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2. O problema da desencriptação de smartphones na Constituição dos Estados

2.1. A Quinta Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América e a

2.1.2. Limites da Quinta Emenda

2.1.2.1. Conclusão inevitável (foregone conclusion)

Segundo a doutrina da conclusão inevitável (foregone conclusion), se o governo conseguir mostrar, com razoável particularidade, que no momento em que pretende compelir a produção de determinada prova já terá em sua posse informações relativas à sua existência e localização, o arguido acrescentará, através do seu testemunho, pouco ou nada a essa informação, pelo que, a coacção será legítima de acordo com a Quinta Emenda80. Uma vez que a comunicação de uma conclusão inevitável não revela, de facto, nenhuma informação nova, o privilégio contra a autoincriminação não opera, independentemente de estarmos ou não perante uma prova declarativa (testimonial evidence).

A jurisprudência norte-americana desenvolveu um teste de três passos para a aplicação da excepção da conclusão inevitável81. Assim, o governo deve estabelecer o seu

conhecimento sobre: a) a existência da prova exigida; b) a posse e o controlo dessa prova pelo arguido; c) a autenticidade da prova82.

Esta doutrina foi mencionada pela primeira vez no caso Fisher v. United States83, onde o Supremo Tribunal alegou que a entrega de documentos relativos ao pagamento de impostos pelo contribuinte não constituiria um depoimento incriminatório, uma vez que a existência e localização dos documentos eram uma conclusão inevitável84. Assim, o contribuinte não iria acrescentar nada à informação já recolhida pelo governo pelo simples facto de admitir que tinha a documentação em sua posse85.

78 Terzian, 2015: 1134.

79 Soares, 2012: 2004. 80 Soares, 2012: 2006. 81 Werner, 2016: 4.

82 Efectivamente, apesar de a prestação de depoimento ter, geralmente, um aspecto declarativo, se o governo conseguir mostrar que tinha conhecimento prévio da existência, posse e autenticidade da informação, a informação declarativa passa a ser uma conclusão inevitável. Cf. Fruiterman, 2013: 658. Sales, 2014: 203. 83 Cf. Fisher v. United States, 1976. Disponível em:

https://supreme.justia.com/cases/federal/us/425/391/case.html [consultado em 28.11.2016].

84 “The government can compel production when the existence and location of documents are a foregone conclusion and the defendant adds little to nothing to the sum total of the government’s information by conceding that he in fact has the papers”. Cf. Mohan/Villasenor, 2012: 14.

A doutrina da conclusão inevitável tem sido igualmente considerada como uma justificação legal viável nos casos de desencriptação de dispositivos electrónicos86. Alguns tribunais requerem que o governo tenha conhecimento sobre um certo ficheiro87

para que a doutrina da conclusão inevitável seja aplicada, outros exigem apenas que o governo tenha acesso a qualquer tipo de informação sobre determinados ficheiros88,

mesmo que não esteja informado sobre o seu conteúdo, dado que se encontram encriptados89. Quatro tribunais, em quatro casos distintos, aprovaram a desencriptação compelida de dispositivos electrónicos com base na doutrina da conclusão inevitável90: a) caso United States v. Gavegnano91; b) caso United States v. Fricosu92; c) caso United States v. Hatfield93; d) caso In re Grand Jury Subpoena to Sebastien Boucher94.

Num caso relativamente recente, Commonwealth v. Gelfgatt95, o tribunal decidiu que o arguido poderia ser compelido a fornecer a palavra-passe do seu computador com base na doutrina da conclusão inevitável. Visto que a posse e o controlo do computador por parte do arguido e o seu conhecimento sobre a encriptação e a respectiva palavra-passe já eram conhecidos pelo governo, o Supremo Tribunal de Massachusetts concluiu que o fornecimento da palavra-passe, neste caso, seria considerado como conclusão inevitável, não estando assim protegido pelo privilégio concedido pela Quinta Emenda96.

86 Silver, 2012: 811.

87 Cf. In re Grand Jury Subpoena to Sebastien Boucher, 2009. Disponível em:

http://volokh.com/files/BoucherDCT.1.pdf [consultado em 28.11.2016]. Commonwealth of Virginia v.

David Charles Baust, 2014. Disponível em:

https://consumermediallc.files.wordpress.com/2014/11/245515028-fingerprint-unlock-ruling.pdf

[consultado em 28.11.2016]. Pode ser consultado no Anexo I da presente Dissertação.

88 Cf. United States v. Fricosu, 2012. Disponível em:

https://www.wired.com/images_blogs/threatlevel/2012/01/decrypt.pdf [consultado em 28.11.2016]. Commonwealth v. Gelfgatt, 2014. Disponível em: http://law.justia.com/cases/massachusetts/supreme- court/2014/sjc-11358.html [consultado em 28.11.2016].

89 Terzian, 2016: 173. 90 Silver, 2012: 811.

91 Cf. United States v. Gavegnano, 2012. Disponível em:

http://federalevidence.com/pdf/Comput/U.S.%20v.%20Gavegnano.pdf [consultado em 28.11.2016]. 92 Cf. United States v. Fricosu, 2012. Disponível em:

https://www.wired.com/images_blogs/threatlevel/2012/01/decrypt.pdf [consultado em 28.11.2016]. 93 Cf. United States v. Hatfield, 2010. Disponível em: http://caselaw.findlaw.com/us-7th-

circuit/1519786.html [consultado em 28.11.2016].

94 Cf. In re Grand Jury Subpoena to Sebastien Boucher, 2009. Disponível em:

http://volokh.com/files/BoucherDCT.1.pdf [consultado em 28.11.2016].

95 Cf. Commonwealth v. Gelfgatt, 2014. Disponível em:

http://law.justia.com/cases/massachusetts/supreme-court/2014/sjc-11358.html [consultado em 28.11.2016].

2.1.2.2. Imunidade (immunity)

Para que se possa invocar o privilégio contra a autoincriminação é necessário, como tivemos oportunidade de salientar anteriormente, que se crie um risco específico de incriminação97. No entanto, se o governo eliminar esse risco concedendo imunidade ao suspeito, poderá compeli-lo a fornecer determinadas provas e a responder a diversas perguntas. Esta imunidade tem de ser deferida de acordo com o âmbito de proteção concedido pela Quinta Emenda98.

A necessidade de concessão de imunidade para que se ultrapasse o risco de incriminação e, consequentemente, de desrespeito pelo princípio nemo tenetur se ipsum accusare, não responde à questão de saber qual será a “quantidade” necessária de imunidade para evitar tal violação.

Uma imunidade total ou absoluta afastaria por completo o risco de incriminação, contudo, dar-se-ia ao suspeito a possibilidade de evitar a acusação na sua plenitude. Em última análise, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América concluiu que o preço a pagar pela imunidade total ou absoluta é mais alto do que o governo deverá suportar no intuito de obter, coactivamente, determinadas provas99.

O estatuto federal de imunidade estabelece que se for concedida imunidade: "[...] a testemunha não pode recusar-se a cumprir a ordem com base no seu privilégio contra a autoincriminação; mas nenhum testemunho ou outra informação compelida pela ordem (ou qualquer informação derivada directa ou indirectamente de tal testemunho ou outra informação) pode ser usada contra a testemunha em qualquer processo criminal [...]"100.

No caso Kastigar v. United States101, o Supremo Tribunal esclareceu que a imunidade deve proibir o governo de usar o testemunho compelido, bem como as provas daí provenientes, directa ou indirectamente, para acusar o arguido. Estas duas formas de imunidade foram classificadas como “use immunity” e “derivative use immunity”102,

97 Berger, 2002: 235. 98 Soares, 2012: 2007. 99 Kiok, 2015: 60.

100[…] the witness may not refuse to comply with the order on the basis of his privilege against self- incrimination; but no testimony or other information compelled under the order (or any information directly or indirectly derived from such testimony or other information) may be used against the witness in any criminal case […]”.

101 Cf. Kastigar v. United States, 1972. Disponível em:

https://supreme.justia.com/cases/federal/us/406/441/case.html [consultado em 29.11.2016]. 102 Fakhoury, 2012: 83.

consoante as provas fossem retiradas directamente do testemunho prestado ou derivadas deste103.

Assim, o tribunal deve, em primeira instância, averiguar se o governo estará ou não a tentar compelir um testemunho incriminatório. Se tal se verificar, o tribunal deve conceder imunidade no sentido de proibir o governo não só de utilizar as palavras proferidas ou os actos realizados contra o arguido, como também de utilizar qualquer outra prova obtida através do testemunho104. No caso de o governo querer utilizar qualquer tipo de prova derivada do testemunho prestado sob coacção contra o arguido numa subsequente acusação, deverá demonstrar que tal prova deriva de uma fonte legítima e independente do testemunho compelido105.

Para que a imunidade possa ser concedida, é necessário que a ordem dada seja coactiva e que resulte numa acção incriminatória, de natureza testemunhal, que envolva comunicação e que expresse o conteúdo do pensamento do arguido, e que a informação prestada não seja considerada como uma conclusão inevitável (foregone conclusion)106.

3. Conclusões intermédias

Podemos comprovar, pela análise da jurisprudência, Constituição e doutrina norte- americanas, que a problemática da desencriptação de smartphones para a obtenção de prova no processo penal com o auxílio do arguido é uma questão jurídica actual e real. A Quinta Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América protege o arguido contra determinadas medidas, sempre que estas se revelem, cumulativamente: a) coactivas; b) incriminatórias; c) e declarativas/comunicativas.

Se por um lado, estes três requisitos estão cumulativamente verificados na desencriptação de smartphones através da revelação da palavra-passe, sendo esta ordem violadora do princípio contra a autoincriminação, por outro, o último requisito da declaração/comunicação não se encontra preenchido na ordem de desencriptação de smartphones através da leitura da impressão digital do arguido, resultando na não violação do princípio de não-autoincriminação. Esta conclusão pelo não preenchimento do terceiro

103 Duong, 2009: 339.

104 Fakhoury, 2012: 84.

105 Pfefferkorn, 2009: 4-5. Disponível em:

https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1883697&download=yes [consultado em 29.11.2016].

requisito no caso de desencriptação através da leitura da impressão digital está relacionada com a teoria defendida pela doutrina e jurisprudência norte-americanas de que uma acção só se considera declarativa/comunicativa nas situações em que o arguido é compelido a divulgar o conteúdo da sua mente. Assim se explicam os resultados a que a jurisprudência norte-americana chegou nos casos apresentados: o arguido não pode ser compelido a fornecer a palavra-passe do seu smartphone, mas pode ser compelido a colocar o seu dedo no leitor de impressões digitais para desencriptar o dispositivo. Ademais, ficou esclarecido que, mesmo nas situações em que todos os requisitos da Quinta Emenda tenham sido cumulativamente preenchidos, as ordens de desencriptação de smartphones (independetemente do método) podem ser dirigidas ao arguido, ficando a sua validade a depender de duas situações: a) da demonstração pelas autoridades de um conhecimento de tal ordem particularizado sobre a existência e localização dos ficheiros que essa informação possa ser considerada como uma conclusão inevitável (foregone conclusion); b) da concessão de imunidade ao arguido.

Apesar de, segundo o ordenamento jurídico norte-americano, a revelação coactiva da palavra-passe que desencripta um smartphone ser considerada ilegítima por violação do princípio contra a autoincriminação e, contrariamente, a leitura coactiva da impressão digital do arguido que desencripta um smartphone ser considerada legítima, cumpre saber, uma vez que a nossa investigação é realizada em território português, se estes casos jurisprudenciais teriam a mesma solução segundo o ordenamento jurídico nacional.