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CAPÍTULO IV – A DESENCRIPTAÇÃO DE SMARTPHONES PARA

OBTENÇÃO DE PROVA E A SUA ARTICULAÇÃO COM O PRINCÍPIO DA

4. Critérios para a determinação de violação do princípio nemo tenetur se ipsum

4.3. Critério da ponderação de bens

4.3.3. Os limites aos limites dos direitos fundamentais

4.3.3.4. Garantia do conteúdo essencial

O último requisito material da legitimidade das restrições a direitos fundamentais consiste na ideia de que existe um núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias que não pode, em caso algum, ser violado. Mesmo nos casos em que o legislador está constitucionalmente autorizado a editar normas restritivas, ele permanece vinculado à salvaguarda do núcleo essencial dos direitos432.

Esta garantia do núcleo/conteúdo essencial dos direitos fundamentais, apesar de ser uma criação especificamente alemã, encontrou um eco generalizado na doutrina e jurisprudência constitucionais de vários outros países, incluindo mesmo uma recepção constitucional expressa, como aconteceu entre nós (n.º 3 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa). Efectivamente, na doutrina alemã, cuja Constituição contém uma cláusula semelhante, que inspirou a nossa, aparecem dois tipos de teorias atinentes à natureza do conteúdo essencial, habitualmente designadas como teorias absolutas e teorias relativas.

Para as teorias absolutas, o núcleo essencial consistiria num conteúdo normativo irrestringível, abstractamente fixado433. Desta forma, podemos afirmar que a teoria absoluta é, assim, uma perspectiva ontológico-substancialista que entende o conteúdo essencial como grandeza estática e intemporal. Independentemente do interesse ou bem que justifique a restrição e da importância relativa da sua realização, esta teoria considera que há, em cada direito fundamental, uma zona, esfera ou âmbito nuclear intocável434 que, sob pena de desnaturação ou perda do seu sentido útil, em caso algum poderá ser

431 “O princípio da idoneidade […] traduz-se na ideia de que se exige uma relação de adequação entre o meio usado e o fim perseguido. […] o princípio da necessidade e da mínima intervenção implica a necessária utilização de outros meios menos lesivos para os direitos fundamentais, quando isso se afigure possível. […] o princípio da proporcionalidade em sentido estrito ou da adequação ao fim, exige uma ponderação do interesse em conflito segundo um critério de justiça material, […] implica uma ponderação entre os interesses individuais que se vão constranger, e os interesses que se pretendem defender”. Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 3 de Março de 2016, disponível em:

http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/36f34b50b321b89980257f6f004d5fc6? OpenDocument [consultado em 16.02.2017].

432 Gomes Canotilho, 2016: 458. 433 Gomes Canotilho, 2016: 459.

434 Neste sentido vai Robert Alexy, ao afimar que, segundo as teorias absolutas, existe um núcleo essencial em todos os direitos fundamentais que, em nenhum caso, pode ser afectado. Cf. Alexy, 2008: 259.

afectada435. Segundo alguns Autores, o núcleo essencial corresponderia à projecção da dignidade humana em cada direito e seria afectado sempre que o indivíduo se tornasse objecto do acontecer estadual, para outros, significaria uma certa medida de valor social global que teria sempre de sobrar depois da restrição, para outros ainda, seria constituído pelos elementos típicos que conferem carácter ao direito436.

Por seu turno, as teorias relativas reconduzem o conteúdo essencial aos princípios da exigibilidade e da proporcionalidade: a restrição só seria legítima quando (se) fosse exigida para a realização de bens jurídicos que devessem ser considerados (no caso) como mais valiosos e só na medida em que essa exigência se imponha ao direito fundamental437.

Assim, não é a gravidade ou intensidade da lesão, a relevância da justificação ou o tipo de prejuízo na liberdade que determinam, por si só, a activação da garantia do núcleo essencial. O que está em causa é, segundo Jorge Reis Novais, a natureza da relação que se estabelece entre os bens em confronto e entre o fim prosseguido com a restrição e o meio utilizado, considerando-se que há violação do conteúdo essencial dos direitos fundamentais quando se verifica um excesso, uma desproporcionalidade, uma desnecessidade, independentemente do muito ou pouco que reste do direito fundamental após a incidência da restrição438. Donde facilmente se conclui que, para a teoria relativa, a garantia do conteúdo essencial se identifica com o princípio da proporcionalidade em sentido amplo/proibição do excesso num quadro de ponderação de bens.

Estamos com Gomes Canotilho e Vital Moreira, que defendem uma solução intermédia, uma teoria mista, segundo a qual a questão do conteúdo essencial de um direito não se pode equacionar senão em confronto com outro bem, mas, nos termos da Constituição, nunca essa ponderação poderá conduzir à aniquilação de qualquer direito fundamental439.

A garantia do conteúdo essencial deve servir como um “plus” em relação ao princípio da proporcionalidade. Ou, como sustenta Jorge Miranda, deverá funcionar como barreira última e efectiva contra o abuso do poder, que não pode ser violada em qualquer hipótese440. 435 Reis Novais, 2010: 782. 436 Vieira de Andrade, 2016: 282-283. 437 Vieira de Andrade, 2016: 283. 438 Reis Novais, 2010: 781. 439 Gomes Canotilho/Moreira, 2014: 395.

440 Miranda, 2014: 315. Nesta linha de pensamento, Gomes Canotilho e Vital Moreira, reiteram que a garantia do conteúdo essencial é uma baliza última de defesa dos direitos, liberdades e garantias, delimitando um núcleo que, em nenhum caso, deverá ser invadido. Cf. Gomes Canotilho/Moreira, 2014: 396.

Em termos práticos, pode dizer-se que o requisito da proporcionalidade, mencionado no ponto anterior, é uma terceira aproximação (depois da exigência da legalidade e da necessidade de salvaguarda de outro direito ou interesse constitucionalmente protegido), dado que a existência de uma restrição arbitrária, desproporcionada, é um índice relativamente seguro da ofensa do núcleo essencial. Sem embargo, independentemente de haver ou não uma desproporcionalidade na restrição, há que salvaguardar sempre a extensão do núcleo essencial.

Desta forma, apoiamo-nos no recurso a uma teoria mista sustentada pelos Autores, a um tempo relativa e absoluta: “relativa, porque a própria delimitação do núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias tem de articular-se com a necessidade de protecção de outros bens ou direitos constitucionalmente garantidos; absoluta, porque, em última análise, para não existir aniquilação do núcleo essencial, é necessário que haja sempre um resto substancial de direito, liberdade e garantia, que assegure a sua utilidade constitucional”441.

O conteúdo inatacável dos preceitos relativos aos direitos, liberdades e garantias começa, assim, onde acaba a possibilidade e legitimidade da sua restrição442.