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A postura de convergência (convergence with the transnational)

3 AS INTERAÇÕES JUDICIAIS TRANSNACIONAIS EM MATÉRIA CONSTITUCIONAL: PROPOSTAS, DEFESAS E CRÍTICAS

3.6 O ENGAJAMENTO CONSTITUCIONAL EM UMA ERA TRANSNACIONAL DE VICKI JACKSON

3.6.3 A postura de convergência (convergence with the transnational)

Do lado oposto à postura de resistência, Vicki Jackson identifica a postura de convergência da constituição nacional e sua interpretação com o material transnacional, sejam decisões judiciais, sejam tratados e acordos internacionais. A postura de convergência abraça

309 JACKSON, Vicki. Constitutional engagement in a transnational era. Oxford: Oxford University Press, 2013,

p. 32-35. 310 Ibid., p. 35-38. 311 Ibid., p. 38.

a identificação do nacional com o internacional, faz o direito constitucional de um Estado se conformar com o que é produzido no transnacional312. O modelo de convergência é aquele que enxerga a constituição como mecanismo de implementação de normas internacionais e de uma visão genérica de constitucionalismo. É perceptível, segundo a autora, em constituições que expressamente adotam normas internacionais como meio de controle das normas de seu próprio Estado313, ou que exigem dos aplicadores uma interpretação que conforme o sentido constitucional ao conteúdo de normas internacionais314. Contudo, pode ocorrer também por decorrência da decisão deliberada de intérpretes de fazer harmonizar o direito constitucional ao redor do mundo. Trata-se, assim, de uma visão extrema de cosmopolitismo315. Como afirma a autora: “Support for this form of convergence might be based on an understanding of each national system as a participant in a decentralized but normatively progressive epistemological process of transnational norm convergence”316, o qual pode estar fundado em uma concepção teórica sobre constituições assim como em ideias sobre direito internacional e supranacional.

Além das convergências substantivas, é possível perceber, segundo a autora, manifestações de convergência metodológica. O maior exemplo, altamente perceptível no Brasil, é a adoção da fórmula da proporcionalidade desenvolvida principalmente por Robert Alexy317. A convergência metodológica, contudo, pode levar a convergência de resultados ou não, já que os pesos dados a cada princípio podem ser diferentes em diferentes Estados ou estruturas internacionais/supranacionais318.

É inegável que, quando vai ser construído pela primeira vez, todo e qualquer sistema constitucional recorre a experiências, estruturas e instituições encontradas em outros sistemas já existentes ou que existiram em algum momento, o que, contudo, não impede que novas e originais perspectivas sejam elaboradas. Este fato é especialmente visível em Estados com constituições e sistemas constitucionais recentes. No mundo pós-Segunda Guerra

312 JACKSON, Vicki. Constitutional engagement in a transnational era. Oxford: Oxford University Press, 2013,

p. 39.

313 JACKSON, Vicki. Constitutional comparisons: convergence, resistance, engagement. Harvard Law Review,

v. 119, 2005, p. 112-113.

314 JACKSON, op. cit., 2013, p. 43-44.

315 JACKSON, Vicki. Transnational challenges to constitutional law: convergence, resistance, engagement.

Federal Law Review, v. 35, 2007, p. 165-167; JACKSON, Vicki. Constitutional engagement in a transnational era. Oxford: Oxford University Press, 2013, p. 42.

316 Ibid., p. 42. Em tradução livre: “Defender este tipo de convergência pode estar fundado na compreensão de

que cada sistema nacional é participante em um (descentralizado mas normativo) progressivo processo epistemológico de convergência normativa”.

317 Ibid., p. 42-43. A autora assevera que o uso da fórmula da proporcionalidade é perceptível nos Tribunais Constitucionais do Canadá, da Colômbia, da Alemanha, da Índia, da Irlanda, de Israel, da África do Sul e no Tribunal Europeu de Direitos Humanos e na Corte Europeia de Justiça (Ibid., p. 60).

transnacionalizado tal realidade assume novas feições. Os fundamentos para a adoção da postura de convergência são os mais variados, indo desde uma concepção universalista de moral a razões epistêmicas.

Como brevemente aventado acima, a universalidade dos direitos humanos é uma decorrência de uma perspectiva também universal dos direitos que todo o ser humano precisa ter garantido, apenas pelo fato de pertencer à espécie. Perspectiva similar é defendida por aqueles que entendem os direitos humanos como suprapositivos, seja por motivos lógicos, seja por motivos jusnaturalistas. Esta percepção, somada à progressiva positivação de direitos humanos em instrumentos internacionais e de direitos fundamentais em constituições estatais, leva alguns a afirmar que o sentido dado à constituição deve servir a este propósito universalista. Este seria, segundo Vicki Jackson, um dos fundamentos para uma postura de convergência319.

Outro motivo para convergência e harmonização, de alguma forma ligado ao anterior, estaria no papel que juízes e tribunais teriam na construção de um sistema jurídico internacional que levasse à paz, evitasse a guerra e garantisse direitos individuais e bem estar. Parte-se da ideia de que a atuação judicial tem um papel na acomodação do nacional ao internacional. Presumir em favor do internacional/transnacional contribuiria para a sociedade global como um todo, ainda que, por vezes, fosse prejudicial. As dificuldades na elaboração de um sistema internacional pelos atores políticos seriam compensadas pela atuação dos atores jurídicos sctricto sensu 320 . Atrelada a isto estaria a potencialidade de a harmonização/convergência servir de mecanismo inibidor de atos de flagrante violação de direitos humanos, regimes autoritários e segregacionistas, assim como um meio de auxiliar minorias descriminadas sem acesso ao sistema democrático321.

Os argumentos pela convergência com o transnacional também podem ter motivos epistêmicos. Um deles afirma que a harmonização pode servir como mais um mecanismo de contenção da discricionariedade judicial322. Para Vicki Jakson, outra defesa do modelo de convergência pode derivar de uma percepção positivista (primitiva) de direito. Segundo ela, os textos de algumas constituições e acordos internacionais (arts. 55 e 56 da Carta da ONU,

319 JACKSON, Vicki. Constitutional engagement in a transnational era. Oxford: Oxford University Press, 2013., p. 45-47.

320 Ibid., p. 49-51. 321 Ibid., p. 51-52. 322 Ibid., p. 48.

por exemplo323), somados à uma teoria positivista do direito, apontam para a harmonização do direito nacional com o direito internacional324.

Fica claro, portanto, que os fundamentos para a postura de convergência são abrangentes e, por vezes, se sobrepõem. Nas palavras da autora:

Postures of convergence can rest on different normative grounds. These include universalist views of rights and the role of law in protecting rights (associated with universalist understandings of human nature, human societies, and justice), or more cautions epistemological positions that hold that the weight of practice is likely to represent a wisdom worth following. Domestic constitutional law may be viewed as a site for implementation of international legal norms, or, alternatively, as a mechanism for the decentralized, interactive development of avowedly transnational legal norms. Convergence postures might also be based on positivist commitments, on a desire to strengthen the international legal system, or on the hope for forestalling the truly horrific325.

A adoção da postura de convergência pode levar a alguns resultados relativamente

evidentes. O primeiro deles seria, segundo a autora, a disseminação de

supraconstitucionalidade ou de presunção de nível constitucional aos elementos transnacionais, mormente os tratados e convenções sobre direitos humanos326. Quer isto dizer que estes instrumentos seriam necessariamente balizadores dos sentidos constitucionais construídos pelos juízes e tribunais constitucionais estatais.

Outro efeito possível seria o que a autora chama de efeitos extraterritoriais (extraterritorial effects). Segundo seu raciocínio, uma postura de convergência acaba por afetar a forma com que um juiz ou tribunal enxerga o comportamento constitucional de outros Estados. Os exemplos dados envolvem a extradição de não nacional ao país de origem para

323 Artigo 55. Com o fim de criar condições de estabilidade e bem estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão:

a) níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social; b) a solução dos problemas internacionais econômicos, sociais, sanitários e conexos; a cooperação internacional, de caráter cultural e educacional; e

c) o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.

Artigo 56. Para a realização dos propósitos enumerados no Artigo 55, todos os Membros da Organização se comprometem a agir em cooperação com esta, em conjunto ou separadamente.

324 JACKSON, Vicki. Constitutional engagement in a transnational era. Oxford: Oxford University Press, 2013,

p. 52-54.

325 Ibid., p. 54. Em tradução livre: “posturas de convergência podem se embasar em diferentes pressupostos normativos. Estes incluem uma visão universalista dos direitos e do papel do direito em proteger direitos (associado com uma compreensão universalista da natureza humana, da sociedade, e da justiça), ou em cuidados epistemológicos que afirmam que o peso de algumas práticas pode representar uma sabedoria que vale a pena ser seguida. O direito constitucional doméstico pode ser visto como local de implementação de normas internacionais, ou, alternativamente, como um mecanismo do descentralizado e interativo desenvolvimento de normas transnacionais. Posturas de convergência podem, também, estar alicerçadas em comprometimentos positivistas, em um desejo de fortalecer o sistema jurídico internacional, ou na esperança de prevenir o realmente horrível”.

cumprimento de pena capital. Tanto o Tribunal Europeu de Direito Humanos, quanto a Suprema Corte canadense (assim como o Supremo Tribunal Federal brasileiro, acrescente-se), indeferem pedidos de extradição quando, no país requerente, o extraditado possa ser condenado a pena capital. Este tipo de comportamento, para a autora, é um claro efeito extraterritorial de uma postura de convergência, pois afeta Estados que não estão limitados pelos instrumentos a que se recorre para negar a extradição (Constituição canadense e Convenção Europeia de Direitos Humanos), nem, muito menos, aos sentidos dados a estes instrumentos327.

A tentativa de construção de sistemas supranacionais, guiada por uma vontade de convergência, pode fazer surgir a necessidade do que se costuma chamar de doutrina da margem de apreciação. Trata-se de tese surgida no contexto da Convenção Europeia de Direitos Humanos e sua interpretação e aplicação pelo Tribunal Europeu de Direito Humanos. Segundo essa tese, é legítimo que os Estados membros possuam uma margem de apreciação quanto ao significado dos direitos positivados na Convenção. O surgimento de tal doutrina, para Vicki Jackson, só demonstra a enorme dificuldade que é, em um ambiente altamente diversificado como a Europa, implementar direitos de forma homogênea328. É uma

advertência altamente relevante para os propósitos deste estudo. Será objeto de análise mais profunda à frente.

No que diz respeito ao tipo de teoria da interpretação que albergaria uma postura de convergência com o transnacional, Vicki Jackson afirma que vários tipos de posição poderiam ser assumidas, desde teorias mais voltadas ao direito natural até um positivismo primitivo “textualista”. A postura de convergência não poderia, por si só, ser uma teoria da interpretação. Para a autora, isso ocorre porque um número muito reduzido de temas possui um consenso global a seu respeito. Estados e estruturas internacionais e supranacionais divergem sobre liberdade religiosa, aborto, acesso a informação e regulação dos direitos de propriedade e contrato. Assim, a postura de convergência deve ser entendida como uma teoria incompleta da interpretação constitucional329.

A autora finaliza afirmando que uma postura de convergência sempre será parcial. Como não há uma instância última de decisão sobre como interpretar e aplicar determinados direitos humanos ou constitucionais no cenário transnacional, é impraticável pensar em

327 JACKSON, Vicki. Constitutional engagement in a transnational era. Oxford: Oxford University Press, 2013,

p. 55-57. 328 Ibid., p. 57-60. 329 Ibid., p. 65-67.

convergência total. Mesmo na Europa, que possui o mais avançado sistema supranacional, esta é uma realidade inalcançável.

Além da improbabilidade empírica, é valioso ressaltar que convergência transnacional sequer deve ser algo almejado, pois altamente perigoso. Novos direitos e novas interpretações de novos direitos sempre surgirão. A harmonização total do direito internacional/supranacional com o direito constitucional pode gerar danos para ambos e resultar em uma desdiferenciação (perda de heterogeneidade/pluralidade) prejudicial para as identidades locais/regionais, assim como pode destruir o potencial emancipatório e reflexivo que o direito transnacional poder oferecer330.

Tal qual o modelo de submissão denunciado por André Ramos Tavares, a postura de convergência representa a morte da identidade em nome da alteridade.

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