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CAPÍTULO IV – A DESENCRIPTAÇÃO DE SMARTPHONES PARA

OBTENÇÃO DE PROVA E A SUA ARTICULAÇÃO COM O PRINCÍPIO DA

2. O princípio nemo tenetur se ipsum accusare

2.2. Fundamentos jurídicos

Actualmente, não é tanto o reconhecimento legal e constitucional do princípio nemo tenetur se ipsum accusare que suscita dificuldades, quanto a determinação exacta do seu fundamento e conteúdo.

É usual enquadrar os fundamentos constitucionais do nemo tenetur em duas espécies distintas, concebendo-o, alternativamente, como direito material de liberdade (corrente substantiva) ou como garantia processual fundamental (corrente processual)279.

Segundo a corrente substantiva, defendida pela doutrina maioritária alemã, o fundamento deste princípio estaria enraizado em alguns direitos fundamentais que fundar-se-iam directamente, na dignidade da pessoa humana, proclamada no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa. Ainda dentro desta mesma corrente, outros Autores concebem aquele princípio como reflexo dos direitos à integridade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, vertidos nos artigos 25.º e 26.º da CRP280.

Por outro lado, segundo a corrente processualista, o direito ao silêncio e à não- autoincriminação teriam a sua fonte jurídico-constitucional nas garantias processuais reconhecidas ao arguido no texto constitucional, designadamente no princípio do processo equitativo e no princípio da presunção de inocência, consagrados, respectivamente, no n.º 4 do artigo 20.º, e nos n.os 2 e 8 do artigo 32.º, ambos da CRP281.

Não obstante os direitos do arguido, consagrados, nomeadamente, no artigo 61.º do Código de Processo Penal, contribuírem activamente para a protecção de direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana, estamos com Figueiredo Dias e Costa

278 Sousa Mendes, 2017: 210. Neste sentido, cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 696/95, de 5 de Dezembro de 1995, disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19950695.html

[consultado em 18.01.2017]. Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 372/98, de 13 de Maio de 1998, disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19980372.html [consultado em 18.01.2017].

279 Oliveira Silva, 2013: 370.

280 Figueiredo Dias/Costa Andrade, 2009: 40. 281 Menezes, 2010: 124-125.

Andrade quando defendem que o facto de estes direitos processuais serem “um meio ou forma de concretizar um determinado direito fundamental não implica que este seja o seu fundamento directo e imediato. Desde logo se aponta que o próprio conceito de dignidade humana recobre de forma mediata toda a matéria penal e processual penal de um Estado de Direito”282. Assim, apesar de se defender na doutrina portuguesa a corrente

processualista, é também aceite que o princípio nemo tenetur protege reflexamente os direitos fundamentais referidos pela corrente substantiva283.

A jurisprudência nacional, nomeadamente, a do Tribunal Constitucional, vem concluir que o princípio nemo tenetur configura “uma componente das garantias de defesa asseguradas no artigo 32.º da CRP, cujo objectivo último é a protecção do arguido como sujeito no processo”284. Daqui decorre que a posição do Tribunal Constitucional se

harmoniza com a posição da doutrina, optando também pela corrente processualista do princípio nemo tenetur se ipsum accusare285.

É assim de concluir que, em Portugal, o entendimento maioritário defende que o princípio nemo tenetur se ipsum accusare encontra o seu fundamento imediato nas garantias processuais que a Constituição impõe, no artigo 32.º da Lei Fundamental, cumprindo-se de igual modo a exigência constitucional de um processo penal equitativo, prevista no n.º 4 do artigo 20.º da CRP286.

No entanto, esta não é uma questão puramente teórica pois, como bem assinala Vânia Costa Ramos, se um direito fundado na dignidade da pessoa humana é “um direito de natureza tendencialmente absoluta”, já um direito fundado em garantias processuais poderá ser sujeito a certas limitações”287. Assim, não causa estranha afirmar, na

decorrência do que já ficou escrito relativamente às limitações do direito ao silêncio e do direito à não-autoincriminação em sentido estrito, que o próprio princípio nemo tenetur se ipsum accusare não constitui um princípio absoluto, pelo que comporta restrições justificadas (v.g. al. b) do n.º 3 do artigo 61.º e artigo 172.º, ambos do CPP)288.

282 Figueiredo Dias/Costa Andrade, 2009: 41. 283 Pinto, 2013: 106.

284 Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 696/95, de 5 de Dezembro de 1995, disponível em:

http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19950695.html [consultado em 18.01.2017]. 285 Pinto, 2013: 107.

286 Figueiredo Dias/Costa Andrade, 2009: 42. 287 Ramos, 2007: 58 e 73.

2.3. Limitações

No processo acusatório, coaduna-se a investigação da verdade material aos pressupostos do Estado de Direito, limitando-a, assim, pela observância escrupulosa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Desta forma, não causa estranheza que se assegure ao arguido a posição de sujeito289, dotado de um real e efectivo direito de defesa290.

De facto, o caminho trilhado por este processo penal reformulado, vai no sentido de assegurar ao arguido uma cada vez mais consistente e efectiva condição de sujeito, ao invés de mero meio de prova291. No entanto, como já tivemos oportunidade de analisar ao longo da nossa investigação, muitas vezes, o arguido, no seio de uma investigação criminal, acaba por ser sujeito a certas diligências, sendo utilizado como meio de prova292293.

Na doutrina, Figueiredo Dias afasta a existência de um dever abstracto de colaboração do arguido294, na medida em que exige que “a utilização do arguido como meio de prova seja

sempre limitada pelo integral respeito da sua vontade”, adiantando ainda que “só no exercício de uma plena liberdade da vontade pode o arguido decidir se e como deseja tomar posição perante a matéria que constitui objecto do processo”295. Na mesma esteira,

mais recentemente, Paulo Pinto de Albuquerque veio defender a ideia de que o arguido

289 “O arguido é um sujeito processual e, em regra, não pode ser utilizado, contra sua vontade, como fonte de prova contra si mesmo”. Cf. Palma, 2009: 1. Disponível em:

http://www.idpcc.pt/xms/files/Newsletters/Boletim_Ano1_Ed1_Dez08Jan09.pdf [consultado em 19.01.2017]. Luísa Neto, por seu turno, fala aqui no arguido como o “legislador de si mesmo”. Cf. Neto, 2004: 188.

290 Rodrigues, 2002: 549.

291 Figueiredo Dias, 1997: 26. Neto, 1997: 184-185.

292 “Submetido ao processo, às ordens do tribunal e susceptível de sofrer medidas coactivas, ele [o arguido] encontra-se nessa medida certamente numa situação passiva; obrigado a sofrer na sua própria pessoa investigações de prova (os exames) e autor de declarações com valor probatório ele é também meio de prova. Mas nem por isso ele poderá deixar de ser considerado como sujeito do processo”. Cf. Castanheira Neves, 1968: 166. Figueiredo Dias segue igualmente este pensamento, defendendo que “Não quer isto dizer que o arguido não possa, em termos demarcados pela lei por forma estrita e expressa, ser objecto de medidas coactivas e constituir, ele próprio, um meio de prova. Quer dizer, sim, que as medidas coactivas e probatórias que sobre ele se exerçam não poderão nunca dirigir-se à extorsão de declarações ou de qualquer forma de autoincriminação […]”. Cf. Figueiredo Dias, 2004: 430.

293 Neste sentido, Roxin afirma que no processo penal alemão se tem debatido sobre o confronto entre a descoberta da verdade e os interesses do arguido: “Em qualquer sistema legal de um Estado de Direito a lei processual penal está obrigada a contrabalançar a investigação criminal e os interesses do arguido, acusado de determinado delito onde a sua privacidade está em causa. O processo penal alemão é um exemplo típico da constante luta entre essas demandas conflituantes. Assim, enquanto a maioria da jurisprudência faz esforços no sentido de reforçar a protecção do arguido, a legislação mais recente revela uma tendência de alcance cada vez maior para a admissão de medidas que interferem com o campo da personalidade”. Cf. Roxin, 2009: 87.

294 Neste sentido, cf. Sousa Mendes, 2007: 609. “[…] o arguido não é um colaborador das autoridades judiciárias e dos OPC para a descoberta da verdade e a realização da justiça!”

não tem um “dever de colaboração com o tribunal ou o MP com vista à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa (nemo tenetur se ipsum accusare), dado o seu direito constitucional ao silêncio (n.º 1 do artigo 32.º da CRP)”296.

Não obstante a inexistência de um dever de o arguido colaborar com as autoridades, tal não significa que não possa haver derrogações ao princípio nemo tenetur, apresentando a doutrina vários exemplos: a) o direito ao silêncio não assiste ao arguido relativamente às perguntas sobre a sua identidade, tendo inclusive o dever de responder a elas com verdade, nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 61.º do CPP; b) a obrigatoriedade de realizar determinadas perícias e exames (artigos 151.º a 172.º do CPP); c) a obrigatoriedade de sujeição a exames no âmbito de perícias médico-legais quando ordenados pela autoridade judiciária competente, prevista pela Lei n.º 45/2004, de 29 de Agosto297; d) a obrigatoriedade de sujeição a diligências de prova, decorrente do consagrado na alínea d) do n.º 3 do artigo 61.º do CPP298.

No que concerne à jurisprudência, o Tribunal Constitucional já deixou claro que tem sido “reconhecido que o direito à não autoincriminação não tem um carácter absoluto, podendo ser legalmente restringido em determinadas circunstâncias (v.g. a obrigatoriedade de realização de determinados exames ou diligências que exijam a colaboração do arguido, mesmo contra a sua vontade)”299.

Assim, podemos concluir, no seguimento do defendido por Figueiredo Dias, que o arguido pode constituir meio de prova num duplo sentido: a) em sentido material, através das declarações prestadas sobre os factos; b) em sentido formal, na medida em que o seu corpo e o seu estado corporal podem ser objecto de perícias, exames ou outras diligências de prova (artigo 151.º, artigo 172.º e al. d) do n.º 1 do artigo 61.º, todos do CPP) 300.

Chegados a este ponto, e atendendo aos dois métodos de desencriptação do smartphone - a palavra-passe e a impressão digital -, podemos afirmar que a acção de fornecimento da palavra-passe às autoridades judiciárias seria, sem margem para dúvidas, reconduzível à conduta de prestação de declarações sobre os factos (al. d) do n.º 1 do artigo 61.º do CPP). Contrariamente, no que diz respeito à desencriptação do smartphone através da impressão

296 Albuquerque, 2011: 48 e 183.

297 Figueiredo Dias/Costa Andrade, 2009: 44-45. 298 Marques da Silva, 2010: 318.

299 Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 340/2013, de 17 de Junho de 2013, disponível em:

http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130340.html [consultado em 19.01.2017]. 300 Figueiredo Dias, 2004: 438-439.

digital, não podemos defender que esta acção poderá ser reconduzida a uma qualquer prestação de declaração. Assim, resta-nos saber: será a desencriptação através da impressão digital uma perícia, um exame, uma outra diligência de prova, ou nenhuma das anteriores?

Para que possamos responder com clareza a esta questão, iremos, no próximo ponto, fazer uma breve análise ao regime das perícias e exames (artigos 151.º a 172.º do CPP) e às diligências de prova (al. d) do n.º 3 do artigo 61.º do CPP).