indirectas, impondo a sua exclusão em cadeia. Como facilmente se representará, o problema ganha particular relevo prático-jurídico nas hipóteses frequentes em que o recurso a métodos proibidos de prova (v.g., a coacção) levam o arguido a comprometedoras declarações autoincriminatórias551.

Como defende Paulo de Sousa Mendes, a doutrina jurisprudencial dos “frutos da árvore envenenada” (fruit of the poisonous tree doctrine) ou da “mácula” (taint doctrine) e a sua equivalente germânica, também designada de teoria da mácula (Makel-Theorie), enquanto metáfora da nodóa de ilegalidade, reconhece que as provas que atentam contra os direitos de liberdade arrostam com um efeito-à-distância que consiste em tornarem inaproveitáveis as provas secundárias a elas causalmente vinculadas552.

548 Rosa, 2010: 235.

549 Miranda/Medeiros, 2010: 737. 550 Neves, 2011: 317.

551 Costa Andrade, 1992: 169.

552 Sousa Mendes, 2014: 219. A génese da jurisprudência da ‘mácula’ foi o caso Silverthorne Lumber Co. v. United States, decidido pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América, em 1920. Estava em causa o facto de agentes federais terem apreendido ilegalmente documentos nas instalações da sociedade comercial Silverthorne, que um tribunal de comarca (district court) mandou devolver, tendo o procurador (prosecutor) promovido perante um grande júri (grand jury) a notificação dos arguidos (defendants) para produzirem os mesmos documentos, sob pena de multas (subpoenas). Em via de recurso, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América decidiu que as referidas intimações eram inválidas, declarando, pela pena do famoso Juiz Conselheiro Oliver Wendell Holmes, Jr., enquanto relator que: “[a] essência de uma norma de proibição de aquisição de provas de certa maneira não se limita a determinar que as provas

O efeito-à-distância é a única forma de impedir que os investigadores policiais, os procuradores e os juízes menos escrupulosos se aventurem à violação das proibições de produção de prova na mira de prosseguirem sequências investigatórias às quais não chegariam através dos meios postos à sua disposição pelo Estado de Direito553.

Na jurisprudência portuguesa, o efeito-à-distância foi reconhecido, pela primeira vez, pelo Tribunal Judicial de Oeiras (Sentença do 3.º Juízo, de 5 de Março de 1993, Proc. n.º 777/91, 2.ª Secção): “a nulidade do primeiro dos meios de prova é extensiva ao segundo, impossibilitando, da mesma forma, o julgador de extrair deste último qualquer juízo valorativo”.

Contudo, a vigência da doutrina do efeito-à-distância está longe de ser absoluta e irrestrita. A história da emergência e afirmação do princípio também é a história do enunciado e das tentativas de fundamentação e sistematização de uma gama alargada de excepções554.

Entre elas avulta, em primeiro lugar, a excepção da “fonte independente” (independent source exception)555, derivada dos precedentes Silverthorne Lumber Co. v. United

States556 de 1920, Wong Sun v. United States557 de 1963 e Segura v. United States558 de 1984, que admite a possibilidade de valoração das provas mediatas, nos casos em que, ao lado do chamado caminho proibido, existe um outro caminho autónomo, independente, de onde as mesmas provas podem também ser retiradas559. Ou seja, aceita as provas que

foram ou poderiam ter sido obtidas por via autónoma e lícita560.

assim adquiridas não poderão ser utilizadas em tribunal, mas também que não poderão ser usadas de maneira nenhuma. É claro que isto não significa que os factos assim obtidos se tornem sagrados e inacessíveis. Se a informação acerca dos mesmos for obtida através de uma fonte independente, então esses factos podem ser provados tal como quaisquer outros, mas o conhecimento obtido pelo Estado por meios ilícitos não pode ser por si usado da maneira pretendida”. A expressão “frutos da árvore envenenada” surgiu pela pena do igualmente famoso Juiz Conselheiro Felix Frankfurter, no caso Nardone v. United States, de 1939. Cf. Sousa Mendes, 2017: 192.

553 Sousa Mendes, 2014: 220. 554 Costa Andrade, 1992: 171.

555 Kamisar/LaFave/Israel/King/Kerr/Primus, 2015: 765-768.

556 Silverthorne Lumber Co. v. United States, 1920. Disponível em:

https://supreme.justia.com/cases/federal/us/251/385/case.html [consultado em 09.03.2017].

557 Wong Sun v. United States, 1963. Disponível em:

https://supreme.justia.com/cases/federal/us/371/471/case.html [consultado em 09.03.2017].

558 Segura v. United States, 1984. Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/468/796/ [consultado em 09.03.2017].

559 Morão, 2006: 613.

A segunda excepção do efeito-à-distância é designada por excepção da “descoberta inevitável” (inevitable discovery exception)561, foi fundada nas importantes decisões

Brewer v. Williams562 de 1977 e Nix v. Williams563 de 1984 e determina a aceitação das

provas que inevitavelmente seriam descobertas, mesmo que mais tarde, através de outro tipo de investigação564. Trata-se, segundo Paulo de Sousa Mendes, de uma “variante da

‘fonte independente’, mas difere desta excepção na medida em que não se exige aqui que a polícia tenha, de facto, obtido provas também através de uma fonta autónoma e legal, mas apenas que tivesse podido, hipoteticamente, fazê-lo […]”565.

Por fim, a terceira e última excepção, a excepção da “nódoa (ou mácula) dissipada” (purged taint exception)566, baseada nas decisões Wong Sun v. United States567 de 1963 e United States v. Ceccolini568 de 1978, vem estabelecer a possibilidade de utilização no processo de toda a prova secundária a que os órgãos de investigação criminal não teriam chegado, de uma perspectiva de relação causal, sem a violação da proibição de prova, mas relativamente à qual se pode dizer que já nenhum nexo causal efectivo subsiste entre tal prova mediata e a violação inicial569. Ou seja, poderiam ser valoradas todas as provas secundárias se a conexão se tiver tornado tão atenuada a ponto de dissipar a mácula570. Seria o caso do arguido que é levado a confessar determinados factos de modo autoincriminatório571, por força de uma anterior violação de proibição de prova, mas que,

mais tarde, após ter sido convenientemente informado de que tais provas não podem ser utilizadas, opta por confessar os mesmos factos espontaneamente572.

561 Kamisar/LaFave/Israel/King/Kerr/Primus, 2015: 775-780.

562 Brewer v. Williams, 1977. Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/430/387/ [consultado em 09.03.2017].

563 Nix v. Williams, 1984. Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/467/431/case.html [consultado em 09.03.2017].

564 Miranda/Medeiros, 2010: 738. 565 Sousa Mendes, 2017: 193.

566 Kamisar/LaFave/Israel/King/Kerr/Primus, 2015: 774.

567 Wong Sun v. United States, 1963. Disponível em:

https://supreme.justia.com/cases/federal/us/371/471/case.html [consultado em 09.03.2017].

568 United States v. Ceccolini, 1978. Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/435/268/ [consultado em 09.03.2017].

569 Morão, 2006: 615. 570 Sousa Mendes, 2014: 221.

571 Elementos de estudo, 2012: 639-640. Morão, 2012: 717.

572 Morão, 2006: 615. Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24 de Março de 2004, disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040198.html [consultado em 09.03.2017]. Decisão Sumária do Tribunal Constitucional n.º 13/2008, de 11 de Janeiro de 2008, disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/20080013.html [consultada em 09.03.2017].

Chegados a este ponto, e analisada que está a consagração e o regime das proibições de prova em processo penal, resta-nos apenas indagar da aplicabilidade deste regime ao nosso caso concreto: violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare através da ordem de desencriptação compelida dirigida ao arguido no sentido de permitir o acesso ao seu smartphone, quer através do fornecimento da sua palavra-passe quer através da leitura da sua impressão digital.